VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

Nuno Markl Radialista, humorista

“O humor na sua essência implica algum insulto”

Para muitos a salvação do confinamento foram os diretos no Instagram de Bruno Nogueira, “Como é que o Bicho Mexe”, onde Nuno Markl participou diariamente durante dois meses. No último episódio, visto por mais de 170 mil pessoas, conseguiram encher as ruas do país com luzes de Natal em maio. Foi um dos momentos mais felizes do percurso de Markl. Ele que já escreveu para Herman José, encheu coliseus com os seus programas de rádio e assinou uma série de culto sobre os anos 80 — “1986”. Para o ano prevê finalmente poder estrear “Por Ela”, a longa-metragem que escreveu

Texto Bernardo Mendonça Foto Ana Baião

Mal Nuno Markl retira a máscara para provar o gelado, ouve-se o aviso: “Cuidado que ele morde o cão!” A piada não é original e o humorista, radialista e argumentista já a deve ouvir há 23 anos, desde que, em 1997, começou a rubrica radiofónica “O Homem que Mordeu o Cão” , na Comercial. Desta vez, Markl “mordeu” um gelado de morango e marabunta. “Morango porque é uma instituição desta geladaria e marabunta por gostar desta combinação de nata com bocadinhos de chocolate.” E como o sol escaldava, e Markl é atreito ao acidente, tomou um certo banho de gelado enquanto tentava mantê-lo inteiro. “Tenho gelado em todo o corpo, talvez algum tenha ido para as virilhas. Mas está tudo bem.” Começámos pelo “Bicho” que mexeu com milhares de portugueses no Instagram.

Que bicho vos mordeu, ao Bruno Nogueira e a si, para terem conseguido tanto sucesso nos diretos do Instagram?

Foi o lado sincero e orgânico de tudo aquilo. Partiu de inquietações, dúvidas e angústias dele, no início da pandemia, e fez estes diretos com os amigos para tentarmos juntos fazer uma espécie de terapia de grupo. Começou dessa maneira, sem qualquer expectativa. E depois acabou por ser bom para as pessoas. Foi um contágio no bom sentido. Foi lindo. Foi das melhores coisas que fiz na vida.

Já fez tanta coisa com sucesso, como é que estes diretos se incluem nos seus melhores momentos?

Por causa da noite em que nós [eu e Bruno Nogueira] saímos estrada fora [no último episódio do “Como é que o Bicho Mexe”] e percebemos que havia luzes de Natal por todo o lado e pessoas a acenar-nos nas janelas e na rua. Isso foi uma coisa incomparável que nunca tinha presenciado na vida. Para começar, de uma maneira muito intimista e lamechas até, o momento em que o Bruno me aparece à porta de casa. Porque não via [presencialmente] nenhum dos meus amigos há dois meses. Estava habituado a vê-lo num ecrã de telemóvel e quando ele aparece junto ao meu portão, juro-te, as lágrimas vieram-me aos olhos. Foi uma coisa muito intensa e incomparável.

Faria sentido adaptarem este formato para a televisão ou o que acontece no Instagram fica no Instagram?

Não faz sentido. A mística disto foi as pessoas tirarem o seu telemóvel do bolso às onze da noite e perceberem que estava lá [no Instagram] o iconezinho do Bruno a dizer que ia começar um direto. Isso é incomparável. É tão diferente de tudo que a televisão iria banalizar e condicionar. A televisão condiciona sempre.

E estas plataformas digitais são...

A liberdade absoluta. Algo como “O Bicho” tem a grande vantagem de não termos ninguém a mandar em nós. E houve algumas noites em que aquilo desviou para caminhos que não eram propriamente de comédia. Lembro-me de me sentir genuinamente triste, porque o meu filho tinha estado a chorar, a dizer que não queria morrer, nem que eu e a mãe dele morressem, estava inquieto com as notícias da pandemia, não percebia o que estava a acontecer e eu não tinha respostas para lhe dar. Daí o título “como é que o bicho mexe”. Eram inquietações nossas.

