verão dois gelados de conversa

Miguel Guilherme Ator

“O passado persegue-nos a todos”

Depois de reviver os anos 80 na 6ª temporada da série televisiva da RTP “Conta-me como Foi”, Miguel Guilherme prepara-se agora para os ensaios da peça “Última Hora”, “uma comédia profundamente triste”, escrita por Rui Cardoso Martins, com estreia marcada para outubro, que retrata a crise da imprensa portuguesa. “O caminho do teatro deve ser o de desinquietar e fazer perguntas”

Texto Bernardo Mendonça Foto Nuno Botelho

Se não tivesse havido pandemia, Miguel Guilherme teria feito uma grande viagem por Itália. O projeto ficou adiado, mas neste confinamento aproveitou para ler muito sobre o país e a cultura italiana, em particular o período do Renascimento. Assim, este encontro só poderia ter sido marcado numa geladaria italiana. A escolha foi clássica: morango e nata. E, como manda a boa tradição italiana, com nata batida a cobrir as duas bolas. Já em ensaios da comédia teatral “Última Hora”, com estreia marcada para 8 de outubro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, o ator encarna o papel de diretor de um jornal português numa peça assinada por Rui Cardoso Martins que conta a história de uma “pobre, cercada e aterrorizada redação que vive o destino de todos os periódicos: uma grave crise e a aproximação do fim”. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Conversar com Miguel Guilherme é como comer um bom gelado, não há vontade de parar. E, mesmo depois de desligado o gravador, ainda falámos do que é isso de se estar bem e de se manter o entusiasmo pela vida. “É tirarmos partido das pequenas centelhas de felicidade, dos pequenos nadas. Como comer um gelado e ter uma boa conversa.”

Se tivesse que escrever a sua autobiografia, começaria por que cena?

Acho que uma autobiografia só o é se falar daquilo que corre mal, tem de ter alguma irrisão em relação ao próprio comportamento. Talvez começasse por um episódio passado aos 4 anos, quando roubei pela primeira vez um carrinho numa loja de brinquedos. Eu tinha a noção de que estava a roubar.

Porque é que partilha essa memória?

Porque uma autobiografia que se vangloria e que trata o eu como um ‘super eu’ não é boa. Não é que eu me tenha tornado um ladrão, hã? [risos]

Quando se vive uma vida entre a ficção e a realidade, chegam a fundir-se os mundos e, algumas vezes, chega a falar-se a verdade a mentir, como na peça de Almeida Garrett?

Falar a verdade a mentir nunca aconteceu. Mas confundir os mundos, sim. Confundi sempre muito o meu trabalho com a minha vida e isso trouxe-me problemas. O trabalho sempre foi mais importante do que a minha vida pessoal. Penso agora que seria melhor conseguir ter duas realidades separadas e nunca as tive. Nunca fui de grandes objetivos na vida.

Já tem algum?

A vida é tão sem sentido que nós criamos objetivos para lhe dar algum sentido. Ou seja, não há qualquer sentido na vida. Agora estou a falar como um ateu, não é? E nem sequer sou muito ateu. As pessoas vão inventando objetivos: a família, o trabalho, a religião, a política. Agora estou interessado em trabalhar muito. Quero continuar a ser ator até o mais tarde possível. Mas ao mesmo tempo quero olhar para o que está à volta um bocadinho mais. Viver um bocadinho melhor. Dar mais atenção às pessoas.

Tem falhado nisso?

Não totalmente. Fui falhando ao longo da vida. Dando-lhes pouco tempo e, às vezes, pouca atenção. A maior parte das pessoas não diria isso. Diria que não tem remorsos e que faria tudo como tem feito. Eu não. Havia coisas que faria completamente ao contrário. Mas não podes ficar preso a isso. Ontem vi uma frase muito engraçada num filme: “Nós não ligamos ao passado, mas o passado persegue-nos.” Foi numa série qualquer rasca, mas a frase é interessante. O passado persegue-nos a todos, invariavelmente. E geralmente as memórias que te perseguem são más memórias. As boas também me perseguem. É preciso encontrar respostas e uma narrativa que não seja totalmente falsa e delirante. Ajuda-te a perspetivar e a avançar. Sem cometer os mesmos erros.

