VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

Marco Martins Realizador

“A realidade que vivemos tem uma grande dose de ficção”

Como realizador, procura responder às grandes questões da vida no cinema. Autor dos multipremiados filmes “Alice” e “São Jorge”, dirigiu a série “Sara”, na RTP, e prepara-se para regressar à rodagem da sua próxima longa metragem “The Great Yarmouth”,umfilme social que é também um thriller e que retrata a vida dura de uma comunidade de emigrantes portugueses em Inglaterra

Texto Bernardo Mendonça Foto Tiago Miranda

Marco chega em boa forma física à geladaria. Recorda que correu diariamente durante os meses do confinamento pela Baixa deserta da cidade. Perante a paleta de gelados, escolhe o saboroso mirtilo biológico e uma alegre mistura de melão-kiwi. Fala do fenómeno da “suspensão do tempo” que vivemos e que tem um impacto maior nos mais novos e mais velhos. “O futuro está refém de um presente que não conheces.” Em setembro regressa às filmagens da próxima longa-metragem “The Great Yarmouth”, com Beatriz Batarda e Nuno Lopes, que decorre numa vila pesqueira, em Inglaterra, onde vive uma grande comunidade de emigrantes portugueses. E conta como passou de uma história da atualidade a um filme de época.

Que realidade quer contar no seu próximo filme?

É quase um díptico com o [filme] “São Jorge”, no sentido de responder ao que é que aconteceu àquelas pessoas que emigraram durante a crise de 2009-2014. Tudo começou porque em 2016 fui convidado para fazer um espetáculo em Great Yarmouth [a peça de teatro “Provisional Figures”]. E descobri uma grande comunidade portuguesa a viver numa antiga cidade balnear, vitoriana, que teve muito turismo inglês, quase como o nosso “Monte Gordo”, no Algarve, e que depois, com os voos low cost, foi sendo progressivamente abandonada. Essa comunidade de quase 50 mil portugueses trabalha nas indústrias de transformação de carne, sobretudo peru, em condições extremamente difíceis, num trabalho muito duro que mais ninguém quer fazer: matar animais, cortar os ossos. Nessas fábricas gigantes só estão trabalhadores portugueses ou do Leste europeu. E interessei-me pelas suas histórias de grande estoicismo.

O que o fez decidir filmá-los?

Eu desconhecia por completo aquela realidade. E é de uma tal brutalidade que, para mim, passou a ser urgente fazer este filme. Começou pela empatia que senti por aquelas pessoas. Comecei a fazer-lhes ‘milhares’ de entrevistas. Houve um dia em que me sentei num café e devo ter feito 40 entrevistas seguidas às pessoas que me iam contando a história de como tinham ido lá parar. Aquele lugar era a última esperança de terem uma vida digna. Esta é uma emigração de sobrevivência, não tiveram outra hipótese com a crise. Como sabe, os meus filmes têm sempre uma pesquisa longa e, a certa altura, também com os atores. Este processo foi parecido com o [filme] “São Jorge”, mas ainda mais aprofundado. Porque a escrita do guião parte toda do relato de histórias pessoais.

A Netflix infantiliza e condiciona o olhar das pessoas

Este seu filme é ficção, mas extremamente baseado na realidade.

Sim. É uma ficção ancorada nos relatos dos emigrantes. Podes adaptar um livro ou uma série de relatos a um filme.

Imagino que abordará o ‘Brexit’, a saída do Reino Unido da União Europeia e suas repercussões para os imigrantes?

Não falo do ‘Brexit’ diretamente no filme, mas está sempre latente. Quando comecei a trabalhar na peça e no filme, o ‘Brexit’ ainda era uma ideia distante. Mas estive lá quando [o ‘Brexit’] ganhou, e aí sentiu-se uma grande violência para com os emigrantes portugueses. Aquela vila é de uma pobreza endémica e extrema, onde há famílias que há três gerações não trabalham. Três gerações de desempregados que vivem exclusivamente do sistema social.

Esses emigrantes portugueses estão a sentir a dita ‘repressão migratória’?

