VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA
Catarina Furtado Apresentadora, atriz
“Odiaria ter um programa com o meu nome”
© Expresso Impresa Publishing S.A.
VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA
Catarina Furtado Apresentadora, atriz
“Odiaria ter um programa com o meu nome”
Estreou-se como apresentadora há quase 30 anos, no programa “Top+”, mas foi com “Chuva de Estrelas” que ganhou fama e o epíteto de “namoradinha de Portugal”. Nas últimas duas décadas, o que mais a distingue são as causas humanitárias. A embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas está de regresso aos ecrãs com nova temporada de “Príncipes do Nada”, que retrata a vida em campos de refugiados, onde viu situações que ainda hoje não a deixam dormir
Texto Bernardo Mendonça Foto Ana Baião
Catarina chega de máscara preta no rosto, polvilhada com beijos dourados, assinada por Nuno Baltazar. Escolhe um cone de framboesa e limão e lança-nos a língua de fora. Diz-se mais confiante do que nunca e garante não querer nada com o ‘politicamente correto’. “Temos que nos insurgir mais politicamente junto dos nossos representantes, fazer voluntariado de uma forma consciente e nada politicamente correta. Temos de assinar petições e perceber o impacto que podem ter para salvar vidas. Quero agitar a consciência cívica das pessoas.” Começamos por falar do inferno nos campos de refugiados, onde esteve para realizar a 5ª temporada da série “Príncipes do Nada”, exibida na RTP.
Sei que esta última temporada da série “Príncipes do Nada” foi para si a mais difícil. Porquê?
Porque se nas outras temporadas tive algumas insónias, nesta tive sempre. Estou com um problema de sono que tem a ver com a incapacidade que tenho em arranjar uma justificação para aquilo que vi. Os refugiados e migrantes mudaram as suas vidas de um dia para o outro, esta não era a sua realidade. E é possível fazer diferente e manter a dignidade destas pessoas. Haja vontade. Sobretudo política. Estas minhas insónias são provocadas pelo facto de saber perfeitamente, in loco, que aquelas pessoas podiam estar a viver em condições dignas. Nos campos de refugiados vi coisas muito más.
Logo no primeiro episódio desta temporada leva-nos a Moria, na ilha grega de Lesbos, o maior campo de refugiados da Europa, também conhecido como o pior do mundo. Chamam-lhe o ‘Inferno na Terra’. Onde não deviam estar mais do que três mil pessoas vivem agora cerca de 22 mil. O que viu lá?
Em Moria e na ilha de Samos vi o que nunca imaginei ver, que ultrapassa verdadeiramente a ficção. É muito fácil colocar-me no lugar daquelas pessoas. É mais difícil colocar-me no lugar de uma pessoa que nasceu e vive em Moçambique numa tabanca [aldeia], embora tenha empatia e trabalharei para lutar por esses direitos humanos. Mas é muito mais fácil colocar-me no lugar de uma pessoa que está num campo de refugiados na Grécia e que até aqui tinha uma profissão. Encontrei professores, arquitetos, estudantes universitários, que, por motivos de guerra ou de perseguição política, religiosa ou por orientação sexual, tiveram de fugir para evitarem a morte. E a verdade é que ali estão suspensas as suas vidas. Ouvi testemunhos duros, como o de um rapaz que me disse: “Se soubesse, depois de passar a travessia toda, depois de ver pessoas a morrer no Mediterrâneo, depois de ter que pactuar com os traficantes, que me fizeram de tudo, depois de ver mulheres a serem violadas, se soubesse que ao chegar à tal Europa humanista estaria nestas condições, em tendas sem condições nenhumas de higiene, preferia ter morrido na minha terra.”
Nos campos de refugiados vi coisas muito más
A Europa, a terra prometida, revela-se um inferno.
Exatamente. É alguém que tem de escolher entre a morte ou a morte em vida. Pessoas que agora não vivem com condições dignas.
Nesta série, uma criança refugiada chegou mesmo a perguntar à mãe: “Porque é que me trouxeste de novo para a guerra?”...