Sou muito amigo do Bruno Nogueira, mas não me consegui encaixar nos seus diretos do Instagram

O maior perigo do ator é o ego?

É. Acho que está muito ligado ao julgamento que os outros fazem. E isso pode criar sequelas na mente do ator. Quando as coisas correm muito bem os egos podem-se inflamar de tal maneira que a pessoa não fica em si. E comete muitos erros na vida.

É um ator premiado, estimado e admirado. As coisas já correram bem para si muitas vezes. Isso fê-lo tomar más decisões? Deixou-lhe sequelas?

Diria que não fiquei completamente deslumbrado, mas sim, houve momentos em que talvez isso me tenha acontecido. Em que o ego se torna na realidade toda. Há uma espécie de distorção do que é real. E do teu real valor, sobretudo na sociedade. E isso pode contaminar tudo. Já vi isso acontecer com outros.

O que há de melhor e pior na sua profissão?

É um prazer expressar-me artisticamente desta maneira. O que pode ser menos bom, em termos sociais, é a instabilidade económica. E por cá as pessoas não estão muito bem organizadas e sem organização na classe [artística] não te consegues fazer ouvir e respeitar.

Com esta pandemia percebeu-se o estado frágil do sector da cultura, mas a sua classe interajudou-se e fez-se ouvir.

É verdade. Geralmente o que acontece com a classe das artes performativas é que em momentos destes faz-se ouvir, mas depois quando se resolvem minimamente as coisas deixa de estar organizada.

O Governo tem tomado as medidas certas para a cultura?

O que tem feito é acudir a fogos, sobretudo de pessoas que estão muito mal. Mas as coisas só mudam [nos direitos e garantias dos profissionais das artes] se continuar a haver pressão social.

Já me disse no passado que é um tipo melancólico e que cada vez tem mais dificuldade em rir. O jornalista e escritor brasileiro Carlos Heitor Cony considerou a melancolia como a saudade do que não é vivido. É assim?

É uma grande definição. A melancolia pode ser mesmo a saudade do que não é vivido. Ou do que não tivemos e devíamos ter tido. Pode ser também um estado poético. Ou um estado semidepressivo. Não me rio muito, mas quando me rio é às bandeiras despregadas. Tenho dificuldade em parar de rir. O facto de não me rir muito não quer dizer que não esteja atento ao lado cómico e risível das coisas.

Quando olham para mim já não acham tanto interesse. Acabou o ‘olha que gajo tão giro’

A propósito, durante o confinamento chegou a participar num dos famosos diretos no Instagram do Bruno Nogueira, o “Como É Que o Bicho Mexe”.

Sim, logo no primeiro. Mas aquilo é humor com uma cumplicidade geracional. E eu já estou numa geração um bocadinho diferente. Sou muito amigo do Bruno, mas autoexcluí-me daquilo porque não era para mim, não me consegui encaixar, nem fiz grande esforço. Tenho a segurança suficiente para ser amigo do Bruno sem participar nos programas dele. Naquele registo não me senti muito confortável, é um registo de improvisação sem rede que não sei fazer, nem gosto. De ver, às vezes gosto, não gosto é de fazer.

O que é que o faz rir?

O Bruno e o Ricardo Araújo Pereira fazem-me rir. Não há muita coisa que me faça rir, vamos lá ser sinceros. Mas tenho um fundo profundamente cómico. Sou um ator sobretudo cómico.

Qual o caminho para lhe provocarem uma gargalhada?

O inesperado. Algo que surge fora do contexto. Porque o riso em si é profundamente animal e fisicamente libertador. Gosto de ver as pessoas a rir selvaticamente. Seja do que for. Atrai-me.

E gosta de lhes provocar isso?

Gosto. Mas depende muito do que estou a fazer. Por exemplo, a comédia que vou fazer agora no Teatro Nacional [D. Maria II] chamada “Última Hora” é uma comédia profundamente triste sobre o jornalismo. A peça é encenada pelo Gonçalo Amorim e escrita pelo Rui Cardoso Martins, que trabalhou em jornais. É a história da redação de um jornal a tentar salvá-lo.

