Vamos então à moralização
Já aqui disse que o legado político de Sócrates é do Partido Socialista. Se é para a modernização do parque escolar ou para a aposta nas energias renováveis também o é para a promiscuidade, provavelmente criminosa, entre o primeiro-ministro e interesses empresariais. Esse é um legado coletivo. Também já aqui escrevi que assumir isto não pode permitir que se assuma, a bem da verdade e da ética política, que a corrupção é um problema do Partido Socialista. Não é. É uma reflexão coletiva perante um problema que é transversal pelo menos aos partidos do antigo arco do poder: PS, PSD e CDS.
Quem acha que o caso de Sócrates vai servir para fazer essa reflexão desengane-se. Com os bons resultados económicos e sociais deste governo, a direita vai usar este caso para tentar pôr o país a falar apenas do passado. E é provável que consiga. A sua tropa de choque está de volta e passará por cima da seriedade sóbria de Rui Rio. Fez, aliás, tudo para que ele não chegasse à liderança do PSD. Para ajudar, os mortos-vivos estão de volta. Quando Manuela Moura Guedes e “Correio da Manhã” são transformados em exemplo de ética e profissionalismo para órgãos de comunicação social de referência percebemos que as facas estão mesmo a ser afiadas. Todos são chamados a participar.
Há anos que espero por esta exigência. Mas sei porque se sente tão à vontade para atirar pedras sem critério quem tem tantos telhados de vidro: contam com a total ausência de pluralismo na comunicação social. Sabem que estão a salvo de um escrutínio verdadeiramente consequente
O grande objetivo do PSD radical passista, que continua a dominar grande parte do espaço mediático, é criminalizar o Partido Socialista. O clima geral imposto permite-o, ao ponto de vermos pessoas como Maria Luís Albuquerque dar lições de ética republicana. Estamos a falar de uma ex-ministra que foi contratada por uma empresa que se dedica ao crédito malparado para usar a informação que ela recolheu quando vários bancos estavam intervencionados pelo Estado. É esta senhora que diz que o PS devia ter vergonha na cara. A que lhe falta, supõe-se.
Sentindo-se à vontade para esticar a corda, a ala passista do PSD e os seus porta-vozes mediáticos querem impor uma tese nunca vista em qualquer caso análogo por esse mundo fora: a responsabilização, por associação, de todos os membros do governo de Sócrates, tivessem ou não conhecimento ou participação em qualquer ato criminoso ou imoral do antigo primeiro-ministro. Uma tese interessante que abre muitas possibilidades.
A criminalização política por associação deve ser levada a sério. Assumindo que é mais responsável o primeiro-ministro pelos atos de um ministro que escolheu do que o ministro pelos atos do primeiro-ministro por quem foi escolhido, todos os anteriores líderes de governo devem ser responsabilizados até às últimas consequências por atos de ministros seus. Pelo menos praticados antes (tinham o dever de o saber) ou durante a participação no governo. O que significa que Passos Coelho está no banco dos réus políticos enquanto Miguel Macedo não for absolvido. Proponho, com base nesta versão radical e inédita de responsabilidade política, que todos os governos sejam passados a pente fino. Cavaco, Guterres e Passos incluídos.
Que Sócrates tenha consequências políticas não está no domínio da vontade. Terá. Mas o que não aceito é um movimento de moralização seletiva, imposto por quem não tem a nada a dizer sobre o país. Vamos então a isso. Vamos rever a matéria dada. Temos de exigir que se investigue finalmente a célebre história dos submarinos, um caso que teve consequências criminais no exterior e que aqui se ficou em nada. E que, quando se descobrir cá a parte que ficou a faltar do julgamento feito na Alemanha, todos os membros daquele governo sejam responsabilizados, a começar pelo ministro da tutela. E que todos os estranhos episódios sobre o financiamento do CDS, que morreram sempre em notícias inconsequentes, sejam vasculhados pelos heróis da investigação jornalística seletiva. E que o caso da compra e venda de ações do BPN por Cavaco Silva, fora de bolsa e com preço de favor, seja investigado e dele se tirem consequências políticas.
Temos o direito a conhecer os nomes de todos os avençados do BES. E quem acha que se deve responsabilizar ministros pelo comportamento pessoal do seu primeiro-ministro não se pode refugiar em purismos formais. Esta lista tem de incluir os nomes dos que, sem qualquer habilitação profissional, foram financiados, entre cargos políticos, pelo banco. Com o que sabemos hoje é legítimo pensarmos que quem foi tratado em gravações do Conselho Superior do BES como “amigo da casa” deve ser escrutinado em todas as decisões que tomou. Refiro-me a Durão Barroso e, por esta nova associação imposta, a todos os membros do seu governo. Se é para mexer no lixo e impedir que se fale do presente e do futuro, vamos a isso. Há anos que espero por esta exigência. Mas sei porque se sente tão à vontade para atirar pedras sem critério quem tem tantos telhados de vidro: contam com a total ausência de pluralismo na comunicação social. Contam com uma imprensa dominada por clones do “Observador” (para a elite) e do “Correio da Manhã” (para o povo). Sabem que estão a salvo de um escrutínio verdadeiramente consequente.