VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

Francisco Louçã Economista, político

“O acordo deve ser uma valsa a três para maior pressão sobre o PS”

O conselheiro de Estado e antigo coordenador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, é da opinião que seria melhor um acordo de quatro anos do Governo com os partidos de esquerda e assume que preferia uma nova dança do BE e PCP com o PS. “Sem isso não haverá aumento do salário mínimo nacional, redução da precariedade ou reforço da saúde.” Uma conversa em que recorda as férias à boleia pela Europa e como é um avô ‘babado’

Texto Bernardo Mendonça Foto Nuno Botelho

Há sabores e lugares que são uma viagem até à infância. É o caso de uma antiga geladaria na Avenida da Igreja, em Alvalade, Lisboa, onde Francisco Louçã costumava ir à saída da escola. “Era um bocadinho caro para o bolso de um estudante, mas ficou esta memória, de uma boa geladaria.” Começamos pelo acordo à esquerda com o Governo que se anda a desenhar.

Costa afirmou ao Expresso que esta é uma oportunidade única para a esquerda estar junta até 2023, em tempos de uma grave crise económica, pandémica e social. Mas o BE mostrou-se disponível apenas para um acordo de um ano. Este é o momento certo para um casamento duradouro entre o BE e o PS?

Não sei o que o Bloco decidirá e não falo em nome dele. Na minha opinião, o Governo está a subestimar a natureza e o alcance da crise que estamos a viver. Se assim não fosse, não tinha deixado sair o ministro das Finanças em julho com o argumento de que a crise era leve e não colocava desafios de maior.

Costa deveria ter segurado Centeno?

Acho que sobrepor um calculismo de carreira a uma obrigação perante o Governo e o país é de uma leveza insustentável. E um erro. Vai haver conflito de interesses nas decisões que Mário Centeno tomou como ministro das Finanças e que agora vai tutelar como regulador, enquanto governador do Banco de Portugal. E, sobretudo, é um sinal irrevogável para a sociedade portuguesa de que se calcula uma carreira de um ministro mesmo numa situação de grande dificuldade de um país. E subordina a política às suas conveniências pessoais.

O Governo foi cúmplice do que chama de ‘calculismo de carreira’?

O Governo promoveu-o porque saberia que assim aconteceria. E nem os factos da pandemia alteraram o roteiro que o primeiro-ministro desenhou para as ambições do senhor ministro das Finanças. De qualquer modo, a subestimação do efeito desta crise leva o Governo a pensar que lhe pode responder com medidas ligeiras. Algum dinheiro de Bruxelas e “tudo como dantes no quartel-general em Abrantes”.

Insisto: deve haver um acordo duradouro entre o Governo e o BE?

São melhores soluções a quatro anos, do que a um ano, mas qualquer solução é melhor do que uma fantasia. O primeiro-ministro não quis fazer um acordo por quatro anos a seguir às eleições. Agora diz que quer. É preciso medir essa vontade. Tudo depende das propostas para a emergência que Portugal está a viver. O problema da habitação só se pode resolver a longo prazo. Mas não se pode esperar por 2022 ou 2023 para evitar a vaga de despedimentos do próximo outono. Portanto, antes de tudo, são precisas medidas de curto prazo que sejam raízes.

Catarina Martins não abdica das alterações à legislação laboral. E quer debater o reforço do SNS.

Surgiu nos últimos dias uma polémica curiosa porque Catarina Martins disse que é preciso garantir que os compromissos anteriores sejam cumpridos. Curiosamente, isso suscitou uma espécie de vaga de declarações de gente do PS a dizer que era um exagero. Que as circunstâncias tornam necessário que não se cumpram os acordos anteriores. Só que isto tem dois problemas: primeiro, quem não cumpre acordos não negoceia novos acordos; segundo, é certo que as circunstâncias mudaram, mas o que mudou torna mais necessário que se cumpram os compromissos anteriores, que são [a contratação de] 8400 médicos e enfermeiros para o SNS.

