VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

José Gil Filósofo

O futuro não me parece bom

É um dos mais notáveis pensadores portugueses. Autor de dezenas de livros e ensaios, a obra “Portugal, Hoje — O Medo de Existir”, de 2004, foi um sucesso de vendas e levou a revista francesa “Le Nouvel Observateur” a considerá-lo um dos mais importantes pensadores do mundo contemporâneo. Em setembro vai lançar “O Tempo Indomável”, livro onde reflete sobre os novos tempos marcados pela pandemia

Texto Bernardo Mendonça Foto Ana Baião

O filósofo e pensador José Gil sugere o encontro junto ao Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, pelas sombras suaves daquele lugar. Não perde tempo a escolher entre a paleta de sabores de gelado: frutos vermelhos e baunilha. A escolha tem uma explicação simples: “Porque gosto. Faz-me lembrar aquela frase do Fernando Pessoa que dizia algo como ‘Para conhecer uma maçã, basta comê-la.’” Começamos pela ideia de “medo”, um conceito já muito refletido por José Gil e que nesta pandemia ganhou outro significado.

Como escreveu em 2004 no seu livro “Portugal, Hoje — O Medo de Existir”, com esta pandemia voltámos a “como convém... televiver”?

Sim, de certa maneira. Eu até acredito que uma das razões pelas quais o povo português obedeceu tão bem às prescrições de confinamento dadas pelo Governo foi devido a qualquer coisa que chamo de uma sensibilização particular ao medo da morte. É por medo e por facilidade em acatar as ordens, por obediência...

Uma obediência atávica?

Não. Mistura-se aqui muita coisa que tem a ver com a aprendizagem da liberdade na democracia, que é infinita e que em Portugal se está a fazer ainda, apesar de todas estas décadas passadas.

Esta nova experiência é diferente do medo de existir dos portugueses que referia no seu livro há 16 anos. Vive-se agora o medo de um vírus, mas também o medo do outro... Esta nova realidade, este novo paradigma está a transformar-nos?

Espero que não. Primeiro, não sei se se pode dizer que este novo comportamento obedece a um novo paradigma. Não me parece. As pessoas confinaram, obedeceram e esperaram. Mas o confinamento era provisório. O que se queria era voltar à fase anterior, aos comportamentos ditos normais.

Mas com esta pandemia tudo mudou. Nada vai ficar igual?

Nada vai ficar igual, mas não porque não se queira voltar ao normal. É pelas razões que têm a ver com a própria pandemia, o que se vai engrenar da pandemia com a recessão económica e com os danos, as catástrofes que vão acontecer mais regularmente no plano das alterações climáticas.

Como vê o futuro?

O futuro não me parece bom. Ninguém pode dizer que é um futuro bom. Só o Donald Trump. Para a sua campanha e para a sua cabeça. Porque é que isto não vai ser fácil? Pelas razões que evocámos, vai haver um entrosamento entre três crises. Uma de que não se vê o fim, é a [crise] pandémica. Não sei mesmo se haverá uma vacina realmente eficaz. No melhor dos casos, [será] no primeiro trimestre de 2021. Aí haverá já os efeitos reais, presentes [de outra crise], a recessão económica. Tudo vai piorar. E ainda o que está a ser cada vez mais imprevisível e que são os pequeninos cataclismos, que podem ser médios ou grandes desastres naturais provocados pelo Homem.

Vê esta pandemia como uma espécie de ‘revolta’ da Natureza perante a destruição ambiental provocada pelo Homem, como certas teses apontam?

A Natureza não se revolta, não tem intenções. O que se está cada vez mais a afirmar com testemunhos, evidências e factos é que a desflorestação, a monocultura intensiva são fatores que subvertem os equilíbrios ecossistémicos e favorecem os surtos e as passagens de vírus dos animais para os homens.

Estamos a inaugurar um tempo de instabilidade que não tem fim”

Vive com medo do vírus?

Sim, vivo com medo, apreensão. E fazendo o mais possível por vencer o medo. Porque é fundamental vencer o medo. Ter confiança. Porque senão não se faz nada. Mas tem de se ter constantemente cuidado. Faço parte de um grupo de risco e tenho de ter as cautelas que correspondem na medida do possível, porque nós não sabemos tudo. E porque este vírus ataca tão rapidamente, tão simultaneamente, tão imprevisivelmente...

Nas últimas semanas, Portugal foi dos países europeus com mais novos casos de infetados, e há países, como o Reino Unido, que nos colocam fora do chamado ‘corredor turístico’. Como vê este cenário?

Nós só podemos ver isso fora do quadro propagandístico em que somos convidados a situarmo-nos. Na propaganda anterior, éramos os melhores do mundo, o milagre português no confinamento. [E agora] não se percebe porque é que o primeiro-ministro vai apresentar estatísticas e comparações entre os mortos e infetados no Algarve com os mortos e infetados em Inglaterra. Isto é absurdo. Fora deste quadro propagandístico que não se pode aceitar, não lhe sei dizer. Sei simplesmente que há falhas e que os números de infetados põem Portugal numa má posição.

Como viveu este confinamento? Em grandes leituras? A escrever?

Li imenso. Muito mais do que o habitual. E temas que só conhecia superficialmente. Destaco um belo livro para se ter como referência para as questões das alterações climáticas, do pensador e filósofo [francês] Bruno Latour: “Down to Earth: Politics in the New Climatic Regime”. Também li outro sobre as alterações climáticas que inquieta imenso, “A Terra Inabitável”, de David Wallace-Wells. E acabei de escrever um livro, que vou publicar em breve, em setembro.

O seu próximo livro fala desta pandemia. Em que medida?

