Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
Síria, a vergonha do mundo

Há uma guerra na Síria por entrepostos países; uma guerra bárbara, desumana, que não poupa civis, que não poupa crianças; que nos interpela a todos. Que podemos fazer? Que devemos fazer, sabendo que, como diz no Talmude, quem salva uma vida salva o mundo inteiro? É isso, não conseguimos salvar sequer uma vida. Nem cada um de nós, nem os nossos países confortavelmente entretidos, nem o Papa, nem a ONU.
A primeira questão a saber é se a Síria é, em si mesmo, um país. Não tenho a certeza. Podemos discorrer dias sobre a origem da palavra Síria, que vem de muitas fontes, desde a antiga Assíria, até à islamizada Suria, como também é referida no português e castelhano antigos. Foi parte do Império Otomano e deve a proteção dos seus muitos cristãos à Rússia e à França (a guerra da Crimeia, brutal e desumana, que levou a que Florence Nightingale se distinguisse como enfermeira precursora em teatros de guerra, teve origem, também, nas disputas destes dois países acerca da proteção dos cristãos do Médio-Oriente). As batalhas na Crimeia (1853-1856), junto ao Mar Negro, tiveram influência para que o filantropo suíço Jean-Henri Dunant fundasse, anos depois, após a batalha de Solferino (1859), na guerra da independência italiana, a Cruz Vermelha Internacional. Como se vê, o barbarismo naquelas e noutras paragens não é coisa nova.
Assad era do partido Baath, um partido socialista e nacionalista que pretendia a unificação de todos os países árabes numa espécie de retorno ao califado, mas republicano
Mas voltemos à Síria. Depois da desagregação do Império Otomano, na sequência da I Grande Guerra, foi um protetorado francês, tal como o Líbano. Durante a II Guerra, estando sob o controlo do Governo de Vichy, era um estado fantoche pró-nazi. Só teria a sua independência depois da II Guerra, em 1946. Dois anos depois declarou guerra ao recém formado Estado de Israel, que a derrotou. Voltou a atacar e a ser derrotada pelos israelitas na Guerra dos Seis Dias (1967) e na do Yom Kippur (1973).
Entretanto, em 1948 juntou-se ao Egito de Nasser para fundar a República Árabe Unida (RAU), do qual se separou em 1951 estabelecendo a República Síria. Foi no movimento de separação que Hafez Al-Assad, antigo presidente e pai do atual, Bashar Al-Assad, se distinguiu. Assad era do partido Baath, um partido socialista e nacionalista que pretendia a unificação de todos os países árabes numa espécie de retorno ao califado, mas republicano. O seu fundador, Michel Afleq, um natural de Damasco com ideias leninistas apreendidas na Sorbonne, onde estudou, foi um dos mentores da tomada do poder pelo Baath (que em árabe significa renascimento).
Na Síria coexistem diversas orientações religiosas, de sunitas, a alauitas, passando por ismaelitas, curdos, turcomanos e cristãos de orientações diferentes (ortodoxos, arménios, melquitas, maronitas e romanos). As etnias são igualmente múltiplas. E daí a questão: é efetivamente um país?
O partido teria sucesso igualmente no Iraque, sendo inclusive o partido onde surge Saddam Hussein, em 1968. Aliás, na década de 70 Síria e Iraque tentaram fundir-se num único país, mas tudo falhou. Hassad e Hussein, embora do mesmo partido pan-árabe, não se entenderam.
Na Síria coexistem diversas orientações religiosas. Dos sunitas, maioria da população, aos alauítas (xiitas), que ocupam o poder e são apoiados pelo Irão, apoiando por sua vez o Hezzbolah na guerra a Israel, passando pelos pacíficos ismaelitas, e ainda curdos, turcomanos e cristãos de orientações diferentes (ortodoxos, arménios, melquitas, maronitas e romanos). As etnias são igualmente múltiplas. E daí a questão: é efetivamente um país?
Ao mesmo tempo que o poder se esboroava ali e no Iraque, o Daesh aproveitou para proclamar um Califado baseado no terror e na ameaça a todos os povos do mundo
Em guerra desde 2011, há sete anos, o filho e sucessor de Hafaz, militar que tinha estudado na URSS, Bashar Al Assad, licenciou-se em medicina e estudou em Londres. Mas não parece substancialmente diferente na insensibilidade com que massacra o seu povo. O seu povo, ou outros povos que vivem dentro das fronteiras delimitadas que governa? Eis outra questão.
Habituámo-nos a achar que um povo vive dentro do mesmo espaço. É verdade para quem é civilizado. Não para quem tem espírito de tribo ou de inquisidor.
Para que salvássemos o mundo, precisaríamos de começar por salvar um ser humano. Um bebé de Goutha; uma mulher seviciada obrigada a vender-se sexualmente pela sobrevivência dos seus filhos; um ancião que perdeu tudo na vida na região de Aleppo. E eles continuam a não ser salvos. E nós continuamos como dantes…
A guerra começou com uma espécie de réplica de Primavera Árabe, quando os sírios pediram liberdade, a exemplo do movimento que se iniciara na Tunísia. E se a Primavera Árabe não foi bonita de se ver em (quase) lado nenhum, na Síria foi um filme de terror. Cedo Assad teve o apoio dos seus tradicionais aliados russos e iranianos. Ao mesmo tempo que o poder se esboroava ali e no Iraque, o Daesh aproveitou para proclamar um Califado baseado no terror e na ameaça a todos os povos do mundo que não fossem radicais islâmicos. Os curdos reagiram ao facto de o Daesh os invadir, os turcos decidiram combater os radicais, mas os turcos não querem admitir os curdos como possível nação independente. A França e a Inglaterra e, claro, os EUA, entraram na contenda para se defenderem do Daesh, para tentar impedir os massacres de Assad, para muito mais coisas não explícitas.
Neste momento os estados ocidentais, bem como a Arábia Saudita e a Turquia (sunitas), querem derrubar Bashar Al Assad, um carniceiro. Mas essa não é a opinião de Putin nem do Irão (xiitas), que acusam a oposição a Bashar de ser antidemocrática e golpista. O vespeiro não tem fim.
A ONU apela à paz, assim como o Papa. E todos nós! Mas que podemos fazer, se nem uma vida salvamos? Que podemos fazer quando a desumanidade de tantos líderes de países ocidentais são contra os refugiados, os asilados, os fugidos da barbárie?
Volto ao Talmude. Para que salvássemos o mundo, precisaríamos de começar por salvar um ser humano. Um bebé de Goutha; uma mulher seviciada obrigada a vender-se sexualmente pela sobrevivência dos seus filhos; um ancião que perdeu tudo na vida na região de Aleppo.
E eles continuam a não ser salvos. E nós continuamos como dantes…