Contas feitas, PS e BE juntos têm maioria na AR. Acha que o BE deve ficar sozinho neste acordo? Ou seria preferível esta nova ‘geringonça’ continuar a contar com o PCP?

Escrevi um artigo durante o tempo da ‘geringonça’, cujo título era “A valsa dança-se a três”. E estou muito convencido de que essa é a boa solução.

Vai haver múltiplos conflitos de interesses com Mário Centeno

A boa solução para o acordo é uma valsa a três entre PS, BE e PCP?

É uma valsa a três porque implica mais capacidade de pressão da esquerda sobre o Partido Socialista. Se não há um acordo com o Partido Comunista, e parece ser a escolha que se tem vindo a fazer, a capacidade de pressão sobre o PS é mais fraca. É muito importante que haja capacidade de pressão, porque sem isso não há aumento do salário mínimo nacional, não há redução da precariedade, não há reforço da saúde, nem do investimento, nem há políticas climáticas.

Costa já assumiu que haverá um pequeno aumento no ordenado mínimo.

Se Costa está a falar de um aumento de €5 ou €2, como ofereceu à função pública, é uma coisa. Se está a falar próximo dos €35, o que manteria a rota de aproximação do salário mínimo ao seu objetivo e compromisso político, é outra. Eu acho que o ordenado mínimo deveria aumentar mais do que o ano passado. Ou seja, mais do que €35. Se for menos será uma facada na recuperação económica. Nós estamos a falar de salários de pobreza, de sobrevivência, salários dificilmente concebíveis para todos os leitores do Expresso. Reforçar o salário mínimo nacional é criar uma âncora contra a pobreza e dar um sinal à economia. Se o sinal é de que o congelamos então vai haver uma contenção do consumo. Lamento muito. O que a boa economia diz é que se as exportações vão reduzir, devido à recessão internacional, é a procura interna que vai salvar a economia portuguesa. Ou seja, são os salários que vão salvar a economia portuguesa. Ou vamos para trás ou vamos para a frente.

O Governo tem-se esquecido que é de esquerda?

O Governo tem tido políticas de esquerda, no aumento das pensões mínimas, por exemplo. E tem tido políticas de direita, com o Novo Banco, por exemplo. O contrato que o Governo fez, negociado por [gestor e político] Sérgio Monteiro, e aceite pelo Ministério das Finanças e pelo Governo, para a venda [do Novo Banco] à Lone Star é uma vergonha nacional.

Como analisa o comportamento do Governo durante esta pandemia?

Positivo. O Governo percebeu o risco, procurou mobilizar esforços, dar informação, ser verdadeiro com as dificuldades. Mas revelou-se um enorme défice nos serviços de saúde que foram quem salvou Portugal. Com um esforço enorme dos médicos, enfermeiros e de todos. Entrámos na pandemia que surpreendeu o mundo com uma grande impreparação. Felizmente tinha começado já esse processo, decorrente do acordo para 2020, de um pequeno reforço no SNS. Porém revelou-se estruturalmente insuficiente. E percebemos que a vida social portuguesa está dominada por uma economia da precariedade. Estamos com cerca de 800 a 900 mil pessoas que não têm emprego em Portugal.

O seu nome tem sido apontado como candidato para as próximas Presidenciais. Coloca essa hipótese?

Sou muito novo para isso. [risos]

Eu e as minhas netas inventámos histórias por Facetime

Mas já foi candidato em 2005.

[risos] Aí sim era novo demais... Acho que na área da esquerda há uma candidatura imbatível que é a da Marisa Matias, que já foi candidata e tem uma notabilíssima capacidade de comunicação e contacto. É fulgurante como candidata porque é verdadeira. Se ela decidir voltar a ser candidata apoiá-la-ei com entusiasmo.

Mesmo se Ana Gomes avançar?

A decisão é dela. Respeito muito Ana Gomes, mas defendo Marisa Matias porque é quem pode unir pessoas independentes, juntar energias novas e representar uma mudança na política portuguesa. Esta eleição será ganha por Marcelo Rebelo de Sousa, todos o sabemos, mas é importante que haja uma afirmação de uma esquerda que tem voz própria e sabe o que quer.

