CRISTOVAM PAVIA
O mistério do H.M.E.

Infância Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, mais tarde Cristovam Pavia

Infância Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, mais tarde Cristovam Pavia

O que pode acontecer quando se lê poesia na rádio? Relato de uma improvável sequência de acontecimentos que levou à redescoberta de um poeta esquecido. E de todos os seus poemas, menos um

Texto Ricardo Marques Fotografias Pedro Nunes

Luís de Andrea é um discreto funcionário português da Embaixada de França em Lisboa que há poucos anos decidiu passar o resto da vida a ler. Foi uma decisão pensada, estruturada e, acima de tudo, que não admite distrações. “Tenho um plano de leitura preparado até aos 50 anos”, assegura, numa manhã fria de outono. Uns meses antes, com 43 anos, despachara a televisão que tinha em casa para se dedicar ainda mais à missão. “Gosto de ler enquanto ouço música, clássica de preferência”, acrescenta, com um minúsculo copo de café na mão numa moderna mercearia na zona das Janelas Verdes, a meio caminho em direção ao rio. “Leio sempre em francês.”

O início de outubro do ano passado apanhou-o em pleno ciclo de autores alemães: romancistas, poetas e filósofos. Lembra-se, no dia em que tudo aconteceu, de andar às voltas nas páginas de uma antologia da poetisa austríaca Ingeborg Bachmann. Era uma quarta-feira, ao final da tarde. O rádio estava ligado — sem grande surpresa, sintonizado na Antena 2 — e a sala enchia-se com as vozes de Luís Caetano e Ana Luísa Amaral, os responsáveis por um programa sobre poesia chamado “O Som que os Versos Fazem ao Abrir”. O jornalista e a poetisa, antiga professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, discutiam dois poemas do poeta português Cristovam Pavia.

Apesar do intenso ritmo de leitura acumulado e do outro tanto a que se propôs, Luís de Andrea admite não ser um “profundo conhecedor” da obra de Pavia. Ainda assim, como conta ao Expresso, a dado momento do programa, estranhou o que estava a ouvir no rádio. “Havia ali alguma coisa que não estava bem”, diz, embora não percebesse imediatamente o que era. Não demorou muito a chegar lá e no dia seguinte, pouco depois das três e meia da tarde, decidiu escrever um e-mail aos autores do programa. A mensagem acabava assim: “Sendo um grande apreciador do programa, gostaria que clarificassem esta questão, em meu nome e de todos os ouvintes, por uma questão de seriedade profissional e também de rigor intelectual do serviço público que prestam. Com os meus melhores cumprimentos”, e assinava.

Cristovam Pavia não é um poeta desconhecido, ainda que seja um poeta que a maior parte das pessoas não conhece. O seu nome aparece de vez em quando em artigos de jornal ou teses académicas, quase sempre entalado entre dois nomes mais famosos, numa sequência, mais ou menos longa, de vírgulas. “É injusto”, diz Ana Luísa Amaral. “O Pavia é um esquecido, mas ele é muito bom.” Luís Caetano reforça a ideia e, do outro lado da mesa do estúdio de gravação da rádio pública, na zona oriental de Lisboa, atira: “Um grande poeta. O Cristovam Pavia é um grande poeta.”

Cristovam Pavia morreu no dia 13 de outubro de 1968. Por vontade do próprio, a notícia da sua morte — por suicídio na linha de comboio em Belém — só foi tornada pública quase um mês depois

Cristovam Pavia nasceu Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, a 7 de outubro de 1933. Publicou apenas um livro em vida, chamado “35 Poemas”, mas era um escritor compulsivo. “Após a morte do meu irmão, fui reunindo tudo o que havia dele na casa dos meus pais”, conta João Bugalho, um engenheiro silvicultor reformado que agora é pintor. “Enchi uma arca que guardei no terceiro piso da casa de família em Castelo de Vide.” Diários, papéis soltos, cartas e postais. Muitos postais. “Ele às vezes comprava 10 postais para escrever à minha mãe. Quando enchia o espaço de um, passava ao seguinte. E copiava todas as cartas que escrevia. Guardava tudo numa pasta...”