Sente-se bastante. Principalmente naquele lugar onde a comunidade portuguesa é enorme. Os trabalhadores [portugueses] sentem o preconceito constantemente. Há uma história engraçada de há pouco tempo. O Nuno Lopes ia ter comigo a Yarmouth para se juntar ao processo de ensaios onde eu estava há algum tempo. Entrou num táxi e o taxista perguntou-lhe de onde ele vinha. E o Nuno respondeu-lhe que vinha de Portugal. “Férias ou trabalho?”, quis saber o taxista. Quando o Nuno lhe disse que vinha a trabalho ouviu a resposta: “Another one join the Circus.” [Mais um a juntar-se ao circo.] Sentiu-se logo aí o preconceito do ‘estás aqui a roubar o nosso trabalho’. Uma coisa é certa, a economia inglesa, tal como está estruturada, irá ruir com a saída dos emigrantes. Porque vai paralisar a economia. Agora vive-se a tempestade perfeita: o ‘Brexit’ com a pandemia. É um cocktail.

A rodagem deste filme começou antes da pandemia, mas foi subitamente interrompida por causa da covid-19. Como viveu estes tempos?

A experiência de interromper a rodagem foi terrível. Economicamente catastrófico. Havia uma série de décors construídos, não vou poder filmar exatamente daquela forma e perde-se muito dinheiro. E era o culminar de um grande processo criativo de quase seis meses, entre ensaios e preparação técnica. Filmámos um terço do filme, faltavam dois terços. A intensidade [nas filmagens] era muito grande. De tal forma que, quando em Portugal começaram a acontecer os primeiros casos, nós continuávamos a filmar com a esperança de que Inglaterra nunca fechasse. Mas houve uma altura em que o Governo português mandou-nos voltar para casa e tivemos que interromper a rodagem.

Como viveu o confinamento?

Houve esse fenómeno de uma suspensão do tempo, pelo menos do tempo social, como se fosses empurrado para fora do tempo, tal como o conheces. E há um acontecimento de tal forma traumático que não te condiciona só o presente, que é bastante indecifrável, mas também o passado e o futuro, que está refém de um presente que não conheces. É muito complicado esta forma de olhar para o tempo.

Parece um tempo de ficção...

Essa divisão entre ficção e realidade é uma coisa do século XIX que não faz qualquer sentido. Agora, se calhar, até é uma inversão dos papéis. É como se a arte fosse a forma de fixar na ficção uma qualquer realidade. Porque que a realidade que estamos a viver tem uma grande dose de ficção. Esta coisa das fake news, das redes sociais. Todos os dias abres o jornal e estás a reescrever esta história, esta narrativa. O que é que é isso mais do que ficção?

No seu filme não existirão máscaras. Será uma realidade pré-pandemia...

Uma coisa extraordinária é que num espaço de meses — a rodagem foi suspensa em março e, se tudo correr bem, retomo em outubro — passei de estar a fazer um filme com uma urgência social e de uma atualidade extrema a estar a fazer um filme de época. [risos] É incrível. Não há máscaras e os custos de produção são tão elevados que se comparam a uma produção de época. No sentido em que nada do que tu tens hoje em dia serve. As pessoas têm de ser testadas. Se há uma cena num bar ou numa festa com pessoas a dançar, toda a gente tem que ser testada. É insano e muito caro.

O cinema que mais lhe interessa filmar é aquele que inquieta e expõe ao espectador realidades que lhe escapam à vista?

Sim. Interessa-me falar das pessoas que não têm voz. Não sei se são invisíveis, acho que não são assim tão invisíveis. São ignoradas. Mais do que ignoradas. Repare-se, aquelas pessoas que emigraram para Inglaterra naquela altura são quase mandadas embora. Como aquela célebre frase do Passos Coelho: “Se não têm trabalho aqui emigrem.” E esse problema de identidade, de afastamento, daquilo que é a tua raiz cultural, familiar, faz com que pouco a pouco te tornes invisível, porque já não és um número nem cá, nem lá. Por isso é que a peça de teatro que fiz com eles se chamava “Provisional Figures” [Números provisórios], que é o nome que eles dão aos portugueses que trabalham lá. Pessoas que não têm estatuto, que são números provisórios, descartáveis.

O que mais procura com os seus filmes?

Procuro as grandes perguntas. Tenho o dever de perguntar, de interrogar. Porque é que isto é assim? É isso que me move, a curiosidade. Eu sou muito curioso. [risos] Não gosto muito das respostas que temos, a que podemos aceder. São sempre insuficientes. Por isso quero filmar.