O livro chama-se “O Tempo Indomável” e tem duas partes. A primeira parte é de ensaios sobre estética. E a segunda parte são “textos da pandemia”, como lhes chamo. Textos sobre a pandemia, vindos da pandemia, etc.

Vivemos tempos indomáveis?

É isso mesmo. Vivemos tempos indomáveis, porque julgámos sempre que podíamos domar o tempo estabelecendo hábitos, regularidades, repetições. E isso põe o tempo nos gonzos, como dizia Shakespeare [em “Hamlet”]. Estamos possivelmente a inaugurar um tempo de instabilidade que não tem fim à vista. Um tempo não domável. Perguntamo-nos, sem poder responder, quando é que novamente julgamos poder domá-lo. E quando podemos domar-nos a nós próprios. Repare: o pior que nos pode acontecer, de um ponto de vista existencial, é o que a pandemia e este desconfinamento nos mostra — a instabilidade. Ninguém pense que se pode viver em estado instável. Só se vive com continuidades.

Vivo com medo, apreensão. E fazendo o mais possível por vencer o medo”

Como superar esta instabilidade?

Não sei. Na cabeça das pessoas está [a questão]: “Como e quando isto vai estabilizar?” É o estabilizar da curva, das estatísticas, da vida... E se nunca mais estabilizar?

Sei que a inquietação das perguntas é algo que o acompanha desde a adolescência. Essa inquietação tem aumentado?

Tem-se transformado. Possivelmente, continua como inquietação profunda, mas tornou-se muito menos pessoal. Impessoalizou-se, mas continuou a rodar.

Ainda vive o desassossego e a volúpia do pensamento de que me falou da última vez?

Sim. Há umas pessoas que gostam de nadar, há outras que gostam de desenhar. Eu gosto de encontrar, levantar questões, pensar. Dá-me prazer. Porquê? Porque entro nas questões que eu coloco. São questões que podem ser muito abstratas mas no movimento das questões e respostas, da maneira como irrompe uma possibilidade, uma hipótese, tudo isso entra num movimento em que se está todo. E isso é um prazer. Como uma acrobacia é um prazer.

É a acrobacia do pensamento?

Será. Porque não? Ou a dança [do pensamento]. Como dizia o Nietzsche.

O que lhe provoca “cansaço e tédio”?

Cansaço, tenho. Tédio, nunca. E já escrevi muito sobre o tédio. Sobre o cansaço, quando se atinge uma certa idade, que é o meu caso, há um tipo de cansaço que devemos evitar, de que devemos escapar sempre e que muitos velhos têm: o cansaço de viver.

Tem conseguido escapar desse cansaço de viver?

Quando ele aparece, quando se faz notar, tenho escapado, mais ou menos.

E, além do pensamento, o que lhe dá um prazer dos diabos?

Ah, imensa coisa. Gosto muito de jogar. Todos os jogos. Jogo todo o tipo de jogos de cartas, gosto de jogar pingue-pongue, xadrez... Tudo o que é lúdico gosto e dá-me imenso prazer.

Que filme ou série lhe respondeu a alguma das suas curiosidades ou questões?

Há um filme de que gosto particularmente do Christopher Nolan, o “Interstellar”. Acho que é talvez o único filme de ficção científica capaz de nos dar uma sensação de um espaço que não tem a ver com o nosso espaço. Quer dizer, que não é antropomorfizado. Além das qualidades fílmicas dessa obra.

Como são as férias que lhe enchem as medidas?

Durante muito tempo tive uma imagem muito precisa de um espaço que me convinha. Uma montanha ao pé, uma sala vidrada de certa maneira, uma inclinação relativamente ao espaço. Isso é um espaço. Mas se lhe for evocar uma imagem particularmente feliz que vem da infância, e que eu não compreendo nem ninguém compreende, é a imagem de eu a correr por um pontão que entra no mar, uma luz que se faz, como aquelas luzes de África que iluminam, sem ferir, toda a paisagem, e uma sensação ilimitada de felicidade. O que é que isto quer dizer, como foi, quando, o que é que isto em mim significa... não sei.

Se o desafiasse a convidar alguém que não conhece bem ou desconhece para um gelado e uma conversa, quem seria?

Podia convidar uma pessoa que eu julgo conhecer muito mas conheço muito pouco. E com quem, como já fiz, comeria um gelado com muito prazer. É pura e simplesmente a minha mulher.

Agradecimento à Geladaria Artisani

Postais do Sul

Alves, o único morador da ilha Deserta

Em plena Ria Formosa, em frente a Faro, fica a ilha Deserta. Com um extenso areal, é assim chamada pois não tem qualquer construção, além de um restaurante — o Estaminé — e... da casa do Alves, Fernando Manuel Alves, de 72 anos, o único morador da ilha desde 1984.

“Na altura, existiam aqui 47 casas de pescadores, que foram demolidas, só ficou a casa onde vivo e três outros apoios de pesca”, conta o homem. Inicialmente, o Alves, como é conhecido, continuou a morar em Olhão, mas a situação para ele tornou-se insustentável: “Em três anos, tive três assaltos. Chegou a um ponto em que não estava mais para isso e, depois de uma conversa com a mulher, decidi que o melhor era mudar-me definitivamente para aqui.”

Instalou-se no apoio de pesca, que foi melhorando — atualmente tem cozinha, casa de banho, eletricidade e fossas para os esgotos. E tornou-se uma figura popular entre quem vai à ilha. “As pessoas sabem que eu estou cá e vêm visitar-me, trazem qualquer coisa para comer e ficamos aqui a conversar”, explica.

Pescador a vida toda, o Alves está reformado, mas agora já não pensa deixar o local. “Aqui estou bem, tenho tudo”, garante. “Só volto para terra se tiver algum problema de saúde que me obrigue a isso.”

João Mira Godinho