As letras corriam-lhe no sangue. O pai de Cristovam Pavia e João Bugalho era Francisco Bugalho, poe­ta e uma das figuras do presencismo, o movimento artístico das décadas de 20 e 30 do século XX [Francisco Bugalho morreu em 1949, quando Cristovam tinha 16 anos]. Sentado na sala do seu apartamento, em Lisboa, João prepara-se para uma curta viagem no tempo. Segura nas mãos um livro do pai e endireita-se para ler um poema que fala do irmão. Chama-se “Dois Meninos”.

“Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas

As cinco pedrinhas são mundos na mão
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais

Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia

Meu menino ama os cães
Os gatos, as aves e os galos
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim
Enlevado, a olhá-los

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino...”

João Bugalho tem os olhos molhados. Chove na rua.

A escolha dos poemas que entram no programa “O Som que os Versos Fazem ao Abrir” é um rigoroso processo que pode começar com algo tão banal como uma recordação. “Não andamos à procura de qualquer coisa na internet”, garante Luís Caetano, uma das vozes da emissora que, todos os dias, chega a 50 mil pessoas. “A Antena 2 tem ouvintes muito conhecedores e exigentes”, assegura. O primeiro passo pode ser uma conversa entre os apresentadores, uma sugestão de qualquer um deles ou, como foi o caso com os poemas de Cristovam Pavia, a tal recordação.

“Creio que terá sido em 1990 que o Pedro Tamen, um grande poeta português de que gosto muito, me falou pela primeira vez de um poeta amigo dele, Cristovam Pavia. Por qualquer razão, lembrei-me dele e dessa conversa”, conta Ana Luísa Amaral, que tem milhares de livros em casa — ainda que ela própria se recuse a dizer quantos são ao certo. Nesse dia de agosto, ou setembro, eis algo que não recorda, tirou da prateleira um livro com uma capa desenhada a partir de uma pintura chamada “Na Encruzilhada do Outono e da Névoa”, de João Bugalho.

O livro, de 2010, chamava-se “Poesia” e reunia os escritos de Cristovam Pavia. Joana Morais Varela, a editora da obra, apresentava o levantamento mais exaustivo do trabalho de Pavia: estavam lá os poemas do livro “35 poemas”, mais 53 “poemas esparsos” e ainda 85 “poemas inéditos”. Dessas 173 obras, Ana Luísa Amaral deteve-se em duas, as que decidiu levar para o programa: “Ao meu cão”, um poema esparso, na página 115, e o inédito “Últimas disposições do H.M.E.”, na página 190. “O som que os versos fazem ao abrir” foi para o ar a 9 de outubro. Ana Luísa Amaral leu primeiro o “Últimas disposições do H.M.E.”.

“Para começar tirem-me este trapo da cara, que faz cócegas,
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.

Levem a coroa de latão de cima do meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.

Rezem as orações a um telefone antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.

O Bispo que fique em casa e se emborrache,
deem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.

Na minha mala há muito papel amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.
O mais que fica (umas cuecas, um isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.

Quanto à ressurreição da carne, entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!

Na banca de cabeceira há ainda alguns cigarros.”

Como sempre sucede, após a leitura segue-se um breve debate entre os autores do programa. Luís Caetano, sentado no estúdio 17, batizado Estúdio Maestro Pedro de Freitas Branco, lança a primeira pergunta. “Um homem com um sentimento trágico da vida, Ana Luísa Amaral. Sentimo-lo neste poema, onde há também uma certa ironia. Esta tensão, este desespero acaba por ser um pouco anulado pela ironia ou está aqui a ser gritado, quase?” Ana Luísa Amaral, nos estúdios do Porto, responde. “É um poema profundamente irónico, um poema em que dramatiza a sua própria morte. Fala da sua própria morte.”

Durante mais alguns minutos, com as ondas da rádio a ignorarem a distância geográfica, os dois discutem as semelhanças entre o poema de Pavia e poe­mas de W.H. Auden (“The Funeral Blues”, celebrizado no filme “Quatro Casamento e Um Funeral”) e de Mário de Sá-Carneiro (“Fim”). A dado momento, Ana Luísa Amaral, depois de considerar que os versos retiram “o lado solene da morte do próprio poeta”, esclarece que o H.M.E. do título é o Hospital Militar da Estrela. E fê-lo citando as notas finais do livro, tal como aparecem na página 254: “Presumivelmente datado de 1956, no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa. Manuscrito: no espólio do autor, em duas folhas soltas. Edita-se pela primeira vez.”

