MÚSICA
As massas estão progressiva e fatalmente enamoradas de si mesmas
Em tempos idos, levava-se para os festivais a roupa mais surrada e tirava-se fotos aos artistas. Hoje, o fã é a grande estrela e, porque o seu glamour tem de ser documentado, as câmaras dos telemóveis não têm sossego. Nem quem quer ver os concertos, já agora. Crónica de quem anda nisto
TEXTO LIA PEREIRA FOTOS RITA CARMO
Poucas horas antes de, pelos pés de Ronaldo, Éder e companhia, Portugal se ver sugado para dentro de um sonho do qual ainda custa a sair, acabou em Algés a décima edição do NOS Alive. Mais uma vez, o evento foi um sucesso, quer no que toca ao número de espectadores, nacionais e estrangeiros (“Mas a música não vai lá aos países deles?”, perguntava-me esta terça-feira, intrigado, um taxista), quer pela qualidade do cartaz, possivelmente o mais forte deste verão e até mesmo dos últimos anos em Portugal.
A música vai lá aos países deles, é verdade, mas a preços de tão forma elevados (sobretudo se pensarmos em grandes mercados como Inglaterra ou Alemanha) que, para muito bom festivaleiro, é mais apelativo e compensador marcar uma semana ou duas de férias num país soalheiro e, por uma fração do que pagariam no seu país, ver concertos de Arcade Fire e Pixies, Robert Plant e Radiohead (uma das bandas mais solicitadas do circuito, cujas datas ao vivo são cada vez mais criteriosas – depois de Oeiras, não há mais Europa, atravessando os britânicos o Atlântico para, no final do mês, desembarcarem na América do Norte).
E ainda nem saímos do maior palco do certame: se caminharmos uns metros em direção a Lisboa, encontramos uma tenda da qual seria possível enxertar um festival autónomo; pelo palco Heineken passaram, durante os três dias do festival, o incendiário Father John Misty (e soutiens voaram para a mão deste falso pastor do rock & deboche); a pequenita Courtney Barnett, mais Cobain do que Love, diretamente de uma garagem em Melbourne para a margem norte do Tejo, ou os picantes Calexico (quem não viu os festivaleiros a dançar cumbias e delírios mariachi não viu nada, lamentamos informar).
Uma componente importante deste festival, como de qualquer outro, não precisa de vir anunciada no cartaz: falo do público, cujo protagonismo vem crescendo de ano para ano e que, pelo andar da egocêntrica carruagem, um dia veremos em cima do palco em vez de cá em baixo, na plateia, onde devia estar a contemplar os deuses, perdão, os artistas do rock e associados.
Não sou socióloga mas, frequentando concertos e festivais há mais de duas décadas, suspeito que as massas estejam progressiva e fatalmente enamoradas de si mesmas. Ignorando que, no sossego dos seus lares, os amigos que não foram ao festival conseguem sobreviver sem saber o que estes felizardos estão a comer, beber e dizer, os festivaleiros dão tudo na partilha. Partilham fotos (as famosas selfies de pescoço retorcido, que daqui a uns anos renderão boas verbas aos ortopedistas do país), partilham vídeos (não dos concertos, mas sim das suas próprias reações a determinado êxito), partilham comentários sobre experiências que vivem de forma fugaz e superficial. Não por acaso, os brevíssimos vídeos do Snapchat ou Boomerang (uma aplicação do Instagram) falam a língua desta turba mais ou menos jovem.
A comunicação verbal é outro dos pontos fortes desta tribo: no sábado à noite, os canadianos Arcade Fire deram um dos espetáculos mais contagiantes que me têm passado pelos olhos e ouvidos nos últimos tempos. A sua descarga de energia e musicalidade embateu, porém, numa barreira de paleio constante que, à minha volta, fazia do recinto do festival um verdadeiro bar ou café. Não sei do que fala cada um destes pagantes (e se, para quem vem de fora, o passe é uma pechincha, para bolsos nacionais nem por isso), mas suspeito que tenham uma vida bem mais excitante do que a minha, capaz de fornecer material para horas e horas de conversa. Confesso-me invejosa, claro, mas, mais do que isso, gostava bastante de ouvir o que dizem Win Butler e Regine Chassagne aos fãs que, lá mais à frente, os conseguem escutar.
Atrás de mim, uma moça promete que se calará “quando chegarem as canções que me interessam”. Não cheguei a saber que temas seriam esses, pois desisti de ver o concerto junto de outros humanos e acabei por fugir para as “alas” do recinto, onde o ruído é mais suportável. Trajeto inverso faziam hordas de cidadãos permanentemente insatisfeitos. Tenho para mim que, tal como não existe o emprego perfeito ou o marido ideal, o spot perfeito para ver um concerto é, exceção feita aos fãs de primeira hora que dormem à porta do recinto para ficarem colados às grades, uma ficção. Terá a ideia de mobilidade penetrado demasiado a mente das novas gerações? Talvez lhes fosse mais proveitoso escolherem um cantinho e contentarem-se com ele até ao final do concerto ao invés de, às portas do encore, ainda andarem a calcorrear o recinto em busca do ponto G para a enésima selfie ou o encontro com aquele amigo que afinal já foi para casa. Assim, evitariam também calcar, dar cotoveladas e encontrões e entornar cerveja no cabelo que, notem bem, eu já levo apanhado para não vos estorvar as olímpicas maratonas.
Música e amigos, sol e cerveja: os festivais de música continuam a ser eventos privilegiados nos nossos calendários de maio a setembro, e ninguém deseja que neles estejamos como numa missa. Mas seria de bom-tom lembrar que em cima do palco estão, regra geral, pessoas especiais, abençoadas com algum tipo de talento ou, pelo menos, mais formosas do que nós. É por isso que os põem lá em cima, enquanto nós ficamos cá baixo; paremos de nos fixar no nosso reflexo, feitos narcisos compulsivos, e admiremo-los.