EURO 2016

O Ederzito, que agora é meio trambolho, é o melhor trambolho que há

Depois da euforia nas ruas com a chegada da seleção, caiu-nos no mail um texto de alguém que dizia ter sido capitão da equipa onde Éder jogou quando era miúdo. Confirmámos a história e pedimos para refazer o texto que nos tinha chegado à caixa de correio. O resultado vem em baixo - e traz revelações nobres sobre o homem que marcou o golo da final

TEXTO DIOGO SANTOS, EX-COLEGA DE EQUIPA DE ÉDER NO ADÉMIA

Já lá vão uns 15 ou mais anos, e nessa altura e ao contrário do que acabou por suceder em França, nem sempre poderíamos contar com o Éder para nos ajudar a desfeitear as defesas daqueles campeonatos das distritais da Associação de Futebol de Coimbra. Onde o Ederzito se fez Éder, no Lar O Girassol, importante eram os resultados escolares. E as coisas não poderiam ser mais simples: ou Ederzito trabalhava na escola ou não havia remates, passes, vitórias ou costeletas.

Chegou franzino. Mas mais ágil. Mais rápido. E mais alegre. Contagiou todos. Aos poucos, e no meio de alguma ingenuidade e crueldade típicas de quem tem uns 10 ou 12 anos, fomos percebendo quem ele era. É que dificilmente se chega a uma instituição de acolhimento quando a nossa vida, e a vida da nossa família… corre bem! E a vida do Éder não correu bem. Chegou miúdo e meio sozinho a Alcarraques, um lugarejo ali enfiado nos arredores de Coimbra. E quem é que quer chegar miúdo a Alcarraques quando se pode chegar miúdo a tantos outros sítios? Ninguém, digo-vos eu que vivi 20 e tal anos quase ali ao lado.

Já não sei precisar o ano, mas houve uma temporada em que o Adémia passeou charme nas distritais de Coimbra. Era um pecado jogarmos às 11h, para tão pouca gente, num pelado e com bolas de tonelada e meia. Chegámos a partir tudo num vertiginoso 3-4-3. Na frente, era o Éder (ou Dwight Yorke), o André Tejo (ou Pavel Nedved) e o Mauro (uma espécie de Ronaldinho). Nas costas deste tridente, e vou só nomear dois craques para que não se assustem: o Tiago (ou Pirlo, vá), e eu (Rui Costa, claro!). Não me parece que tenhamos vencido alguma coisa digna de destaque, mas era tão divertido jogar à bola com esta malta.

Quando a Premier League começou a crescer de forma desmesurada, também se alargou ali para Coimbra. O Éderzito não perdia um jogo do Manchester United. Eu apaixonara-me pelo Liverpool. Era comum, quando o horário de jogo nos permitia, dar um pulo a um local qualquer com TV para ver a bola. E o Ederzito era mesmo maluco pela aquela equipa aborrecida. Tanto que, em alguns jogos, ele vestia a camisola azul ou branca da Associação Desportiva e Cultural da Adémia por cima da do United. Mais do que isso, ainda hoje não sei se era em tom de gozo ou se com a maior seriedade do mundo que o Ederzito dizia que iria jogar na Premier League. Hoje, como não achar que o meu mano estava mesmo a falar com a mais pura seriedade que há num garoto de 12 anos?

