O POEMA ENSINA A CAIR
"A MINHA RAZÃO É O MEU CANÁBIS"
Nasceu em 1973, tem seis livros publicados, é tradutor, professor de português e poeta, mas se pudesse interferir no passado seria "piloto, cirurgião, ou cantor" para "trabalhar com pequenas filigranas e ter algum stress"
TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO
"NOSTALGIA
Perder uma fotografia
é perder
um momento
duas vezes."
Daniel Jonas chegou a ter aulas de guitarra clássica e a integrar uma banda como vocalista e gostou da experiência, mas foi entretanto dar aulas para "um sítio remoto" da Suécia, e o projecto da música foi interrompido: "até há relativamente pouco tempo continuava a achar que era uma coisa que devia fazer mas sublimei isso para a poesia. Sendo que a poesia é menos glamorosa." Já aconteceu alguns poemas migrarem para letras de canções, uma ideia que admite explorar: "de vez em quando tenho a ideia de fazer letras para outros cantarem. Já houve algumas vontades mas acho que aquilo que tenho feito ainda não serve muito." Considera que se o processo fosse ao contrário, "se me dessem uma música e dissessem põe aqui uma letra", talvez as coisas pudessem correr bem.
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, antes de literatura estudou teologia "por vocação": "não direi que gostava de ser um pastor protestante mas uma espécie de académico renascentista em questões religiosas."
Diz que lhe interessavam os estudos académicos religiosos, "senti uma espécie de chamada para ser religioso, para ser um pregador, uma espécie de pastor bergmaninano", mas que entretanto "as coisas mudaram." De qualquer maneira, explica, "de alguma forma, o poeta é uma espécie de profeta."
Cresceu no meio de muitos livros, também porque o pai trabalhava numa livraria e lhe trazia autógrafos de grandes escritores como o Jorge Amado, e o levava sempre à feira do livro, embora tenha escolhido dois livros de eleição desde cedo: a Bíblia e o dicionário.
Publicou o primeiro livro de poesia ainda na faculdade, pela mesma altura em que se iniciou na tradução, uma das actividades preferenciais de Daniel Jonas, a par com a escrita de poesia e o ensino de português num agrupamento de escolas do Porto: "o meu objectivo inicial no plano da tradução era traduzir coisas que eu queria ler e que queria ver publicadas em Portugal." Lançou-se, por isso, na tarefa de traduzir ao longo de dois anos "Paraíso Perdido" de John Milton para a tese de mestrado, "10565 versos que foram um desafio máximo. A partir daí aproveitei."
Terá sido essa experiência a abrir-lhe "o apetite para escrever sonetos", forma poética que privilegiou em alguns livros: "aquilo adestrou-me, de certa forma. A ideia de encaixar coisas e ideias apenas num formato, fazer jogos num formato muito estreito e espartilhado e fazer ali um argumento."
Explica que quando escreve "o grande objectivo é que haja um bom casamento entre música e razão", união melhorada quando "as formas fixas dos textos clássicos dão essa prisão necessária para abandonar aquela forma fechada."
Pergunto se essa restrição à partida não o empobrece por ser uma espécie de clausura, responde que pelo contrário: "enquanto recluso, entre aspas, tu namoras as paisagens de uma forma muito mais ávida do que se estivesses em campo livre. É a ideia da fome do recluso, como se a partir de uma lente tu captasses grandes planos, é esse desafio que me interessa."
Cultiva um tipo de soneto "avesso à forma portuguesa e mais perto da forma inglesa" em que se privilegia "um argumento onde depois há uma conclusão ou uma espécie de súmula nos últimos dois versos". Um desafio difícil, comento. Responde-me que o resultado é "um soneto esquisito".
Mas Daniel Jonas não escreve apenas sonetos. Tenta alternar esta forma clássica com outras mais livres, "tenho mais ou menos uma dieta que estou a seguir, um livro com formas livres intercalado com um livro com formas fechadas', embora defenda que a forma livre é mais dada a resultados pobres que encontra na poesia contemporânea portuguesa: 'há uma certa lassidão, um certo facilitismo em muitas coisas que não têm regra e régua.' Quero saber porque teriam de ter régua e regra, e explica que não é uma obrigatoriedade mas que seria, talvez, mais eficaz: "em termos clássicos não tem de ter. A falta de regra quando bem usada é uma regra, mas, muitas vezes, a coberto da falta de régua, há um tipo de exercício poético pouco interessante."