Qualquer candidato que se bata com Marcelo não será um nome a queimar?

Isso é pensar que uma candidatura é uma forma de calculismo de carreira. E certamente isso não se aplica a Marisa Matias porque tem uma capacidade de representação, mobilização e de entusiasmar a população que deixa uma raiz. Ela também sabia que não seria eleita na candidatura anterior e, no entanto, foi a mulher que teve mais votos na história das candidaturas presidenciais portuguesas. É uma figura determinante na esquerda portuguesa.

Como é o avô Louçã?

O mais babado possível. Tenho duas netas, de 6 e 3 anos. E quando conversávamos por Facetime [no confinamento] elas inventaram personagens para nos fazerem companhia em casa e que, mais ou menos, as substituíram. E assim iam contando a história do que os seus alter egos poderiam estar a fazer connosco.

O que anda a ler?

Li o último do Mario Vargas Llosa [“Tempos Duros”], que é magnífico sobre o golpe de 54 na Guatemala. E hoje peguei no livro “These Truths — A History of the United States” [“Estas Verdades — Uma História dos EUA”] de Jill Lepore. Isso leio durante o dia. À noite leio coisas diferentes, acabei o do Antonio Muñoz Molina, “Os Teus Passos nas Escadas”. Uma história curiosa de um casal que vivia em Nova Iorque, nas Torres Gémeas, e na reforma vem para Campo de Ourique, em Lisboa. É um livro apaixonado por Portugal. O que é raro num escritor espanhol.

Sei que nos anos 70 e 80 andou à boleia pela Europa. Como se recorda dessas aventuras de dedo esticado?

Uma vez apanhei uma boleia em Itália, ia eu e a minha namorada, com o assessor do Bettino Craxi, que ainda não era primeiro-ministro, e mais tarde foi condenado por corrupção. Essa viagem impressionou-me porque o homem, presunçoso, a achar que o mundo era dele, conduzia a 250 quilómetros à hora no seu carro potentíssimo. À boleia fui de Viena para Trieste, Veneza, Florença, Barcelona até Lisboa. Na altura havia muito tempo.

Um sonho de uma noite de verão é...

Uma lua cheia numa noite transparente na baía da lagoa, na Graciosa, Açores, que é onde tenho casa e passo férias normalmente.

Se tivesse de convidar alguém para um gelado e uma conversa, quem seria?

É um pretexto para comemorar os 75 anos do Sérgio Godinho, que é um jovem de certa maneira, de cujo trabalho gosto imenso e seria uma excelente companhia pelo que há além do artista.

Agradecimento à geladaria Conchanata

Postais do Sul

O rio que muda de nome entre a lenda e a história

O rio Séqua nasce na serra do Caldeirão — resulta da junção das ribeiras da Asseca, Alportel e Zimbral — e corre por pouco mais de 50 quilómetros, até Tavira, na costa. Aí chegado... não desagua. Muda de nome e passa a chamar-se Gilão até à ria Formosa. Para explicar a originalidade há uma lenda, com uma princesa e um cavaleiro (ou príncipe, conforme as versões). Mas primeiro, a história. O arqueólogo Luís Fraga da Silva, que dedicou grande parte da vida a investigar a história do Algarve e faleceu em março passado, explicou a mudança pela existência, durante a ocupação árabe, de uma aldeia chamada Gillã, na foz do rio. O nome terá derivado de Gilano (do latim Iuliani — Juliano), a denominação de um anterior povoado romano no local. Mas a teoria não é unânime. Passemos à lenda. Sem data certa, mas durante a reconquista cristã, uma princesa árabe e um cavaleiro (ou príncipe) cristão apaixonaram-se. Todas as noites se encontravam numa ponte que liga as duas margens do rio até ao dia em que o namoro proibido foi descoberto e o casal decidiu matar-se, na ponte. A princesa Séqua saltou para o lado norte. O cavaleiro Gilão para o sul. E assim nasceram os dois nomes do rio. João Mira Godinho