Sérgio Sousa Pinto

V.P.V.

Contactos

Passado quase um ano da morte de Vasco Pulido Valente é possível dizer duas palavras sobre ele, sem risco de incorrer em concorrência cacofónica e despropositada com o testemunho privilegiado oferecido por aqueles que com ele privaram, o que não é o meu caso.

Depois da primeira salva de escritos laudatórios logo apareceram uns roncos dissonantes sem os quais V.P.V. não se livraria, como bem merece, da sorte reservada em Portugal aos mortos — uma lamúria unanimista e tartufa. Do nosso país de destinos mesquinhos somos invariavelmente expedidos para o céu ao som do coro da “Carmina Burana”. É conhecido.

Volvido um ano de silêncio, parado para sempre o martelo pneumático com que V.P.V. achatava o provinciano ego português com sede em Lisboa, estão em crescimento descontrolado a inanidade, o delírio e a santimónia nacionais. Sem V.P.V. já não precisamos de enfrentar o que somos e podemos, como é nossa incorrigível propensão, instalar-nos no que julgamos ser.

Eça, lá para o fim dos “Maias”, goza com os sapatos portugueses: tentavam imitar a moda parisiense, mas saíam ridiculamente pontiagudos. Todo o Portugal do último quartel do século XIX constituía, para Eça, um sapato bicudo, uma paródia da civilização. Instituições, pompas, modas, novidades: tudo uma reprodução grotesca e barata, bronca e pindérica, da Europa francesa e inglesa. A educação tradicional do amarelado e deplorável Eusebiozinho, que não fazia desporto para não se constipar, exprimia a descrença do autor nos atavismos propriamente portugueses.

V.P.V., como Eça, moía de pancada a mediocridade, o provincianismo e a autocomiseração nacionais. Mas Eça tolera-se melhor porque apesar de tudo mangava com os nossos avós. V.P.V. dedicou-se inteiramente a nós.

Ao contrário de Ramalho Ortigão, que intercala palermices e pavonadas com um desprezo altivo pelo país que pisava, nas torrentes de ironia queirosianas há melancolia e amargura; às vezes, sem exemplo, uma declaração de amor a Portugal (“A Cidade e as Serras”). V.P.V. escreveu como só poderia escrever alguém que gostasse intensamente de Portugal e dos seus “indígenas”. Distribuindo bordoadas a torto e a direito, num português depurado e requintado, V.P.V. combateu as manifestações do nosso atraso que, para ele — como para Eça —, era, simplesmente, o desvio entre o que cá se passa, faz e discute — e a realidade europeia, sobretudo inglesa.

Sem Vasco Pulido Valente já não precisamos de enfrentar o que somos e podemos

É provável que a Inglaterra de V.P.V. fosse uma fantasia, uma ilusão nascida da sobre-exposição a Oxbridge, que não existe hoje como não existiria na década de 70, anos de agonia, confusão e decadência; mas imagine-se o contraste que oferecia com o Portugal descalço, pluricontinental e fascista, ou com o subsequente Portugal a caminho do socialismo de operários e camponeses, ou da aliança com o Terceiro Mundo, ou (hoje) da destrambelhada cruzada antifascista, tendo um partido liderado por um comentador desportivo conquistado um duzentos e trinta avos da Assembleia da República.

V.P.V. distribuiu muita pancada injusta e calhou enganar-se. Mas não deu descanso à dormência, à pusilanimidade e aos ridículos nacionais. Escreveu melhor que ninguém. Não sabemos se chegou onde pretendia, se fez o que tinha pensado fazer. Avesso ao meio-termo, foi pela vida fora abalroando com a caneta quem bem lhe apeteceu. Legou-nos o seu olhar inconfundível acerca do que somos, levou a vida que quis e depois morreu. Livre, até de sucessores. Um grande escritor não pode pedir muito mais da vida.