Cultura

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Mar aberto

“El Olvido”, Maya Saravia Foto Mariana Lopes

“El Olvido”, Maya Saravia Foto Mariana Lopes

À oitava edição o festival açoriano Walk & Talk consolida um lugar artístico internacional feito de cruzamentos entre o local e o global: de São Miguel para o mundo e vice-versa

Texto Celso Martins (o Expresso viajou a convite do Walk & Talk)

No momento em que lê este artigo, há um lugar no Largo São João em Ponta Delgada onde pessoas se encontram, comem, conversam, ouvem música e sobretudo existem em conjunto. O Pavilhão Temporário criado pela dupla de arquitetos Mezzo Atelier é uma das grandes novidades da 8ª edição do Festival Walk & Talk, mas o espírito que o anima está inscrito no evento desde que, em 2011, um grupo de jovens se atirou à criação de uma plataforma de convergência entre os artistas e a população açoriana. Fazer comunidade, fazer arte com e para as pessoas comuns e ao mesmo tempo expor essa população a outras experiências de vida é a trave mestra do festival e tem sobrevivido a todas as suas naturais transformações e dores de crescimento.

Entretanto, passaram oito anos e um festival artístico que começou por ser feito em grande medida em torno da capacidade de atrair criadores da área da Street Art - cujas intervenções são, na sua maioria, ainda visíveis em vários locais da cidade - transformou-se num acontecimento multidisciplinar capaz de gerar experiências artísticas na área do teatro, da música, da performance e da arte contemporânea. À margem dos circuitos institucionais mais centralistas e alheio à oferta cultural do tipo franchising, o festival encontrou a chave da sua existência num dispositivo em rede que acolhe residências artísticas de criadores do continente e estrangeiros, explora as condições identitárias micaelenses e os seus lugares e lida com a realidade sócio-económica da ilha num âmbito mais alargado. Neste contexto é decisivo o circuito de Arte Pública, cuja edição deste ano tem curadoria de Dani Admiss e parte da premissa de que, em vez de uma entidade fechada ou uma barreira natural, uma ilha é uma placa giratória de comércio, ciência, cultura e viagem.

As intervenções são muito variadas e em lugares diversos. Ao longo do muro do porto, Navine Khan Dossos inscreveu um conjunto de bandeiras que soletram o nome “Georgiana”, uma referência a Georgina Leonard, uma mulher que no século XIX se fez passar por homem e cruzou os mares em navios baleeiros até ser desmascarada.

Luiza Prado e Daniel Rourke exploram questões coloniais e da história política contemporânea associadas às ilhas dos Açores e da Madeira (do comércio de escravos à cimeira dos Açores de 2003), num projeto feito de colagens públicas cujas referências são desmultiplicadas entre diferentes lugares.

“Black Cells”, 2018, Diogo Evangelista Foto MARIANA LOPES

“Black Cells”, 2018, Diogo Evangelista Foto MARIANA LOPES

As condições naturais da ilha são igualmente pontos de partida para certas intervenções. Vejam-se as duas cabines do projeto Shift Register (Jamie Allen e Martin Howse) colocadas no Centro de Artes do Arquipélago da Ribeira Grande, que recorrem a lasers e a espelhos para medir a atividade sísmica da ilha, ou o projeto Declimatize (Sascha Pohflepp & Chris Woebken), que estudou as condições botânicas da ilha e criou um jardim que, de um modo simultaneamente utópico e crítico, tenta antecipar as condições da vegetação em 2100. Já no Museu Carlos Alberto, Nora Al-Badri & Jan Nikolai Nelles mostram a projeção de uma onda realizada a partir de dados climáticos e meteorológicos.

A exposição mais curatorial do programa deste ano ficou a cargo da dupla Luís Silva e João Mourão. “Untitled (How does it feel) reúne 8 artistas sob o fio condutor das relações entre o olhar e o desejo aqui dissecadas em trabalhos muito diversos mas que têm em comum as coincidências entre o ver e o querer. A mostra acontece na divisão de topo de um centro comercial, um edifício com terraço e uma estranha piscina inacabada construído no final dos anos 70 quando as sereias do consumo se começaram a fazer ouvir. Num espaço que nunca encontrou verdadeiramente uma vocação (foi ginásio, escritório, armazém), as obras surgem como configurações do olhar movidas à força do desejo. Essa tenção pode desvendar-se entre o vídeo com um olho que é olhado de João Romão e os búzios das suas fotografias que resguardam o seu mistério; nos apontamentos escultóricos com materiais vulcânicos de Joana Escoval que apropriam a própria ilha ou na fotografia de Amália Pica que tenta emoldurá-la; no jogo de suspensão dos “buracos” negros de Diogo Evangelista que prometem um além-mar da matéria e a visita extraterrestre das pinturas sobre papel de Bruno Pacheco que torna a curiosidade num assunto interplanetário. O desejo é ainda a mola propulsora no vídeo de Anna Franceschini que transforma “souvenirs” baratos em opulentas obras de arte; que alimenta o olhar etnográfico eroticamente intensificado de Jonathas de Andrade ou inspira o espaço convivial e amoroso em que Luís Lázaro Matos transformou a piscina. E talvez seja sobre isso mesmo a exposição, o desejo como ignição de si mesmo, da partilha, da descoberta, da consumação.

“Shift Register, Eye land band width”, Jamie Allen & Martin Howse Foto ÁLVARO MIRANDA

“Shift Register, Eye land band width”, Jamie Allen & Martin Howse Foto ÁLVARO MIRANDA

Entretanto, noutros pontos da cidade e potencializando espaços urbanos vivos, as propostas diversificam-se. Entre workshops, ateliês e visitas guiadas há exposições como a de Manuela Marques (Galeria Fonseca Macedo), cujas imagens sobrepõem várias camadas de perceção do tempo (cósmico, telúrico, científico, pessoal) recorrendo a registos de medição da atividade sísmica e imagens de formações resultantes dessa atividade; em “El Olvido” (Instituto Cultural de Ponta Delgada), a guatemalteca Maya Saravia recupera o nome de um bar do seu país para criar um ambiente que expõe de forma cruzada as relações entre lazer, divertimento, convivialidade, consciência e alienação política, numa das mais sólidas criações desta edição.

Na Galeria Arco 8 mostra-se “O mar torna o horizonte numa miragem”, da artista açoriana Margarida Andrade, que recorta o desenho da ilha em diferentes suportes e dispositivos.

Como desde o início o seu nome promete, o Walk & Talk é uma forma de atravessar a ilha e de ser atravessado por ela, esbarrando aqui e ali com a história, a identidade e a condição presente ou com a indiscreta antecipação do futuro. Até dia 14 há um mar aberto a todos os encontros em São Miguel. Mais informações AQUI.