Estávamos em Alcarraques, Adémia, Coimbra, os Blur ainda nem se tinham separado, e aparece-vos um feiticeiro a fazer uns truques com a bola. Como é que se lida com isso? Sobretudo, como é que o Ederzito lidava com os comentários mais infelizes? Era à Éder: dominava no peito, com o pé de apoio meio de esganfia, girava para a direção da baliza, e PUMBA… Fez isto um montão de vezes, a última delas até nos vale o primeiro título em selecções seniores de futebol. Uma vez, fomos ambos convocados para a selecção de Coimbra - e tanto há para falar sobre estas selecções. A minha mãe, com uma carrinha de 2 lugares, lá me levou a mim e ao Éder ao pelado de Taveiro. Estavam lá uns 20 ou 30 miúdos, oriundos de gigantes como, e por ordem de grandeza, o União de Coimbra, a Naval 1º de Maio e a Académica. Tínhamos as chuteiras mais baratas. As caneleiras mais ranhosas. As meias mais esburacadas. Os calções mais largos. E eu ainda fui chamado mais um par de vezes… ao Éder, ainda nem sei bem como é que a minha mãe lhe explicou que não era a vez dele. Eu acho que ajudei a explicar com algum palavreado que não posso colocar aqui. Mas diziam por lá, meio que aos cochichos, que ele teria de ficar de fora por ainda não ter nacionalidade portuguesa.

FOTO REUTERS

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Então e as costeletas? Há mil versões dessa história, mas eu acho que tudo começou a ganhar proporções épicas durante um jogo em que massacrámos uma equipa qualquer. Acho que foi 17-0. E, se a memória não me falha, foi o dia do primeiro hat-trick do Ederzito. Eu também marquei 3, mas para mim tratou-se da primeira e da última vez. O senhor do talho - aproveito para fazer publicidade aos negritos que são inacreditáveis e mereciam excursões como aquelas que a malta faz pelo arroz de lampreia e eu não entendo - começou a oferecer costeletas a torto e a direito. O Ederzito, dando uma de Éder, disse logo que as costeletas eram para a equipa toda. E assim se fizeram umas grandes grelhadas mistas com costeletas, entremeada, negritos e refrigerantes manhosos.

Eu depois acabei por abandonar a Associação Desportiva e Cultural da Adémia. Fui contactando o Ederzito ou por telemóvel ou na rua num acaso qualquer. Segui todos os passos dele. Tentei sempre ter fontes próximas dos clubes por onde foi passando. E fomos falando algumas vezes e a última foi há poucos meses - a convidar-me para ir ver um Swansea-Liverpool. Ele ainda acha que naquele Adémia havia 2 ou 3 craques com mais jeito do que ele. E eu se calhar nunca lhe disse que nem todo o jeito do mundo é capaz de superar o trabalho. E a garra. E a crença. E a força. E a resiliência. E a coragem. E a bravura. O Ederzito agigantou-se. Ganhou músculos e muitos mais centímetros. O Ederzito cumpriu os sonhos dele. Cumpriu os meus. E os de todos os miúdos da Adémia, de Alcarraques, de Coimbra, de Portugal, e até da Guiné! O Eder, que agora é meio trambolho, é o melhor trambolho que há! E um dia destes eu vou conseguir olhar para aquele golo na final do Campeonato da Europa com distância e, nesse dia, talvez consiga dizer que o Éderzito é capaz de não ser o melhor jogador do mundo.

RESCALDO DO EURO 2016

Portugueses comem coq au vin. Franceses batem “no engenheiro” e… em Barroso

FRUSTRAÇÃO O desânimo de fãs franceses depois da derrota face a Portugal FOTO REUTERS

FRUSTRAÇÃO O desânimo de fãs franceses depois da derrota face a Portugal FOTO REUTERS

Franceses ainda não digeriram a derrota no europeu de futebol e começam a compreender melhor “as ilusões perdidas” que o fado canta. Mas já encontraram outro português para bombo da festa: Durão Barroso

TEXTO DANIEL RIBEIRO, CORRESPONDENTE EM PARIS

Imaginem a cara dos franceses que se deslocaram a La Grillade (Churrasqueira), um dos muitos restaurantes portugueses do centro da tranquila cidade de Saint-Maur-des-Fossés, na região parisiense, para almoçar ou jantar no dia da final do Euro 2016. O restaurante propunha dois pratos especiais: um, normal, com bacalhau, mas o segundo era Coq au vin (galo bêbado), um dos mais tradicionais pratos franceses. A cena foi reportada nesta terça-feira pelo diário “Le Parisien”, que interrogou o patrão sobre alguma eventual malícia da sua parte, dado que o galo é o símbolo da seleção francesa. “Não tem nada a ver com a equipa francesa nem com o jogo, já estava programado há muito tempo”, respondeu-lhe ele, simplesmente.

