ESTADOS UNIDOS

Dez casos que imortalizaram a “Notável R.B.G.”

Um périplo por êxitos e fracassos de Ruth Bader Ginsburg no Supremo ilustra por que motivo se tornou ídolo dos progressistas

Pedro Cordeiro

Nos 27 anos que passou no Supremo Tribunal, Ruth Bader Ginsburg foi por vezes bem-sucedida, outras não, mas nunca passou despercebida. Ou não tivesse escrito, há quatro anos: “Quando um juiz é da firme opinião de que a maioria se enganou, tem liberdade para dizê-lo, divergindo. Tiro partido dessa prerrogativa quando penso que é importante, como fazem os meus colegas.”

Menina também entra

Em 1996, o Supremo exigiu que o Instituto Militar da Virgínia, financiado pelo Estado, deixasse de rejeitar mulheres como alunas. Último estabelecimento de ensino superior nos EUA exclusivamente masculino, alegava que as mulheres não se adequavam ao seu exigente programa de treino. “Generalizações sobre ‘como são as mulheres’, estimativas sobre o que é adequado para a maioria das mulheres já não justificam que se negue uma oportunidade às mulheres cujo talento e capacidade as colocam fora da descrição média”, escreveu Ginsburg no parecer do tribunal.

Doentes, não malucos

Em 1999 chegou ao Supremo o caso de duas americanas que, depois de voluntariamente internadas na ala psiquiátrica de um hospital, foram forçadas a lá ficar (apesar de médicos as considerarem capazes de viver em sociedade). Ginsburg redigiu o parecer favorável às queixosas Lois Curtis e Elaine Wilson contra o “isolamento injustificado”.

Casamento para todos

Quando, em 2015, casais homossexuais processaram os estados onde viviam por lhes proibirem o casamento e não reconhecerem uniões legalmente contraídas noutros estados, o Supremo legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o país. Ginsburg defendeu: “O casamento era uma relação entre um macho dominante e uma fêmea subordinada. Isso terminou por decisão deste tribunal em 1982. Será que os estados [ainda] deveriam poder ter essa escolha? De se agarrarem ao casamento como era dantes?”

Pelo direito a decidir

Há quatro anos, o Supremo ordenou a revogação de uma lei do Texas que dificultava, através de regulações, o acesso das mulheres a clínicas que fazem abortos. “Quando um estado limita grandemente o acesso a procedimentos seguros e legais, as mulheres em circunstâncias desesperadas podem recorrer a praticantes não licenciados, à falta de melhor, com alto risco para a sua saúde e segurança”, escreveu a magistrada.

Expulsões injustificadas

O Supremo decidiu, em 2018, invalidar uma alínea de uma lei que incluía, entre as infrações agravadas que permitiam deportar imigrantes, toda aquela que envolvesse “risco substancial de haver uso de força física contra a pessoa ou propriedade de outrem”. Os juízes consideraram-na demasiado vaga. Coube a Ginsburg decidir pela primeira vez, enquanto membro mais antigo do Supremo, quem redigiria o parecer da maioria. Escolheu Elena Kagan, a mulher mais recente no painel de nove juízes.

Eleição contestada

Há 20 anos, num cenário que pode repetir-se já em novembro, a noite das presidenciais não teve desfecho claro. A Florida era crucial para atribuir a vitória a Al Gore ou a George W. Bush. O Supremo Tribunal Estadual ordenou uma recontagem. O Supremo anulou essa ordem e deu a Casa Branca a Bush. Ginsburg lembrou um princípio fundamental num Estado federal como os EUA: “Os tribunais federais sujeitam-se à interpretação pelos supremos tribunais estaduais da lei do seu próprio estado.” E escreveu: “Discordo”, omitindo o habitual advérbio “respeitosamente”.

Contra a discriminação salarial

Em 2007, Lilly Ledbetter, trabalhadora da fábrica de pneus Goodyear há 19 anos, processou a empresa por lhe pagar menos do que aos colegas homens. A defesa alegou que havia um prazo de 180 dias para reclamar, pelo que só esse período poderia ser considerado, em vez de todos os anos em que fora prejudicada. O Supremo concordou. Ginsburg não: “O tribunal não compreende ou é indiferente à forma insidiosa como as mulheres podem ser vítimas de discriminação salarial.” O Congresso veio a alterar essa lei.

Votar sem limitações

A supressão eleitoral é corrente nos EUA. Consiste em exigir tantos requisitos que camadas da população (tipicamente minorias étnicas e gente desfavorecida) são desincentivadas de votar. Contra essa artimanha, a Lei do Direito de Voto de 1965 exigia aprovação do procurador-geral dos EUA ou de um painel de juízes de Washington para alterar regras eleitorais. O condado de Shelby (Alabama) contestou, em 2013, e o Supremo deu-lhe razão. “Deitar fora essa autorização prévia, que funcionou e continua a funcionar, impedindo alterações discriminatórias, é como deitar fora o guarda-chuva durante uma tempestade por não se estar a ficar molhado”, escreveu a juíza no seu voto de vencida. Pouco depois começaram a chamar-lhe “Notorious R.B.G.”, variante do nome do rapper Notorious B.I.G.

Contraceção é um direito

Quando, em 2014, o Supremo dispensou empresas de pagar contracetivos aos funcionários nos seus planos de saúde, Ginsburg alertou que as crenças religiosas dos patrões passariam a condicionar os trabalhadores e destacou que “o custo de um dispositivo intrauterino quase equivale a um mês” de salário mínimo.

Guerreira até ao fim

Na mesma linha, em julho passado, o Supremo permitiu que a Administração Trump mexesse na lei de saúde universal “Obamacare” para alargar as isenções ao pagamento de contraceção. “Este tribunal deixa as mulheres entregues a si mesmas”, escreveu Ginsburg. Interveio no caso da cama do hospital, internada com problemas de vesícula. Pouco depois do encerramento do caso, iniciou quimioterapia contra o cancro que acabaria por matá-la.