Separação de poderes. A nossa e a de Angola
Não sou de teorias da conspiração e acredito no Estado de Direito, mas confesso que a decisão do Tribunal da Relação no caso de Manuel Vicente me deixa desconfiado. É verdade que do ponto de vista institucional, da relação entre os dois países, a transferência do processo é positiva porque permite restabelecer a ponte entre Lisboa e Luanda, mas fica a sensação de que as mais altas pressões funcionaram, cumpriram o objetivo. Manuel Vicente resolveu o seu “irritante”. Pode agradecer a Portugal.
Ponhamo-nos no papel de Angola: será que permitíamos que um nosso ex-primeiro-ministro fosse julgado em Luanda? Provavelmente não. Ou seja, desse ponto de vista percebe-se que as autoridades angolanas quisessem que a questão do seu ex-vice fosse resolvida em casa. O problema é que as razões angolanas não passavam apenas por uma questão de soberania e respeito institucional. As razões angolanas prendiam-se também com o medo (fundado?!) de se abrir uma caixa de Pandora. De expor ao mundo um regime podre e capturado pelos interesses de uma classe dirigente em prejuízo do povo. Se Vicente fosse julgado em Lisboa, outros poderiam seguir-se. As cumplicidades e os negócios entre Portugal e Angola não são todos exemplares. Luanda quer ser um novo Estado, no caminho da transparência e Democracia, mas precisa de tempo para o provar e os decretos presidenciais não eliminam assim tão facilmente o poder das elites.
Como todos sabemos as relações entre os dois países são muitíssimos relevantes. Em Angola, a comunidade portuguesa tem um papel importante no setor privado e em algumas áreas do público – das empresas ao ensino. Por cá, os angolanos encontraram portas de entrada: para a Europa e para as empresas. Nos anos da troika, o dinheiro angolano circulou como quis na economia aflita e, claro, em esquemas menos próprios. O alegado suborno a um procurador - 760 mil euros em troca de um arquivamento – é um caso sério demais.
Chegou depois o tempo das pressões. Avisos e jogos de poder que ganharam eco nos palácios de Lisboa: Belém e São Bento. O corte de relações tornou-se evidente, da ausência do embaixador em Lisboa à “ofensa” sentida por João Lourenço com a atuação da justiça portuguesa. A agitação foi tal que até o “fim” do mandato de Marques Vidal pareceu estar a ser servido ao “pais irmão”. Angola estava a vencer o braço de ferro. A Relação deu o empurrão que faltava. O Ministério Público fica com o revés.
O crime, o procurador e a lei têm bandeira portuguesa. Mas Manuel Vicente, se alguma vez responder em tribunal, só o fará bem longe daqui. Os que aplaudem a decisão, falam do interesse dos Estados e do bom senso. A justiça funcionou, acrescentam. A conclusão parece apressada. No Estado de João Lourenço – que agora terá de provar - o poder político continua a falar pela Justiça. É óbvio que a separação de poderes que vacila em Angola nada tem a ver com Portugal – apesar das reações políticas de Marcelo e Costa à decisão judicial -, mas a decisão da Relação não me encheu de certezas.
Dirão que funcionou a real politik. Claro que sim. Não é sempre ela que vence? Ao permitir que não se julgue aqui quem aqui cometeu o crime, a justiça portuguesa fez suspirar de alívio a diplomacia. O “irritante” desapareceu, mas deu lugar a outro sentimento: a desconfiança. Digam o que disserem, a decisão de transferir o processo para Luanda não pode ser lida como ato único e despido de contexto. Ela traz uma história que nos permite, no mínimo, perguntar se não terá sido contaminada pela política. Se Angola temia a tal caixa de Pandora, não teremos nós aberto a nossa?