Dois dias depois da grande final, os franceses ainda não digeriram a derrota e todos ou quase a consideram “injusta e cruel”, como a qualificou o selecionador Didier Deschamps logo a seguir ao apito final do árbitro. A amargura é natural. Nunca lhes passara pela cabeça perder com os portugueses, sobretudo porque demasiados milhões de “galos” andavam, nos últimos dias, muito arrogantes e com a soberba demasiado evidente na crista. Os franceses tinham eliminado a Alemanha, e Portugal “não jogava nada”, como cantavam de forma obsessiva e ostensiva, no próprio dia do jogo, alguns especialistas nas rádios e nas televisões.

Dois dias depois, eles continuam com “dores na alma”, como escreve o “Le Parisien”. A deceção foi sem dúvida enorme e as lágrimas de muitos adeptos e jogadores ainda não secaram completamente porque, para todos, “a vitória era certa”. A Federação Francesa de Futebol tinha reservado um dos mais belos hotéis de Paris – o Hotel Molitor (cinco estrelas, cuja piscina é celebre) – para a enorme festa do título com jogadores, técnicos e centenas de convidados VIP. Afinal o que se viu no hotel foi deceção, tristeza e muitos lamentos. “Parecia um funeral”, escreve “Le Parisien”, sobre o ambiente nessa noite, dentro do hotel.

Todos os jornais, todas as rádios e televisões ainda continuavam a chorar nesta terça-feira, apesar da edição da tarde de ontem (datada de hoje) do “Le Monde” ter evocado o “caso da derrota” dos tricolores através de uma muito original e interessante crónica. Aí se lia, com grande prazer para um leitor português: “A França chora como num fado a sua final e as suas ilusões perdidas”. Benoit Hopquin, que assina o belo texto e confessa ter começado a jogar e a gostar de futebol por causa do fascínio do génio de Eusébio, até evoca na prosa a “saudade francesa”. Está bem visto: desta vez, a saudade do título de campeão ficou em França, com os franceses, que sempre gostaram imenso de fado e que agora, depois da imensa desilusão, certamente ainda o irão compreender melhor.

Os “galos” estão realmente “inconsoláveis”, como escreve “Le Figaro”, que acrescenta: “Os (jogadores) franceses têm encontro marcado com a Taça do Mundo de 2018 para definitivamente curarem as feridas desta maldita noite (da final) ”, conclui este jornal.

No entanto, nas ruas, lojas e cafés de Paris, as pessoas ainda se lamentam, mas já há sinais de que começaram a virar a página. “Portugal foi mais realista, não mereceu, mas ganhou, ponto final”, dizia esta manhã ao Expresso o dono do restaurante-bar Rey, na praça Léon Blum, em Paris, onde se sofreu muito na noite de domingo passado.

Por este motivo, tudo deixa prever que os críticos franceses da seleção das quinas vão acalmar-se nos próximos dias. Nem pode ser de outra forma. Até porque, além de a passagem do tempo também contar nestas coisas de atenuar mágoas, esta terça-feira os jornais já não batem apenas no “engenheiro Santos”, que “gosta de jogar feio e ganhar”. Já arranjaram outro bombo da festa português: Durão Barroso, que, esse sim, está a levar forte e feio por se ter “transferido” para o banco Goldman Sachs . O “Libération” faz manchete com ele e chama-lhe “Barroso, sem fé nem lei”. “Le Monde dedica-lhe um editorial, com o título “José Manuel Barroso, o anti-europeu”. “A (debilitada) Europa não tinha necessidade disto”, escreve Le Monde.

Em França, o português que está a levar mais pancada já não é “o engenheiro Santos”.