Vida e morte de um poeta

Cristovam Pavia morreu no dia 13 de outubro de 1968. Por vontade do próprio, a notícia da sua morte — por suicídio na linha de comboio em Belém — só foi tornada pública quase um mês depois, como escreveu o jornal “A Capital”, a 30 de novembro. “Poeta do Alentejo, e filho de poeta do Alentejo… Lírico e grave, jovem. Poeta da interiorização, da vida convertida em ‘viagem’ da alma, da profunda e dolorosa juventude”, lê-se no texto de Maria Aliete Galhoz, junto ao qual está publicado um dos poemas discutidos no programa de rádio da Antena 2: “Ao meu cão”.

Semanas mais tarde, no número triplo da revista “O Tempo e o Modo” (outubro, novembro e dezembro de 1968), dirigida por António Alçada Baptista e na qual Pavia colaborava, é publicado um “In Memoriam” com textos de Alberto Vaz da Silva, João Bénard da Costa, M.S. Lourenço, Pedro Tamen e Nuno Bragança. Quase 40 anos depois, em 2002, numa entrevista ao “Diário de Notícias”, Pedro Tamen recordava esses textos quando lhe perguntaram quem eram os amigos de que sentia mais falta. “Sem dúvida, por um lado, do Cristovam Pavia, e, por outro, do Nuno Bragança, que sendo as pessoas mais diferentes que se podem imaginar, e até de idades diferentes, tinham uma admiração mútua e uma amizade quase misteriosa porque era sem palavras (então no caso do Cristovam Pavia, era de certeza sem palavras porque ele tinha muitas dificuldades de elocução), uma amizade que era efetivamente indestrutível, e que está muito clara, aliás, num extraordinário texto que o Nuno Bragança escreveu para ‘O Tempo e o Modo’ quando morreu o Cristovam Pavia.”

Nessa mesma entrevista, Pedro Tamen lamentava que o trabalho de Pavia fosse tão pouco conhecido e confessava que, com a ajuda de José Bento e António Osório, tentara “ressuscitar” a poesia do amigo. “Acredito que ainda um dia se venha a valorizar de uma maneira adequada a poesia dele”, afirmou. A verdade é que Pavia permanece um quase desconhecido. Não há muita gente a falar dele, mas a lista dos poucos que o fizeram, em diversos artigos publicados na imprensa nos últimos anos, impressiona.

Nuno Júdice: “…a poesia de Cristovam Pavia é uma referência pouco cómoda…”; Fernando J.B. Martinho: “…houve um colega, mais velho, cujo convívio foi para mim tão ou mais importante que as melhores aulas…”; Pedro Mexia: “De facto, o mal-de-vivre e a nostalgia angustiada da infância atravessam boa parte destes textos, que são também orações de um católico inquieto e registos de uma instabilidade mental, da qual avultam as sensações de enfado, exaustão, astenia, asfixia, desespero…”

António Lobo Antunes, por seu lado, recorda um único verso. “Cristovam Pavia, poeta que estimo imenso e se abraçou a um comboio aos 35 anos, publicou um único livro de poemas antes desse abraço. O último verso do livro ficou para sempre na minha cabeça…”

Os dias na Alemanha

Mais ou menos na altura em que Ana Luísa Amaral andava pela casa à procura de um livro que já a encontrara, em setembro do ano passado, a editora D. Quixote, que editara a extensa recolha da poesia de Pavia organizada por Joana Morais Varela, preparava-se para lançar “Falar com Desconhecidos”, do jornalista americano Malcom Gladwell. Numa vertiginosa sequência de histórias acerca da incapacidade humana de perceber os outros, Gladwell reflete sobre a morte da poetisa americana Sylvia Plath, autora, entre outros, do poema “Lady Lazarus” — que tinha sido discutido no programa da Antena 2 em dezembro de 2018.

