Henrique Raposo

Menos apocalipse, s.f.f.

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Muitos dos nossos bisavós e avós morreram durante a gripe espanhola. Entre 1918 e 1920, morreram entre 100 mil a 135 mil portugueses. A covid levou até agora 17 mil portugueses. Ou seja, 17 mil mortos era a conta de um mês de gripe espanhola ou pneumónica. Além de terem enfrentado um verdadeiro apocalipse viral, os nossos antepassados só viviam metade dos anos que nós vivemos agora. A nossa esperança média de vida é o dobro em relação ao início do século XX. Como tem dito Steven Johnson, temos uma vida a mais. Neste sentido, como é que nos atrevemos a ser especialistas no cinismo, no pessimismo e no desejo de apocalipse?

O nosso negrume é um insulto ao sofrimento dos nossos bisavós e avós. Em meados do século XX, a mortalidade infantil ainda era brutal, e não só em Portugal. E, se recuarmos uma ou duas gerações à escala ocidental, percebemos que 40% das pessoas não chegava à vida adulta. Na passagem do século XIX para o século XX, um pai devia ter consciência de um facto inexorável: se tivesse cinco filhos, ia perder dois para a arbitrariedade das doenças. Neste ambiente, a prática do infanticídio direto ou indireto era comum junto das classes mais pobres. Não acreditam? Leiam Maugham, Laxness, Hamsun, Rentes ou estudem a governação de Pina Manique e Pombal. A infância era um terror, aliás, não existia ‘infância’. Ora, o avanço das últimas duas gerações não se deve apenas às vacinas e aos medicamentos. Também se deve a coisas tão simples como beber água e leite em segurança. Até ao tempo da pneumónica, beber água e leite nas cidades era uma séria ameaça à saúde. Reparem, portanto, na enormidade que se esconde debaixo da nossa pachorrenta normalidade: beber água e leite era um perigo. Nós, de facto, não sabemos a sorte que temos e, devido ao vício do apocalipse, não percebemos que o nosso quotidiano é uma utopia para os milhares de gerações que nos precederam.

Não sabemos a sorte que temos e, devido ao vício do apocalipse, não percebemos que o nosso quotidiano é uma utopia para as gerações que nos precederam

Como perdemos a memória do lado terrível da natureza (que é enteada, e não mãe), estamos a diabolizar todos os pilares que nos permitem viver acima do pântano natural. O leite seguro que hoje bebemos é fundamental na nossa esperança de vida, mas desenvolveu-se uma narrativa que diaboliza o leite pasteurizado: Faz mal! Incha a barriga! A sua produção ameaça o ambiente devido à flatulência das vacas! O leitinho é para os bezerros e não para os humanos usurpadores! Noutro campo, as vacinas e os medicamentos químicos são duas armaduras que nos protegem do caos da natureza, mas desenvolveu-se uma narrativa que diaboliza as vacinas e toda a indústria química. Alimentado sobretudo por um ambientalismo irracionalista e anti-humanista, este desejo de apocalipse impede que as pessoas vejam e compreendam um dado extraordinário: a Humanidade é a grande luz da Criação e a nossa civilização conheceu uma evolução sem precedentes em apenas cem anos. Aliás, devido a este capacete pessimista, as pessoas nem sequer percebem que aquilo que estão a tomar não é uma vacina, é um e-mail genético que a biotecnologia consegue enviar ao nosso corpo, que é tratado como um programa informático que recebe uma nova linha de código. Que luz extraordinária para a vida dos nossos filhos e netos!