A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
Faz sentido comparar o sul dos EUA à Alemanha nazi?

E, de súbito, parece uma antecipação do futuro
Sim e não. Quando lemos livros sobre a história da guerra civil americana, sobre o conflito entre a América conservadora e liberal representada por Lincoln (Norte republicano) e a América reaccionária e nacionalista representada por Douglas e Davis (Sul democrata), ficamos com uma sensação de familiaridade: a ideia de América dos confederados sulistas parece uma antecipação dos nacionalismos que varreram a Europa décadas depois. A América de Davis era um império branco, sem mistura de raças e sangues, de exploração de outras raças consideradas inferiores ou mesmo não humanas. Ainda há dias a revista “Tablet” tinha uma peça sobre as influências que a cultura confederada e sulista teve na cultura nazi. Tendo em conta estas semelhanças, sim, faz algum sentido comparar os sulistas americanos aos nazis alemães. No entanto, convém não forçar a nota. Já se fala na possibilidade de uma nova guerra civil. Não é exagero. A primeira, que estalou em 1861, fermentou durante décadas.
Em primeiro lugar, só o gulag pode ser comparado à engenharia macabra dos nazis. A escravatura fica um degrau abaixo na escala do inferno. Não é muito, mas há uma diferença. Além disso, a escravatura foi um pecado de toda a humanidade, de todo o ocidente. Os sulistas americanos do século XIX não eram muito diferentes dos europeus, a começar nos espanhóis e portugueses. O “Amistad”, célebre barco negreiro que causou polémica nos EUA em 1839, era espanhol. Um navio português, “Tecora”, era peça infame no tráfico de escravos em meados do século XIX. Sim, é verdade que os sulistas recusavam por completo o debate moral que acabou por ilegalizar a escravatura no Ocidente. Esta teimosia reaccionária que queria fazer do sul uma cápsula de tempo gerou uma guerra civil que matou 750 mil homens de soldados. Seja como for, os sulistas não estiveram sozinhos no pecado da escravatura. Já os nazis estiveram sozinhos no pecado do holocausto.
Em segundo lugar, a guerra contra a Alemanha nazi foi uma guerra clássica entre países. A guerra entre norte e sul nos EUA foi uma guerra civil; a lógica aqui não é “nós” versus “eles”, mas sim “nós” versus “nós”; reconciliação pós-bélica tem de ser diferente; o grau de humilhação que se pode impor ao lado derrotado não é o mesmo, visto que o derrotado faz parte do “nós”. É portanto um pouco chocante assistir ao que se está a passar nos EUA. As elites liberais das duas costas estão a tratar o sul como se fosse um país estrangeiro e não como parte dos EUA. Mesmo moderados como Zakaria estão a recorrer a esta narrativa. Sim, é verdade que há ali algo de errado: o sul mantém 718 monumentos, 80 distritos/cidades, 109 escolas e 10 bases militares em honra dos rebeldes confederados que lutaram para manter a escravatura. Mas mudar este cenário é uma tarefa que exige empatia e não arrogância. É preciso empatia para tratar o sul como parte do “nós”. O que se vê porém é o desejo de tratar esse sul infame como um país estrangeiro, como uma parte da população que não merece estar nos EUA. Ao contrário do que se passou em 1861, a ambiência secessionista em 2017 está partindo do norte.