São os tempos de agora, com jornais a fecharem e em crise.

Sim, é uma peça que analisa a crise na imprensa escrita, que parece estar a resolver mais a contradição entre o papel e o digital. É uma comédia muito triste, mas tem momentos hilariantes. Esta peça interessa-me porque há poucas a falar da realidade do quotidiano atual em Portugal. Porque o caminho do teatro deve ser sempre o de desinquietar as pessoas. Fazer muitas perguntas e, às vezes, dar respostas.

Está a gostar dos seus cabelos brancos, das rugas, do envelhecer?

O envelhecer não tem nada de interessante. Nada. O corpo envelhece, deteriora-se. Há sofrimento físico, não tem muito interesse. Trata-se de levar a coisa até ao fim com alguma dignidade. Estou no dealbar do fim de ser adulto para me tornar num velho. Estou mesmo naquela fronteira e a começar a senti-la. Quando olham para mim na rua já não acham tanto interesse. Acabou o “olha que gajo tão giro”. Não gosto muito da ideia de envelhecer, mas até ao fim podes fazer coisas interessantes, descobrir coisas. Mas não me venham fazer o elogio da velhice. Não tenho nada contra os velhos. Vou começar a entrar lá, não é? Na verdade, a velhice é um conceito que se vai estendendo, mudando. Estamos a prolongar a longevidade, a adiar a morte e a decrepitude. E a conseguir. Apetece-me citar o título de um livro do Julian Barnes “Nada a Temer”! Na realidade, há tudo a temer.

Como viveu o confinamento?

Vivi-o bem. Muito sozinho. Com o meu cão, o “Coco”. Falava muito com pessoas através do Facetime. E li muito. Li que nem um louco, como não lia desde os meus 14 ou 15 anos. Em 60 dias li uns 20 ou 30 livros. Li um do Julian Barnes “Keeping an Eye Open”, que são ensaios sobre arte, sobretudo sobre pintura do século XVIII e XIX. Li um livro do Manuel Mujica Láinez sobre o Renascimento italiano. Reli “A Condição Humana”, de André Malraux, li a “A Ronda da Noite”, de Agustina Bessa-Luís, e os vários livros do António Mega Ferreira sobre Itália, porque estava a planear fazer uma viagem a Itália.

Se pudesse convidar alguém que não conhece para um gelado quem seria?

A atriz Sara Barros Leitão. Não a conheço pessoalmente. Li uma entrevista dela e percebi que é inteligente, articulada em termos políticos e interessada nas questões de trabalho e organização da nossa classe. A Sara é dirigente de uma associação de profissionais de artes performativas que é a Plateia e tem ideias e ação. Precisamos de mais jovens ativistas inteligentes e generosos no teatro que levem isto para a frente.

Agradecimento à geladaria Nannarella

Postais do Sul

De armação de pesca a ‘berço’ do turismo

Foi a pesca do atum que levou os moradores de Pera (e também de Alcantarilha) a colocarem uma armação na baía, junto à costa a cerca de 2 km a sul da localidade do concelho de Silves. A primeira referência a esse lugar surge no século XVI e, nesse tempo, provavelmente, as cabanas de madeira que o constituíam apenas eram ocupadas no perío­do em que os atuns passavam junto à costa — até porque os ataques de piratas mouros eram frequentes. A construção (entre os séculos XVI e XVII) da que hoje é conhecida como Fortaleza de Armação de Pera permitiu o estabelecimento permanente de moradores e o lugar prosperou, tendo a pesca como principal atividade económica. No entanto, por volta de 1840, uma descrição da zona já inclui uma praia onde “concorrem muitas pessoas a tomar banhos de mar”. Com a procura balnear a aumentar, o futuro acaba por ficar traçado em 1923, quando Armação de Pera recebe a primeira Comissão de Iniciativa do Turismo, criada no Algarve. O organismo viria a transformar-se na Junta de Turismo de Armação de Pera, absorvida pela Região de Turismo do Algarve em 1970. Nessa década tinha início a explosão imobiliária na costa algarvia. E o resto da história é conhecido. João Mira Godinho