VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

Rosa Monteiro Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade

“Culpar quem aponta a discriminação é fazer um favor a quem incita ao ódio”

A atual secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade afirma que os portugueses estão mais solidários e atentos às vítimas de violência doméstica, mas lamenta que haja na Assembleia um partido que incita ao ódio. E fala da ponta de um iceberg de estereótipos e preconceitos raciais, sexuais e de género que importa esclarecer e desmontar. “Para que ninguém fique para trás”

Texto Bernardo Mendonça Foto Ana Baião

A secretária de Estado chega à geladaria emocionada. Acabara de perder uma grande amiga, a engenheira agrícola, ativista, que foi também autarca e dirigente do Bloco de Esquerda, Maria do Carmo Bica. “Ela marcou a minha vida pessoal e profissional. Ensinou-me muito sobre o valor do Interior, que não poderia continuar a ser visto apenas como paisagem.” Rosa Monteiro muda de assunto e conta-nos que os gelados são para si um fator de alívio, de recompensa e satisfação. Escolheu pistáchio, o sabor de sempre. E juntou-lhe caramelo salgado. “Em dias intensos, trabalhosos, ou quando estou em baixo, vou comer um gelado. Seja verão ou inverno.” Começámos por um dos temas quentes da atualidade.

Dados do Inquérito Social Europeu indicam que quase dois terços dos portugueses manifestam pelo menos uma forma de racismo e apenas 10% da população discorda de todas as crenças racistas. Surpresa?

Como socióloga e cientista social, [sei que] estes inquéritos do European Social Survey estudam as atitudes e representações sociais que temos e as quais, muitas vezes, não temos consciência que temos, seja na área na discriminação étnico-racial ou nas questões da desigualdade de género. Nós avançámos imenso e eliminámos da legislação a discriminação direta. O Artigo 13 da Constituição garante o princípio da não discriminação e igualdade de todas as pessoas independentemente da sua religião, sexo, raça, opção política, orientação sexual. Mas usando a metáfora do iceberg, há uma parte que está por baixo. Nem sempre temos a consciência dos estereótipos, dos [nossos] preconceitos, da forma como concebemos o que é ser homem e mulher, o que é ser branco ou o que é ser de uma outra etnia ou grupo social. Na socialização habituamo-nos a reproduzir preconceitos e visões estereotipadas...

Os portugueses não têm consciência dos seus preconceitos?

Sim. Há um caminho a fazer e a abrir, seja na educação ou nas organizações de trabalho. Por exemplo, é preciso conhecer e explorar os preconceitos e enviesamentos inconscientes na seleção e recrutamento de pessoas, perceber se os nossos ambientes profissionais e institucionais no geral oferecem as mesmas oportunidades a todas as pessoas, independentemente do seu sexo, orientação sexual, identidade de género, etnia ou raça. E olhar com sentido crítico para aquilo que somos e para as instituições e organizações sociais que temos. Com racionalidade, com informação, com dados, começamos a poder dar visibilidade à dimensão da discriminação e desigualdade que muitas pessoas vivem.

Portugal é ainda um país maioritariamente racista?

Não podemos colocar a questão nesses termos, porque cria segregação e uma ideia de penalização para o país. Temos uma legislação antidiscriminatória, mas nas práticas quotidianas, nas conceções das pessoas existem [ainda] um conjunto de representações que assentam em relações assimétricas. Existem de facto mecanismos [na sociedade] que perpetuam e têm perpetuado a discriminação e a desigualdade.

A casa é o sítio mais perigoso para as mulheres e crianças

Vivemos tempos de escalada de ódio racial. O Chega, o partido mais à direita na Assembleia, é o principal motor disto?