Recentemente, na sequência da notícia da morte do ator Pedro Lima, assumiu na rádio que continua com problemas de autoestima e que pediu ajuda...

Deve ser da idade, pá. Está a tornar-me mais honesto. Quando li a [última] entrevista do Pedro Lima em que ele apontava aquelas razões todas, dei por mim a pensar que eram exatamente as mesmas razões que me fizeram procurar ajuda e terapia há um ano. Porque há muita gente que ainda tem uma imagem esquisita da terapia, porque é um sinal de fraqueza. Há homens que têm pruridos e complexos em ir à psicoterapia porque acham que pode ser uma fraqueza. Falei disso, porque achei que as pessoas devem ter mais empatia. Têm de olhar mais para os outros, até para aqueles que profissionalmente têm de sorrir quase a toda a hora. Esse é um dos problemas deste meio. O público e este meio não perdoa se a pessoa tira uma fotografia em que está mais séria. É logo “O que é que se passa? Morreu alguém? Sorriso. Sorrir.” [risos]

Ainda acham que sou só o gajo da rádio e das piadas...

O que pode ser muito pesado...

Sim. Quando o Pedro morreu o Malato escreveu algo em que me revi. Há uma ditadura da felicidade neste meio. E as pessoas têm o direito de estarem tristes. O problema é que há muita gente a recalcar a tristeza.

O seu trabalho continua a ser uma catarse para os problemas?

Desde sempre. E achei que conseguia resolvê-los só com trabalho, só com comédia. Por isso faço um espetáculo a que chamei “Como Ser um Saco de Pancada Deprimente e Vencer na Vida”, que agora tive de parar, e que resume a minha abordagem ao humor. Eu não faço personagens. Eu sou a minha própria personagem de comédia. E é claro que isso é muito giro e pode ajudar a resolver algumas coisas, mas por outro lado cria uma grande confusão. Uma das grandes confusões que tinha é que, às tantas, não sabia quem era o Markl fictício e o Markl real. Ou seja, o Markl figura cómica e o Markl pessoa com família, com mãe, com filho.

A idade está a ajudar em quê?

A desabafar mais. Parece que já não tenho grande coisa a provar no sentido de ‘deixa-me cá parecer fixe’ sempre. Se calhar agora tenho direito a parecer vulnerável e triste. E a fazer uma edição de “O Homem que Mordeu o Cão” que não é para rir, como aquela que fiz sobre o Pedro Lima. Sinto que agora à beira dos 50 — vou fazer 49 daqui a dias — há menos bullshit [tretas], posso ser honesto e dizer coisas com maior franqueza. É mais libertador.

Há pouco comentava que nem no confinamento abrandou. Nunca pára?

É isso que me alimenta também. Estou mais criterioso nas coisas em que me meto. Mas durante o confinamento surgiu uma produtora interessada no meu argumento do [filme] “Por Ela” que esteve em crowdfunding há uns anos e acabou por ficar em águas de bacalhau. Nunca desisti dele, mas agora as coisas estão a avançar e cheguei a reescrever partes do guião no confinamento. Espero que aconteça para o ano. Eu adoro fazer “O Homem que Mordeu o Cão” [na rádio], mas um dos meus complexos há uns anos era que as pessoas me pusessem essa etiqueta e não me deixassem fazer mais nada. Tive a sorte de fazer a série “1986”, mas sinto que não sou olhado pelas pessoas que estão em lugares de direção dos canais de televisão como mais do que “O Homem que Mordeu o Cão.” Não sou a primeira escolha intuitiva para alguém dizer “esta era capaz de ser uma série gira para o Markl escrever.”

Há uma ditadura da felicidade. E muita gente a recalcar a tristeza

Não o levam a sério?

Ainda acham que sou só o gajo da rádio e das piadas. Lembro-me de quando estava a vender o [guião da série televisiva] “1986”, tive uma reunião na RTP em que me foi dito — não vou dizer quem — “mas será que consegues escrever isto? Tu és o gajo das piadas. Isto é uma história de amor, pá”. O que por um lado é interessante. Não me faz sentir como um monstro sagrado que tem as facilidades todas. Quando tenho de vender um filme a alguém parece que tenho outra vez 20 anos, e isso é interessante.

