Ângela Silva

Vacinem o PRR, s.f.f.

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Ainda inseguro, mas certamente mais distendido com o momento menos mau da pandemia no país, António Costa fez uma pausa na guerra que há meses lhe tira o fôlego e voltou ao lugar onde é fácil ser feliz. Nada como uma reunião no partido, com televisão em direto e campanha na alma, para restaurar a fibra de que é feita a malha onde o líder socialista é um ímpar trepador. Gerir uma pandemia é outra coisa, e nem todos sabem fazer como Angela Merkel, que, após ver-se obrigada a recuar na estratégia de combate ao vírus que definira para a Páscoa, disse calmamente aos alemães esta frase de difícil tradução para português: “Um erro precisa de ser chamado um erro e precisa de ser corrigido. Lamento profundamente e por isso peço perdão. Foi um erro meu e apenas meu.” Mas os alemães são esquisitos. António Costa detesta culpas. E no intervalo que encontrou na sua agenda de primeiro-ministro (também ele aflito com a Páscoa) para ir à Comissão Nacional do PS dar o tiro para as autárquicas mostrou que não há vírus que lhe destrua o malabarismo intrínseco. E o malabarismo não é uma arte menor.

Primeiro truque: colar o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência, que é como quem diz milhões) às autarquias. “O PRR tem em grande medida um conjunto de projetos e programas cuja execução depende exclusiva ou essencialmente das nossas autarquias locais.” Os autarcas queixam-se do contrário, que não foram ouvidos, que o Governo ignorou prioridades regionais e mais uma vez trocou o interior pelo litoral. O costume. Mas Costa desmente-os: seja centros de saúde, digitalização das escolas, habitação, cuidados continuados, atividade económica ou reflorestação focada nas alterações climáticas, vamos ter recursos avultados e “os autarcas são absolutamente essenciais para esta recuperação do país”.

Em matéria de fundos europeus somos gato escaldado, e é estúpido brincar com coisas sérias

Segundo truque: mas há autarcas e autarcas. E se o António Costa/primeiro-ministro conta (é suposto que conte) com todas as autarquias para evitar que parte da ‘bazuca’ vá com a água do banho ou que o resultado final seja uma recuperação ainda mais assimétrica, em vez de um salto coeso, já o António Costa/líder do PS só pensa nos autarcas socialistas para gastar os milhões. Ele disse-o: “Como grande partido autárquico, temos que nos organizar e alinhar estratégias aos vários níveis, central, local e regional, para obter o melhor resultado. Tem de haver uma linha comum do que são as candidaturas socialistas nesta recuperação do país.”

Terceiro truque: não se pode contar com os autarcas de direita. Ele disse-o: “Esta é uma diferença absoluta entre a forma como o PS e as direitas se apresentam ao país nestas autárquicas.” À direita, “não lhes ouvimos uma única ideia que seja sobre o PRR”. Vão coligar-se, “não para servir Portugal, mas para enfraquecer o Governo”. Alerta vermelho. Se o Partido Socialista apenas preside a 159 das 308 autarquias do país, convém António Costa explicar como tenciona controlar a fuga de fundos europeus para os irresponsáveis autarcas das direitas. E, já agora, esclarecer se só tenciona mesmo “alinhar estratégias” entre o poder central e as autarquias do seu partido. É que, se não vale a pena levar a sério frases batidas de caça ao voto, vale muito a pena não esquecer que em matéria de fundos europeus somos gato escaldado e é estúpido brincar com coisas sérias. Portugal vai estar de tanga na transição da pandemia para a recuperação. E era civicamente higiénico não ser o primeiro-ministro a puxar o PRR para a valeta eleitoral.