É. Há um partido na Assembleia da República que tem uma retórica de ódio e de incitamento à violência. Quando um deputado se dirige a uma deputada e diz ‘vá para a sua terra’, é uma linha da qual não há retorno e não podemos ignorar. Com toda a insegurança ontológica que esta pandemia e crise vem trazer existem um conjunto de agentes que utilizam e instrumentalizam este ambiente natural de medo, de forma populista. Temos que resistir e dizer que essas forças não trazem soluções, não resolvem nada, só querem criar guerra, instabilidade social, quebrar os princípios de laço e coesão social, os valores da democracia. Existe um projeto de sociedade democrática e de igualdade para todas as pessoas. Para que ninguém fique para trás. E, repare, os dados dizem que os imigrantes são contribuintes líquidos para a segurança social. Contribuem mais do que beneficiam do nosso sistema de proteção social.

Como vê a declaração do líder do PSD, Rui Rio, que admitiu uma possível aproximação ao Chega?

Qualquer aproximação à narrativa e à estratégia de um partido como o Chega não traz nada de positivo para a nossa democracia. E se um líder de um partido como o PSD, da direita democrática liberal, quer trazer soluções para o nosso país terá de repensar qual o seu caminho e as soluções que apresenta. Porque a grande marca destas narrativas de ódio, de segregação e polarização social é dividir para reinar, confundir a sociedade e não apresentar nenhuma solução construtiva. É isso que queremos para a democracia que tanto nos custou a conquistar e consolidar? Não.

Os discursos parecem estar a extremar-se. É inevitável?

Não é desejável. Temos de ter um debate público assente em racionalidade, em informação e evitar o extremismo. O extremismo gera divisão, conflito, faz perder a face. Não permite o diálogo, a compreensão, a literacia e o que se chama na psicologia social: a hipótese de contacto. Temos de conhecer a outra pessoa que entendemos como diferente e só convivendo, só vivendo em bairros onde existem pessoas de várias raças, é que conseguimos desenvolver relações de empatia que nos permitem perceber que a outra pessoa é igual a nós. Nos seus sonhos, nas suas dificuldades.

Há quem considere que alguns ativistas pecam pelos discursos extremistas, por afastarem mais em vez de conquistarem novos aliados... Sente isso?

Há muita diversidade e variabilidade nas estratégias do ativismo. Umas mais discursivas, outras mais belicistas, de confronto, para agitar consciências e mentalidades. As pessoas têm que ter espaço para dar voz à sua indignação, frustração e à violência que durante a sua vida toda estiveram sujeitas. Temos de ter uma atitude de empatia e compreensão. Culpar quem aponta a discriminação, a desigualdade, àquilo que ainda são passos que temos de dar para os direitos humanos, é fazer um favor aos principais responsáveis pelo acentuar do extremismo e radicalismos e incitamento ao ódio.

O dirigente da SOS Racismo Mamadou Ba escreveu recentemente no Expresso: “Não me peçam calma nem contenção porque estou cansado dos vossos pedidos. Até quando me vão acusar de ser responsável pelo racismo de que sou vítima? Até quando continuarão a dizer que sou igual àqueles que me violentam e me querem matar?” Que comentário?

O discurso de uma pessoa racializada e ativista pode ser visto como desestabilizador para quem tinha a certeza de que vivíamos numa sociedade de luso tropicalismo em que tudo estava bem. Não podemos avaliar, nem julgar as pessoas que sofreram e sofrem [na pele] e lutam pelos direitos humanos. Os ativistas dos direitos humanos fazem um trabalho para toda a sociedade. E não só falam e dão conhecimento além da espuma dos dias como prestam serviços, ajudam e capacitam pessoas. São essenciais.

Um das grandes preocupações durante o confinamento era o aumento da violência doméstica. Sei que se esperava um boom de casos denunciados no desconfinamento. Aconteceu?