“Os poetas morrem novos”, escreve Gladwell. “Isto não é apenas um lugar comum. A expectativa de vida dos poetas, como grupo, fica atrás de dramaturgos, romancistas e escritores de não ficção por uma margem considerável. Têm taxas mais altas de ‘transtornos emocionais’ do que atores, músicos, compositores e romancistas. E de todas as categorias ocupacionais têm as taxas de suicídio de muito longe mais elevadas — chegando a ser cinco vezes mais elevadas do que as da população em geral. Há qualquer coisa na escrita de poesia que parece atrair os feridos ou abrir novas feridas…”

Seis meses após a morte de Pavia, num pequeno texto no jornal “A Capital”, Rogério Fernandes, amigo do liceu, entreabria uma pequena porta para as feridas abertas no mundo de Cristovam, esse “exílio vazio em que deperecera a sua vida interior”. “O mundo perdera consistência desde há muito para ele. Via-o, talvez, como quem olha uma radiografia desfocada, sem ângulos, contornos, ou significação. Se algum de nós, seus companheiros de liceu e literaturas, viveu a experiência do absurdo, foi a Cristovam Pavia que pertenceu a amargura dessa glória.”

João Bugalho ausentou-se, por momentos, da sala para voltar com alguns livros na mão. Traz também fotografias. Desculpa-se por não ter mais. “Estão na casa de Castelo de Vide e só conto ir mais perto do Natal.” Cristovam em criança, Cristovam com o cão, Cristovam em jovem, em adulto. Um poeta a preto e branco cuja vida foi tudo menos isso. “O meu irmão era muito bondoso, despojado de tudo. Era também uma pessoa muito autocrítica, quase doentiamente”, diz. “Mas tinha um coração muito grande.” Cristovam Pavia inscreveu-se em Direito, desistiu e optou pela Faculdade de Letras, onde terminou, sem apresentar a tese final, o curso de Filologia Germânica.

Os problemas de saúde eram vários. Levaram a um internamento no Hospital Militar da Estrela e, no início de década de 1960, empurraram Cristovam Pavia para uma temporada na Alemanha — onde nascera o seu avô paterno, de quem herdara o apelido Lahmeyer. O seu livro “35 Poemas” tinha sido publicado em 1959, na coleção Círculo de Poesia, dirigida por Pedro Tamen. “O consolo que a publicação do volume e a sua receção crítica lhe trazem não o impede, todavia, de se dar conta do agravamento da sua condição psíquica”, escreve Fernando J. B. Martinho na nota biográfica que abre o livro da D. Quixote, de 2010. “Procura, então, saída para os males que o afligem num programa de psicoterapia na Alemanha, em Heidelberg.”

Não obstante alguns regressos a Portugal, Pavia fica na Alemanha dois anos, entre agosto de 1960 e agosto de 1962. De vez em quando, e para grande preocupação da família, encontra trabalho na construção civil, como ajudante de pedreiro. Dachdecker. Escreve cartas aos amigos encantado com os novos companheiros de trabalho e, como revela J. B. Martinho, deslumbrado “pelas raparigas alemãs, réplicas do tipo físico de algumas das mulheres que, em Portugal, lhe motivaram paixões infelizes”.

A descoberta

O e-mail que o leitor compulsivo Luís de Andrea enviou à Antena 2 caiu na caixa de correio eletrónico do jornalista Luís Caetano pouco depois das 15h37 do dia 10 de outubro. Começava assim: “Na rubrica ‘O som que os versos fazem ao abrir’, no programa a ‘Ronda da Noite’, emissão de 9/10/2019, foi lido um poema de Cristovam Pavia que na verdade foi escrito pelo poeta Hans Magnus Enzensberger, e faz parte de um conjunto de poemas intitulado ‘Verteidigung der Wolfe’, publicado pela Suhrkamp Verlag Frankfurt Main, em 1957.”

De Andrea tinha lido o poema de Enzensberger durante as férias, numa edição da Gallimard. “Estava em casa, lembro-me. Faço os possíveis para ler sempre as edições publicadas pela Gallimard porque isso me dá acesso às melhores edições literárias que se podem encontrar no mundo, por serem muito sérias e muito rigorosas intelectualmente.” Luís de Andrea reconhece que o tom utilizado no primeiro e-mail foi “um pouco duro”.