Considera que "as coisas se tornaram muito permissivas" porque "qualquer coisa que se escreva como uma confissão pública é imediatamente admitida como se fosse um poema, e isso não é verdade", e vai mais longe: "há uma espécie de democracia literária, uma espécie de hipermercado onde tudo é possível, e é cada vez mais difícil discernir o que é bom ou não. Há muitas coisas desinteressantes como o cigarro que fumam, ou o café que bebem. Sinceramente, não me interessa muito saber o que é que faz alguém numa tasca, ou se determinado poeta apanhou um táxi, ou se determinado poeta fumou um charro."
Daniel Jonas defende a ideia de que um poema "tem de ser intelectualmente significativo, alguma coisa que não seja um exercício de estética pobre" porque "o poema nunca se esgota no momento em que o lês, deve trabalhar em ti, tu deves poder querer regressar ao bicho, e deve interpelar-te, falar contigo, e respeitar-te enquanto leitor."
É por isso que todos os poemas que lhe interessam "não são um exercício fútil, um fim em si mesmo, servem para falar comigo de forma sistemática ao longo dos tempos e é aí que estou à procura de coisas canónicas que consigam suportar o teste do tempo."
Persegue, então, uma "distância desapaixonada" em relação à escrita de poesia porque "quando se é movido por uma razão emocional qualquer para escrever, normalmente as coisas não têm a distanciação necessária para se fazer qualquer coisa de jeito" e porque "a sensibilidade sem a técnica passa a ser uma coisa comum e banal." Pergunto-lhe como se adquire a técnica, diz-me que através da leitura, mas que também aí é necessário cuidado por causa da mimese. Pergunto-lhe onde fica a paixão e porque acredita que o poeta não deve ser apenas apaixonado, explica que rejeita o registo diarístico e confessional quando o poema é apenas isso: "Toda a gente fala do amor ou do terror ou da vida ou da vaidade, experiências primordiais emotivas. Mas depois o que fazemos com essa torrente emocional é muito raramente um bom poema, é muito raramente uma obra de arte."
Para Daniel Jonas um bom poema será então um misto de razão e emoção, sendo que a razão é privilegiada. É por isso que admite poder partir para a escrita sem uma ideia, o que não significa que não consiga depois convocá-la: "posso ir completamente tábua rasa e é aí que eu falo de auto-emoção. Eu consigo fazer coisas estranhas com as minhas emoções. As minhas razões são canabinoides, a minha razão é o meu canábis."
Precisa de autodisciplina para o exercício da escrita e aplica-a rigorosamente: "se disser que vou para este café e vou escrever isso acontece. Entendo as coisas com algum tipo de profissão de fé, sinto que se não reservar tempo para aquele objectivo estou a desmerecer, de alguma forma, alguma coisa que tenho e que devia ser explorada. Ou seja, é como faltar ao emprego."
Não tem faltado ao emprego, nem à escola onde dá aulas nem às mesas de café ou aos outros espaços onde se senta para escrever, e por essa razão está para publicar um livro chamado "Bisonte": "são poemas de grande panorâmica, de grande alcance, de formas mais livres, forma livre e tema livre." Ao mesmo tempo, traduz um texto de Will Eno para ser interpretado por Miguel Guilherme, num monólogo que há-de subir ao palco ainda este mês no Teatro Aberto, em Lisboa.
A poesia serve para quê?
Posso valer-me do título destas sessões para responder? Diria, por exemplo, que serve para ensinar-nos a cair, ou, caindo, ensinar-nos a levantar.
Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
“Let us go then, you and I” de The Love Song of J. Alfred Prufrock de T. S. Eliot.
Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Historicamente, espanhol.
Um bom poema é...
A receita que procuro habitualmente num poema é habilidade linguística, musicalidade inteligente, lógica de composição e, idealmente, de argumento. Em suma, uma mistura de intelecto e beleza. Ou, por outra, não é por atirar Bach à parede que uma pessoa se torna poeta ou um bom poeta.
O que o comove?
Rostos, fundamentalmente. Coisas com avós e pessoas velhinhas. Gente que chora como quem se mija. Há qualquer coisa no adágio “a idade é um posto” que está fundamentalmente correcto, embora não saiba bem explicar porquê.
Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
Um poema em Excel.
Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Alguma coisa tipo W. C. Fields. Algo do género “Preferia estar na Vidigueira”.
Poemas Daniel Jonas leu um inédito e escolheu um poema do americano John Berryman para ser lido por Raquel Marinho