Rui Nabeiro

Já não vai ser o Campo Maior do sr. Rui

Cortejo fúnebre em direção ao Cemitério Municipal de Campo Maior, na passada terça-feira, onde Rui Nabeiro quis ser enterrado

Cortejo fúnebre em direção ao Cemitério Municipal de Campo Maior, na passada terça-feira, onde Rui Nabeiro quis ser enterrado

Como ficará Campo Maior sem a “generosidade” e “humanidade” de Rui Nabeiro? Não o mesmo, garante quem lá mora. Mas há “esperança” na continuação do “legado”

Texto Margarida Coutinho Foto Nuno Botelho

É assim que a história se conta: Campo Maior era apenas um pontinho fronteiriço no mapa, sem muita coisa para dar a quem lá vivia. Depois, veio Rui Nabeiro e a seguir a sua Delta à volta do qual a pequena vila alentejana encostada a Espanha se edificou e cresceu — um pequeno armazém de 50 metros quadrados transformou-se num império com mais de duas dezenas de empresas, da vitivinicultura ao comércio imobiliário — e hoje um terço da população local trabalha na fábrica de café. No domingo, Rui Nabeiro faleceu em Lisboa aos 91 anos e na terça-feira foi a enterrar no lugar que o viu nascer, perante a comoção dos populares: Campo Maior perde um ‘pai’, mas teme perder também o progresso que a distingue dos territórios vizinhos. Isso sente-se: “As pessoas estão preocupadas”, confidenciou ao Expresso um dos membros do Governo que participou nas cerimónias fúnebres de Nabeiro.

Em Campo Maior, há várias histórias sobre o comendador, que “andava pelas ruas sempre com notas de cinco euros no bolso para dar a quem lhe pedia” e apoiava diretamente “quem batesse à porta”, segundo uma das moradoras e donas de um negócio local. A influência do império de Rui Nabeiro não se fez apenas na rua e de porta em porta: o empresário permitiu que Campo Maior se tornasse uma exceção no interior alentejano, porque os postos de trabalho na Delta fixaram a população, aumentaram o poder de compra dos moradores e, consequentemente, a qualidade de vida. “O maior agradecimento que posso fazer a Rui Nabeiro é ter criado as condições para fixar população numa zona demograficamente deprimida. Hoje temos um agrupamento de escolas com 1400 alunos porque há emprego. Se não, seríamos iguais às escolas vizinhas, como Barrancos ou a Amareleja”, explica Jaime Carmona, diretor do Agrupamento de Escolas de Campo Maior. Rui Nabeiro era generoso: tanto resolvia problemas menores, como a falta de tapetes para os ratos dos computadores que “chegaram no dia seguinte” ao pedido, como abria estágios na Delta para os alunos dos cursos profissionais. “Podiam ser seis ou sete estudantes, nunca me disse que eram demais nem nunca colocou qualquer entrave”, recorda o diretor.

“Andava pelas ruas sempre com notas de cinco euros no bolso para dar a quem lhe pedia”, conta uma moradora local

Após o falecimento do comendador, Jaime Carmona admite que Campo Maior poderá sofrer mudanças. “É natural que algumas coisas mudem, é mesmo assim. Temos de nos adaptar.” A possibilidade da diminuição de postos de trabalho na Delta — consequência da eventual mudança de estratégia dos descendentes, falada entre os campo-maiorenses — não deixa de ser vista como uma “preocupação” porque está diretamente associada ao número de crianças nas escolas que, por sua vez, dita a abertura ou encerramento destas infraestruturas. “O senhor Rui representava um ciclo de prosperidade, proporcionou a várias gerações um estilo de vida diferente. Agora, a população de Campo Maior sente que se fecha este ciclo”, concluiu.

Com o neto e atual CEO da Delta, Rui Miguel Nabeiro, a dividir-se entre Lisboa, onde nasceu e estudou, e Campo Maior, crescem os receios de quem vê na menor ligação à terra da “nova geração” a probabilidade de uma progressiva mudança empresarial para as grandes cidades. “A mentalidade desta malta nova é diferente. Esta geração é mais virada para o negócio, para o exterior e tem outros horizontes. O sr. Rui era um homem mais ligado à terra e à família”, desabafou o proprietário de um dos cafés de Campo Maior. Estas preocupações, dizem alguns dos campo-maiorenses, não são novas: “Sabíamos que depois do senhor Rui, as coisas iam ser diferentes.”

A “esperança” na continuação do “legado”

Os moradores recordam Rui Nabeiro como uma pessoa “boa”, “única” e “família de todos nós”. Duas horas antes do início da missa, esta terça-feira, centenas de pessoas amontoavam-se junto à igreja matriz de Campo Maior e resistiam ao sol intenso de uma primavera que chegara em força. “Hoje tinha mesmo de fechar. A vila inteira parou para agradecer ao senhor Rui”, comoveu-se Margarida Mendes Palmeiro, diretora técnica e proprietária da Farmácia Campo Maior. A vila parou.

Na manhã que se seguiu às cerimónias fúnebres, Campo Maior voltou a abrir portas e a pensar o futuro. “É normal levantarem-se dúvidas. Mas, o senhor Rui foi deixando sementes nas pessoas de forma a preparar o caminho”, assegurou Jorge Grifo, presidente da Assembleia Municipal de Campo Maior e trabalhador na Delta. Também o presidente da Câmara, Luís Rosinha, reconheceu as preocupações da população e a “transição” que já tem vindo a ser feita dentro do Grupo Nabeiro, mas acredita que o “legado” será “respeitado”. “Os descendentes sabem fazer a leitura que o comendador sempre quis para a sua empresa e de certeza que o vão pôr em prática”, disse o autarca socialista. E acrescentou: “As coisas com certeza que mudam porque as pessoas mudam, mas quem gere vai respeitar a história dos 60 anos de indústria. Houve um homem que mudou o concelho, mas que também nos incutiu a vontade e a responsabilidade de amor à terra.”

“Os descendentes sabem o que o Comendador sempre quis para a empresa e vão pô-lo em prática”, diz Luís Rosinha

Sobre o apoio social prestado à população, o presidente da Câmara garantiu que será mantida uma “articulação” entre a autarquia e o Grupo Nabeiro: “O senhor Rui estava presente nas áreas mais basilares da estrutura do município, da educação à saúde. Chegou até a comparticipar parte do equipamento do Hospital de Elvas (que serve a população de Campo Maior). Agora, a responsabilidade social da empresa continuará e nós também cá estaremos. Sempre estivemos lado a lado.”

Entre os campo-maiorenses, há também quem espere que a descendência de Rui Nabeiro signifique continuidade e não rutura. “As pessoas falam muito disso, da possibilidade de mudança, e sofrem por antecipação. Está tudo na expectativa de saber o que virá, mas acredito que os netos têm tudo para seguir as pisadas do avô”, partilhou Margarida Mendes Palmeiro. A farmacêutica vive em Campo Maior há 19 anos e lembra que os netos conviveram de forma “muito próxima” com o avô; apesar de terem “vivências” fora da vila, também “são de cá”. José Manuel Soutinho, antigo motorista da Delta, partilha da mesma opinião. “Tenho muita confiança no neto porque teve um grande mestre. Tenho confiança que leve isto para a frente. Campo Maior precisa disto.” Soutinho trabalha agora na fábrica Delta e aproveitou para deixar uma palavra de “gratidão” ao antigo patrão. “Campo Maior perdeu um grande homem e um pai. Foi um homem de excelência, ajudava toda a gente que lhe chegava à porta. É capaz de não aparecer outra pessoa como esta.”