EURO 2016

Como esfolar um gato, por um engenheiro

TEXTO RICARDO COSTA

Há mais de uma maneira de se esfolar um gato. Não há português que não saiba isso. Mas Fernando Santos sabe mais que todos nós e mostrou ao mundo que a coisa se pode fazer devagar devagarinho, sem convencer a maioria dos espetadores e comentadores, estando-se nas tintas para as críticas, cometendo erros e corrigindo-os todos à sua maneira e a seu tempo e, mais extraordinário, acertando em rigorosamente todas as substituições que fez nos sete jogos. Até na última: uma equipa que jogou quase sempre sem ponta de lança, mete o único que tem no banco e que foi a França porque, enfim, não há muitos pontas de lança na pátria e ele não só cumpre taticamente o que lhe é pedido, como ganha quase todas as bolas disputadas, arranca faltas sobre faltas e acaba a marcar um grande golo.

Há mais de uma maneira de se esfolar um gato, mas não estou a ver melhor maneira de se ganhar à França. Uma espécie de Aljubarrota jogada fora de casa. Não éramos menos que os outros, mas ficámos logo sem o Cristiano Ronaldo. Ainda por cima às mãos de Payet, que agora é odiado por todo os portugueses, mas que fez um soberbo campeonato e é uma espécie de Quaresma lá do hexágono, com uma carreira que, bem, tem tanto de genialidade como de tropeções. Pois bem, Payet fez um campeonato de sonho mas borrou a pintura e deu-nos aquele suplemento de alma que faz com que tudo seja possível. E foi.

Ganhar assim é melhor que a dar baile

Pois bem, ganhar assim é muito melhor que ganhar a jogar a dar baile, com olés nas bancadas e gritos de “só mais um”. Pode ser que um dia algum treinador nos ponha a dar baile em torneios deste nível, mas duvido que nos dê tanto gozo. Admito que os alemães tenham ficado em delírio com os sete golos que marcaram ao Brasil há dois anos, mas, para eles perceberem o que nós sentimos hoje, precisavam de ter um jogo com uma fratura exposta do Neuer, uma lesão do Muller, uma expulsão do Ozil, três cortes em cima da linha do Boateng e, no final, um golo de um jogador repescado já durante o estágio da seleção.

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Tenho a certeza que os espanhóis tiveram noites de glória ao ritmo do tiki-taka, da regra e esquadro do Iniesta, do génio de Xavi e de um controlo de jogo quase total. Mas isto, para vocês, caros vizinhos, era o mesmo que serem campeões sem um jogador do Real ou do Barça em campo, com um golo de um avançado do Granada depois do Sérgio Ramos ter atirado três cabeçadas ao poste e o Morata falhado dois golos de baliza aberta. Não sabem o que isso é, pois não?

À nossa escala, foi mais ou menos isso que aconteceu. E não foi nos 90, perdão 120, minutos de hoje. Foi aos poucos, em sete jogos de coração na mão e relógio no pulso. A seleção jogou muitas vezes mal, bastantes vezes assim-assim, de quando em vez bem e por alguns períodos muito bem. Mas corrigiu sempre que jogou mal, naqueles momentos em que o nosso meio campo parecia um hino à anarquia. Com umas palavras ou uma substituição a coisa lá encarreirava e as peças batiam todas umas nas outras. E quando isso acontecia, a verdade é que Portugal jogava bem, num bloco muito sólido capaz de enervar as outras equipas, trocando bem a bola, envolvendo e enervando os adversários.

O "frasista" Fernando Santos

Parece que havia quem adormecesse no sofá a ver os nossos jogos. É o que se escreve lá fora, nalguns jornais estrangeiros, perante a surpresa de uma equipa que tem Pogba e Matuidi a carburar e um Sissoko a turbo não ter levado a taça. O que esses críticos não perceberam é que esse bocejo era o longo esfolar de um gato, ao estilo de Fernando Santos. Um “frasista muito bom”, como lhe chamou um jornalista brasileiro. Mas só agora é que esse jornalista e, já agora, nós todos descobrimos esse “frasista”. Porque as frases de Fernando Santos são como as suas equipas: normais, simples e sólidas.

Ele não diz nada à Mourinho, não provoca nem puxa por ódios ou amores ao primeiro som. Nem faz nada à Scolari, o maior marqueteiro que já passou por Portugal. Mas faz tudo simples e sem grandes desvios e hesitações. Portugal é o que é e Fernando Santos percebe isso bem. Temos o melhor do mundo longe da sua melhor forma e uma seleção que até podia jogar de outras maneiras, mas que só podia ganhar de uma.

Fernando Santos não vai em modas mas também não é de ideias feitas. É engenheiro e adapta os seus processos as problemas que tem pela frente. Vejam como percebeu que Moutinho não rendia muito mas, ao mesmo tempo, que Renato tanto explodia como cometia erros. E foi assim que mesmo quando todos diziam que Renato tinha tirado o lugar a Moutinho, este voltou a jogar muitos minutos porque a equipa precisava de alguém com um rigor tático e uma calma que Renato Sanches ainda não tem.

Éder, o ex-patinho feio

A verdade é que não é muito normal uma equipa conseguir jogar com todos os jogadores de campo num torneio tão curto. Só os dois guarda-redes suplentes, Eduardo e Anthony Lopes, é que não jogaram. O que esteve menos tempo em campo foi um dos que mais gente pedia para jogar, Rafa. O segundo foi o que mais gente pediu para não ser convocado e rezou para não ele jogar, Éder. Mas jogou duas vezes, da primeira naquele estilo atabalhoado que lhe conhecemos e sem grandes ganhos contra uma Islândia muito confiante; da segunda, foi o que sabemos e que nunca vamos esquecer.

Os alemães ganham muito e ganham quase sempre da mesma maneira, limpinho e com uma eficiência que nós nunca teremos. Os espanhóis ganham muito e também quase sempre da mesma maneira, com um poder coletivo inimitável. Os italianos, enfim, não ganham tanto mas são os reis da matreirice. Mas ninguém ganha como nós, com o melhor lesionado, um guarda-redes de luxo, um meio-campo readaptado duas ou três vezes durante 120 minutos e um golo do patinho feio. Só nós.

Agora, tentem imitar-nos.