Um filme na televisão é o postal de uma obra artística

Está em paz com estes tempos em que o cinema tem mais palco nas plataformas de streaming do que nas salas de cinema?

A questão põe-se a vários níveis. Existe a questão dos filmes que foram feitos para cinema e que são vistos em plataformas digitais ou na televisão. Ou seja, numa plataforma para a qual o filme não foi feito, que é o caso dos meus filmes. E faço as pazes com isso. Quando faço um filme o desejo é que ele estreie em sala, é por isso que se chama cinema, é para ser estreado no cinema. Senão terá que ter outro nome. Tudo o que passa na televisão passa a ser um programa de televisão. Mas o Hitchcock tem uma frase ótima: “Passar um filme na televisão é como ver um postal de um quadro.” Está a ver? É o postal. Não estás a ver o Cristo crucificado do Velázquez no [museu do] Prado, mas estás a olhar para um postal. Um filme na televisão é um postal de uma obra artística. Mas quantas obras de arte modificaram a minha forma de olhar e nunca as vi ao vivo? Muitas. Estou em paz. É uma troca. Em nome de reduzir a qualidade do que se faz, chegas a um universo maior de pessoas. Mas toda a tecnologia é isso, reduzir a qualidade para chegar a mais pessoas. Raramente se aumenta a qualidade para chegar a mais pessoas. Fazes as pazes com isso e esperas que aquela pessoa que está a ver o teu filme na televisão seja alguém que nunca iria ver o teu filme ao cinema.

Como será o cinema do futuro ou o futuro do cinema?

O cinema não vai ser muito diferente. Vão existir outras formas de arte que gostava que se chamassem outra coisa. O cinema tal como nós o fazemos vai continuar a existir, temo é que para um público mais restrito. Ou seja, ou existe um plano de educação das pessoas pela arte, criação de público, e de formas de exibição de cinema, ou cada vez vai ser mais difícil.

É multipremiado, acarinhado pelo público, os seus filmes são subsidiados. Mas já alguma vez sentiu preconceito por parte de decisores em relação às suas obras?

De uma forma geral, o meu cinema tem tido a sorte de encontrar um público muito abrangente, mas quanto à “Sara”, que era uma série para a RTP1, houve depois a decisão de a colocarem na RTP2. E isso para mim é até hoje uma coisa absolutamente incompreensível. Por pensarem que o público para aquela série não iria ser 100 mil pessoas e só interessaria a 10 mil ou menos.

Por acharem que o grande público não iria perceber a série?

A questão não me foi apresentada dessa forma, mas acho que aí a RTP não está de todo a fazer o seu papel de serviço público.

Quem convidaria para um gelado e uma conversa?

Quem queria mesmo convidar era toda a minha equipa do filme, que não vejo desde março e abraçá-los com muita força e nenhum distanciamento social. Isso seria espantoso.

Agradecimento à geladaria Fragoleto

Postais do Sul

Seja ou não a antiga Carteia, diz-se ‘em Quarteira’

Quarteira, a antiga vila de pescadores hoje transformada em destino turístico, no concelho de Loulé, há muito reclama estar localizada onde existiu a antiga cidade fenícia, cartaginesa e romana de Carteia. A fundamentar o argumento existem diversos achados arqueológicos na zona, destacando-se duas moedas romanas precisamente com a inscrição “Carteia”. Por isso, o brasão da localidade inclui uma moeda, em representação desse passado. O jornal local chamava-se “Carteia”. E o antigo deputado algarvio do PSD Mendes Bota, quando apresentou o projeto de lei de elevação de Quarteira a cidade (aprovado em 1999), refere essa herança, para justificar a importância histórica do lugar. Atualmente, a maioria dos historiadores e arqueólogos coloca a grande cidade de Carteia da Antiguidade perto de Gibraltar. Mas, principalmente a nível local, há ainda quem defenda que na realidade se situava onde hoje está Quarteira. Até porque terão existido várias povoações, na costa sul e mesmo em África, com esse nome. Seja ou não a antiga Carteia, há algo que os quarteirenses não suportam: que se diga “na Quarteira”. É “em Quarteira”! João Mira Godinho