Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Não preciso da justiça para condenar Sócrates

Um caso moral antes de ser um caso legal

Um caso moral antes de ser um caso legal

Não preciso da justiça para fazer uma condenação moral de Ricardo Salgado. Aquilo que conhecemos chega e sobra para um julgamento moral que está a montante do julgamento judicial. Aliás, uma sociedade livre não pode desistir deste juízo que é independente das alíneas jurídicas. As sociedades atadas ao respeitinho salazarista é que delegam nos tribunais a exclusividade do juízo moral, limpando as mãos como Pôncio. Salgado cometeu crimes? Essa decisão cabe à justiça, mas antes da voz do juiz convém que Salgado oiça a nossa voz: cometeste imoralidades, meu caro, e o teu nome estará para sempre manchado. Não, não preciso do sucesso jurídico da lei (uma condenação legal) para fazer o meu juízo moral sobre os Espírito Santo. E o mesmo se passa com José Sócrates. O que eu acho estranho é o duplo padrão de grande parte da imprensa e comentadores. Quando se fala de Ricardo Salgado, a justiça é uma nota de rodapé; toda a gente critica (e bem) o banqueiro partindo do pressuposto de que ele é culpado, que vivia num mundo de impunidade, etc. Quando se fala de Sócrates, a crítica impiedosa dá lugar ao cálculo medroso e à ideia de que a justiça também está a ser avaliada, etc. etc. É verdade, a justiça também está a ser avaliada, mas aquilo que já sabemos chega e sobra para uma condenação moral do indivíduo em questão.

O ministério público alega que o amigo de Sócrates Carlos Santos Silva é o testa-de-ferro do dinheiro ilegal do ex-primeiro-ministro. Sócrates alega que não senhor, que o dinheiro é mesmo do amigo, que o dinheiro é legal, que é fruto do esforço do amigo, ele está apenas a beneficiar de uma amizade normalíssima. Como toda a gente sabe, os verdadeiros amigos dão malas de dinheiro quase todos os dias a outros amigos. Num ato de misericórdia, vamos assumir que isto é verdade. Vamos assumir que Sócrates está apenas a beneficiar da amizade do amigo. Ilegal? Não. Mas é abjeto. Carlos Santos Silva enriqueceu durante o socratismo, porque o governo Sócrates deu centenas de milhões em empreitadas à empresa Lena. Ora, depois de ter dado objetivamente dinheiro ao amigo enquanto primeiro-ministro, Sócrates começou a receber desse mesmo amigo malas de dinheiro assim que saiu do poder. Eu não preciso de um acórdão da justiça para dizer que tudo isto é abjeto, é um cenário imundo que devia transformar Sócrates numa personagem infrequentável para qualquer pessoa, sobretudo para um socialista.

Como é que não há um único socialista (com a exceção de Henrique Neto) com coragem para dizer que o comportamento de Sócrates é indecente? Como é que não há no Largo do Rato um pingo de clareza moral? Um ex-primeiro-ministro do PS recebeu milhares e milhares de euros em malas de dinheiro oriundas de um homem que enriqueceu com a governação Sócrates; a forma e a substância da cena são imundas, mas ninguém no PS é capaz de dizer que José Sócrates manchou o nome do PS e da democracia. Em vez de mostrarem clareza moral, os socialistas têm difundido a tese técnica e amoral (“deixemos a justiça fazer o seu trabalho”) ou a tese imoral do “preso político”. Lamento, mas Sócrates não é um preso político, é só um político preso que devia estar sozinho, mas que estranhamente continua acompanhado. E isso é estranho.