Nunca tinha testemunhado crianças que tentam o suicídio. Isso diz tudo. É muito fácil e altamente demagogo dizer-se que “pelo menos estão num campo de refugiados, pelo menos não estão a ouvir bombas a cair-lhes em cima”. Mas estão noutra guerra. Aquilo é uma guerra. As crianças não podem ir à escola, a assistência médica é parca. Isto não é viver. Se os refugiados fossem distribuídos pelos países da Europa, se houvesse esse compromisso por parte dos países, como já houve, tudo se resolvia. O que pretendo é agitar a consciência cívica das pessoas.
Que impacto têm estes documentários?
Comecei esta série há 14 anos e, na altura, estava bastante mais otimista em relação ao impacto que os documentários humanitários podiam ter. Aprendi que é um exercício difícil gerar empatia em todos os telespectadores.
O telespectador continua sem empatia pelo que está distante?
Tem menos. No entanto, acho que fazemos a diferença. Sei perfeitamente que estou a expor a dor daquelas pessoas, e às vezes isso incomoda-me. Com a edição, tento proteger ao máximo as pessoas, mas exponho os seus testemunhos. Há material profundamente duro que não mostro.
O que é que não mostra?
As pessoas desesperadas a um ponto incontrolável. Para as proteger. Aquelas pessoas não nasceram pobres. Estão pobres. Não nasceram refugiadas. Estão refugiadas. Mostro aquelas realidades e ao mesmo tempo o que as ONG ou voluntários estão a fazer para colmatar as suas necessidades. É sempre uma perspetiva otimista e esperançosa, para replicar, inspirar, dar exemplo. Depois do programa, há muita gente a apoiar com o seu donativo, há malta nova que se sente identificada com o que vê e concorre a estas ONG. Mas o que é importante dizer é que estes refugiados não querem vir para fazerem de parasitas em Portugal e ficarem com os rendimentos da Segurança Social ou do Estado. É mentira. Basta fazerem uma pesquisa séria para perceberem o que é que os imigrantes e refugiados contribuíram para os cofres do país. É uma muito maior fatia do que aquilo de que beneficiam. Recordo que em Lisboa, assim que surgiu a covid-19, um casal de refugiados [sírios] abriu o seu restaurante [em Moscavide] e ofereceu refeições aos hospitais e profissionais de saúde. Não é uma estalada de luva branca?
Fala-se como nunca antes de racismo, assim como de xenofobia, machismo, homofobia. Mas as manifestações de ódio e violência parecem não ter fim.
Estamos a passar um período altamente perigoso. As pessoas que não subscrevem estes movimentos populistas, estas ideias xenófobas, não inclusivas, racistas, têm de se manifestar, têm que vir para a rua, têm de se mobilizar. Temos de ter uma corrente bastante mais humanista. É a única maneira de enfrentarmos os movimentos populistas financiados por grupos corporativos que têm muita força e querem eleger um salvador, uma personagem, uma estrela rock para resolver os problemas todos de uma forma demagógica, porém eficaz e perigosa. Quando vou às escolas, fico doida por haver ainda hoje miúdos e miúdas de 14 e 15 anos a contarem-me que não querem assumir a orientação sexual porque vão sofrer represálias. Quer na família, quer na região onde vivem. Como é possível? Não há ainda liberdade e igualdade para qualquer pessoa poder ser aquilo que quer. É bom que conheçamos a definição dos direitos humanos. São indivisíveis, insubstituíveis, inalienáveis. Correspondem a todas as pessoas, independentemente da raça, do credo, do idioma, da religião, da orientação sexual, da identidade de género. Porque é que não se vai à base disto tudo?
Da última vez que falámos mostrou-se frustrada com os formatos televisivos. A frustração mantém-se?
Um bocadinho. Tenho imensa pena que os reality shows sejam sempre esta coisa de diminuírem um pouco o espectador. Mas pode ser um preconceito meu e assumo isso. Prefiro os doc-reality. Fiz um que foi “As Idades da Inocência”, na RTP. Ou seja, as pessoas reais estavam lá. Os meninos são reais, os idosos são reais e nós efetivamente não manipulámos nada. Só pusemos as câmaras a funcionar. O que eu gosto mesmo é quando acontece um final com propósito que muda vidas. O que não gosto muito nos reality shows é que não propõem nada de muito interessante para a sociedade, para um pensamento. Pelo contrário, às vezes sublinham preconceitos, perpetuam estereótipos. Aquilo é mentira, é falso. Para isso, vejo boas séries.