A casa é o sítio mais perigoso para as mulheres e crianças. É lá que estão expostas a mais agressões, a mais vio­lência, dentro da própria família. E, portanto, esta ideia de confinamento começou a assustar-me. Os pedidos de ajuda foram aumentando gradualmente. O eco que tivemos da parte das equipas técnicas foi que eram situações de violência já preexistentes que obviamente num quadro de pandemia se intensificaram. Desde janeiro até 15 de agosto contam-se 10 homicídios no quadro de violência doméstica. [7 mulheres, dois homens e uma criança.] Um já é demais. Inquieta-me que exista ainda violência doméstica e situações de mulheres que desconhecem ainda as ajudas que podem ter. E esse é um caminho que temos de continuar a fazer. Durante a pandemia, 881 pessoas [499 mulheres, 328 menores e 24 homens] foram acolhidas em contexto de violência doméstica. E entre março e julho, 553 mulheres e crianças autonomizaram-se, saíram das estruturas de acolhimento e voltaram a uma vida segura. O que é curioso é que neste contexto de covid-19 verificámos que há uma maior vontade da sociedade de denunciar e ajudar diretamente as mulheres vítimas de violência doméstica. Quer sejam familiares, amigos, vizinhos. Estamos todos mais conscientes que a violência não é um assunto da mulher.

Quantos nomes de rua com mulheres famosas existem? Não há muitas

No nosso país, a desigualdade de género manifesta-se ainda de múltiplas formas, na diferença dos salários, nas pensões, nas tarefas domésticas, nos cargos de poder. “It’s a man’s world”, como cantava James Brown?

Ainda. Mas cada vez mais as mulheres têm consciência de que têm capacidade, competência e lugar nos cargos de decisão: na vida pública, na vida política e das empresas. As ditas cotas, as políticas de paridade são fundamentais para abrir um caminho de reconhecimento. Mas temos muito a fazer. A disparidade é enorme. E há a armadilha da igualdade formal. Achamos que é tudo igual, porque está na lei. Mas no país real as mulheres continuam numa situação de desvantagem e desigualdade relativamente aos homens em muitos sectores e dimensões da sua vida: a sobrecarga de tarefas domésticas, as questões de vio­lência, a vulnerabilidade, e até a forma como ocupam o espaço público. Quantos nomes de rua com mulheres famosas existem? Não há muitas. O espaço público reflete o machismo da sociedade.

O que é para si o sonho de uma noite de verão?

É uma noite quente e longa a ouvir música e a apreciar um bom vinho e uma boa conversa. O tema que mais ouvi durante a pandemia foi o ‘Party Girl’, da Michelle Gurevich.

É uma party girl [rapariga festiva]?

Houve muitos momentos em que fui uma party girl. O que mais tenho saudades é de dançar. Tenho saudades das discotecas, das festas e da liberdade que dançar nos dá. Éramos tão felizes e não sabíamos.

O que anda a ler?

Acabei de ler “O Silêncio das Mulheres”, de Pat Barker. É o recontar da história da “Ilíada” na perspetiva das mulheres. É um livro notável.

Qual foi para si a melhor descoberta neste confinamento?

Redescobri-me jardineira. Enchi a casa de flores plantadas e estão maravilhosas.

Agradecimento à geladaria Unico Gelato

Postais do Sul

A primeira sede da Ordem de Cristo

Território habitado desde a Idade do Bronze (3300 a 700 a.C.), Castro Marim conhece destaque durante a ocupação romana quando, com o nome Baesuris, foi um importante entreposto comercial. No domínio muçulmano e após a Reconquista cristã, entra em declínio, travado com a atribui­ção de privilégios pelos reis D. Afonso III e D. Dinis. Este último fixou em Castro Marim a primeira sede da Ordem de Cristo, herdeira dos Templários, no ano de 1319. Contudo, logo em 1356, a ordem muda-se para Tomar, e as dificuldades em estabelecer população persistem. Os Descobrimentos dão novo fôlego à vila, que se torna na principal praça no combate à pirataria na costa sul, e o dinamismo prolonga-se até ao séc. XVII, quando são construí­dos os fortes de S. Sebastião e de Santo António e é restaurado o castelo medieval. Mas o sismo de 1755, que provocou extensos danos na vila, marca novo virar de página. O assoreamento dos terrenos, entre Castro Marim e o rio Guadiana, e a criação de V. R. de Santo António acentuam esse declínio, que já só é invertido no final do século passado, com o turismo e algumas atividades económicas, onde sobressai a salicultura. Ainda assim, hoje com cerca de 7 mil habitantes, Castro Marim está ainda longe do fulgor de outros tempos. João Mira Godinho