A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Iraque: a tortura que mudou a América

Ao derrubar o ditador que unia três tribos, os EUA abriram as portas à redefinição do mapa do Iraque e do Médio Oriente. É isso que está a acontecer neste momento. Mas, já que estamos aqui, convém recordar outra coisa. Se a América mudou o Iraque, também é verdade que o Iraque mudou a América. No contexto da imprecisa "guerra ao terror", o Iraque foi palco de muitas mudanças na psique americana. Exemplos? Membros de uma Administração (Bush) desenvolveram posições ambíguas ou de legitimação da tortura. Basta pensar nos famosos documentos de Alberto Gonzales e John Yoo. Repare-se que não estamos a falar de memorandos obscuros escondidos num cofre da CIA. Estamos a falar do Procurador Geral e Procurador-adjunto da época. "As técnicas de interrogação reforçadas" (sempre a novilíngua) eram legítimas, diziam eles, porque existia um estado de emergência que exigia concessões no estado de direito e nas próprias leis da guerra.

Apesar de ser uma série de ficção científica, a segunda aparição de Battlestar Galactica (2004-2009) foi marcada por este ar iraquiano que atravessava a sociedade americana. Na narrativa, a humanidade foi atacada e quase destruída por um bando de robôs, os Cylon, que tinham sido criados pelo homem há muito tempo. Enclausurados num frota de pequenas naves civis protegidas pela Galactica, os sobreviventes tentam escapar à armada Cylon. O estado de emergência é óbvio. Ora, ao longo dos episódios, é evidente que Battlestar Galactica é atravessada pela tensão da sociedade americana pós-Iraque, a tensão entre o desejo de segurança e o desejo de manter os valores da liberdade. Isso é claro, por exemplo, nas cenas de tortura dos Cylon (inspiradas por Abu Ghraib), que entretanto adquiriram aspeto e emoções humanas. Alguns até desenvolvem relações amorosas com humanos. Por outras palavras, Galactica abordou o dilema clássico da tortura, dilema que a América passou a tratar por tu: como foi tão desumanizado, o outro já não é um homem, é uma coisa que está fora da esfera humana; a sua não-humanidade legitima assim a desumanidade da tortura que é feita, repare-se, em nome dos valores da humanidade. Esta série é poderosa porque mostra como o outro tem sempre um lado humano. Se um robô pode entrar na esfera da humanidade, o que dizer de um islamita?

Além da tortura, Battlestar Galactica reflecte sobre o excesso de poder militar. Num dos episódios mais reveladores, a frota de Galactica liderada pelo Almirante Adama encontra outra nave militar que sobreviveu ao ataque inicial, a Pegasus da Almirante Cain. O choque entre os dois assemelha-se ao choque entre duas pulsões americanas pós-9/11. Cain é implacável. Ao invés de muitos na Galactica, recusa reconhecer humanidade nos Cylon humanóides. Em acréscimo, recusa obedecer às autoridades civis. A guerra legitima tudo. Adama, por seu lado, sabe que sobreviver não chega. É preciso sobreviver mantendo alguma decência, caso contrário a guerra acabará por destruir aquilo que se está a defender. A América contemporânea foi atravessada por estas duas atitudes. Exemplos? Há uns anos, o Supremo Tribunal obrigou o Pentágono a dar garantias legais aos presos de Guantánamo. Neste momento, o debate gira em torno dos limites da NSA. Sobreviver não chega.

PS: à sexta, esta crónica procura ser a "Janela Indiscreta", rubrica que tenta ver as coisas através de um filme, série, livro ou disco.