Nunca tive ambição de ser diretora de um canal
Imaginava-se a apresentar “O Programa da Catarina” nas manhãs de um qualquer canal?
É provocador. [Risos.] Tive na SIC um programa chamado “Catarina.com” e não queria. Odiaria ter um programa com o meu nome. Os diretores entenderam assim, na altura foi o Manuel Fonseca, e eu não percebia porque é que tinha de ter um programa com o meu nome. Eu assusto-me um bocadinho com isso. Juro. É mesmo verdade. Faz-me impressão. Achei lindamente a ‘casa’ da Cristina [Ferreira] e da Júlia [Pinheiro] e com quem se sente bem. Mas não me imagino num programa com o meu nome. Não é uma coisa que ambicione. Mas podia fazer manhãs e tardes.
Como seria a sua televisão se fosse diretora de um canal?
Nunca tive ambição de ser diretora de um canal. Já fui, em tempos, semiabordada para isso e não é de todo uma ambição minha. Mas tiro o chapéu a todos os diretores das estações, porque sei perfeitamente que não é fácil. E nem eles estão a fazer a televisão deles, têm de fazer concessões. Não me imagino nesse papel. Para quê? Para ter o poder e chamarem-me de diretora?
Como está a lidar com o passar dos anos?
Nunca é bom. Acho horrível. Mas, curiosamente, nunca me senti tão segura. É a experiência. Já não tenho paciência para muita coisa. É olhar para as pessoas e pensar: “Ah é, não fazes nada pelo mundo? Não te interessas pelos outros? Então não contas.” Se as pessoas soubessem que é aí que reside a verdadeira felicidade... quando sentes que és importante no caminho dos outros, que com os teus privilégios podes fazer a diferença. Todos os privilegiados deveriam pôr os seus privilégios ao serviço dos outros. É aí que reside a felicidade, e não na procura de ter mais. É tão incrível a quantidade de vidas que já mudámos na Corações com Coroa, e isso dá-me poder. Quanto ao passar dos anos, é uma seca. E não me posso queixar, agradeço aos genes. Mas claro que me cuido. No confinamento, vi que estava a engordar e fiz uma dieta, perdi três quilos. Na parte física e mental somos responsáveis pelas nossas escolhas. O que comemos, os amigos que escolhemos, os amores. Se bem que nos amores é onde se pode evitar menos bater com a cabeça. É sabermos gostar muito de nós próprios. Mas abrir espaço para saber ser gostado.
Se a desafiar a convidar uma pessoa que não conhece para um gelado e uma conversa, quem seria?
Gostava de ter uma longa conversa com a Malala, para explorar melhor a sua generosidade. Depois de ter estado à beira da morte, o medo não lhe comeu a alma e vive para lutar pela escolaridade de milhões de raparigas. Podia só lutar pelo seu próprio futuro.
Agradecimento à geladaria Davvero
Postais do Sul
A (outra) Baixa Pombalina
Em 1755, quando se dá o terramoto que destrói grande parte de Lisboa e muito das localidades da costa algarvia, Santo António de Arenilha, na foz do Guadiana, depois de uma época de algum fulgor, é um lugarejo quase ao abandono. O sismo (e o tsunami que lhe terá seguido) praticamente acaba com a localidade, derrubando as construções que ainda lá existiam. Mas, em 1773, D. José I, preocupado com a defesa da fronteira com Espanha, decide criar no local uma cidade. Chama-lhe Vila Real de Santo António e delega a construção no secretário de Estado do Reino: Sebastião José de Carvalho e Melo. O Marquês de Pombal, que já tinha sido responsável pela reconstrução de Lisboa após o terramoto, decide aplicar à nova urbe as regras que havia seguido na capital e a cidade é desenhada, de raiz, como se fosse um quadrado: Ruas paralelas ou perpendiculares, muito à semelhança do que havia sido feito na Baixa Pombalina lisboeta. A obra foi concluída em tempo recorde — em 1776 a localidade estava construída — e atualmente trata-se do “mais coerente programa urbanístico do Estado Absolutista”, segundo a Direção Nacional do Património Cultural. Desde 2011 que está classificado como Conjunto de Interesse Público. João Mira Godinho
Catarina Furtado, apresentadora, atriz