Acredita mais no lado bom ou mau da humanidade?

No lado mau [risos]. Acho que a humanidade é intrinsecamente lixada.

Não tendemos a ser menos racistas, menos misóginos, menos homofóbicos?

Não. Mas é ótimo que agora se fale disso de uma maneira explosiva.

Porém, muitas pessoas, inclusive humoristas, insurgem-se com o dito “politicamente correto” e com o facto de “agora não se poder dizer nada”...

Eu próprio às vezes chateio-me. Esses assuntos são importantes. Mas não vejo que vantagens pode trazer para uma causa tão nobre como a luta contra o racismo, apagarem um episódio da “Fawlty Towers” [série britânica]. Sendo que o John Cleese explicou, e é triste que tenha de explicar, que quando criou um antigo militar, super-racista, que diz as coisas mais bárbaras sobre raça, não está a defender o ponto de vista daquele militar, está a denunciar. Mas para criares uma denúncia em ficção tens de escrever coisas muito desagradáveis para serem ditas e se perceber que são erradas. Apagar um desses episódios e colocá-lo no mesmo prato da balança em que metes um insulto qualquer feito por um militante do Chega não faz sentido.

Uma piada não pode ser insultuosa?

Na verdade, pode. O “South Park” é insultuoso do primeiro ao último episódio. E é maravilhoso. O humor na sua essência implica algum insulto. É aquela coisa que o Mel Brooks diz, que o humor quando é bem feito é o bobo da corte a segredar coisas perversas ao ouvido do rei. É um espelho para o que nós temos de pior. O humor não pode ser inteiramente bonzinho, senão não é humor. A função da comédia é ser um bocadinho perversa e má. Mas acho também que o humor tem uma função muito importante de denunciar coisas. Uma das coisas que mais me marcou na vida foi ver “Dr. Strangelove” quando era miúdo e perceber as mensagens terríveis que aquilo tem sobre a estupidez da guerra. Criar para denunciar o racismo é maravilhoso. Destruir não me parece uma boa política, sobretudo quando são denúncias do racismo.

O que anda a ler ou a ver?

Gostei muito do “Space Force”, na Netflix, com Steve Carell. Espécie de “Dr. Strangelove” dos tempos modernos. Só o facto de ter como parelha cómica Steve Carell e John Malkovich é o sonho. E vou começar a ler o livro do Charlie Kaufman, “Antkind”. É o primeiro romance do argumentista de “Being John Malkovich”, insano, épico, de 700 páginas.

Agradecimento à geladaria Santini

Postais do Sul

A ermida onde o infante orava

Muitas são as dúvidas que ainda hoje existem sobre Sagres e sobre o papel que a localidade desempenhou nos Descobrimentos. Se é praticamente certo que não existiu qualquer ‘escola’ de marinheiros, aspetos como a verdadeira localização de Terçanabal (ou Vila do Infante), que o infante D. Henrique fundou quando passou a viver no Algarve, por volta de 1440, continuam a ser alvo de debate — apesar de a atual Sagres ser, por muitos, apontada como essa localização. O que é (quase) unânime é a utilização, por parte do infante, da Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe para orar. Situada a cerca de 12 quilómetros do promontório, num local isolado, a ermida terá sido construída após a batalha do Salado — em que Afonso IV, de Portugal, e Afonso XI, de Castela, derrotaram os mouros, com o monarca espanhol a atribuir a vitória à intervenção da santa. Mas também aqui há dúvidas, e há quem coloque a construção do templo apenas no século XV. Pequena e simples tanto na arquitetura como na decoração, está classificada como Monumento Nacio­nal desde 1955. Refira-se que a estátua de Nossa Senhora de Guadalupe foi descoberta no início do século XIV, perto de Guadalupe, em Cáceres, Espanha, e trata-se de uma Virgem Negra. João Mira Godinho