Luís Caetano, por seu lado, admite que, ao início, ficou algo cético com a mensagem. Falou com Ana Luísa Amaral e, duas horas e uma série de pesquisas depois, estava sentado ao computador a responder a Luís de Andrea. “O seu e-mail é muito estimulante, apesar de não concordar com a dureza dos termos que coloca relativos à seriedade profissional ou rigor intelectual. Isso implicaria má fé ou desleixo, o que não é obviamente o caso. O que parece passar-se, graças a si, é uma descoberta relativa à obra de um autor.”

Na semana seguinte, depois de mais alguns e-mails trocados com o ouvinte, Luís Caetano e Ana Luísa Amaral voltam ao assunto no programa, reconhecem o erro e atribuem o poema a Hans Magnus Enzensberger, o improvável e nada hospitalar H.M.E. Pouco mais de um mês depois, num dia raro em que estão ambos no estúdio 17 a gravar, o assunto ainda é o mesmo. “Sabe que conheci o Enzensberger num festival literário na Colômbia? Em Medellín”, diz ao Expresso. Luís Caetano, enquanto ouve os pormenores, está entretido à procura de informação sobre o HME no computador. “O alemão está mais publicado do que eu pensava. É muito eclético”, revela. Enzensberger tem 90 anos e venceu o Prémio Príncipe das Astúrias em 2002, dois anos depois de ter publicado o seu último livro.

Mas é impossível escapar à pergunta: se o poema de Pavia não era de Pavia, mas de Enzensberger, como se explica a discussão e as comparações com Auden e Mário de Sá-Carneiro? Mas não é de todo impossível escapar à resposta. “A poesia faz-se de diálogos”, assegura Ana Luísa Amaral. “Mas a tradução do Pavia é excelente. Muito boa, mesmo…”

“Que legitimidade têm os vivos de trazer a público o que os mortos não fizeram? Esta dúvida acompanhou-me durante muitos anos”, diz João Bugalho, irmão de Pavia

João Bugalho, o irmão de Cristovam Pavia, perguntou-se muitas vezes a si próprio se teria feito a coisa certa. Já sabia do não-poema quando aceitou falar com o Expresso em sua casa. “Que legitimidade têm os vivos de trazer a público o que os mortos não fizeram? Sabe, esta dúvida acompanhou-me durante muitos anos”, confessa. Um ano antes, em outubro de 2018, passaram 50 anos da morte de Cristovam Pavia. “Ele tinha um segundo diário e deixou escrito que só deveria ser aberto 50 anos depois de ele morrer. Não sei porque decidiu assim. Penso que seria vontade dele ser lido. É um diário doloroso, duas décadas, e há ali muito trabalho para fazer.”

Não será uma investida inédita ao espólio de Pavia. A primeira tentativa foi feita 12 anos após a sua morte por três amigos do poeta. “Dois deles, da mesma geração, seus camaradas no liceu e na universidade; o terceiro, de uma meia geração anterior, seu companheiro habitual nas férias de Castelo de Vide”, como lê na introdução — assinada por Pedro Tamen, António Osório, José Bento e António Luís Moita, e por João Bugalho — do livro “Poesia”, publicado em 1982, pela Moraes Editora. Além dos 35 poemas, incluía também esparsos e inéditos e a certeza, segundo os amigos, de que havia ainda muito por fazer.

A edição de 2010 veio provar isso mesmo. Joana Morais Varela não tem memória específica das duas folhas soltas encontradas no espólio do autor e onde está o poema “Últimas Disposições do H.M.E.”. “Não me lembro, mesmo”, diz ao Expresso. João Bugalho recorda-se de Joana Morais Varela em Castelo de Vide, a “passar algumas noites enfiada na divisão onde estavam os papéis e ver o que se encontrava na arca”. “Ela fez uma recolha muito rigorosa e uma análise bastante detalhada dos manuscritos. Era um facto que o meu irmão tinha estado internado no Hospital Militar da Estrela e ela sabia. Devo dizer-lhe que qualquer pessoa, naquela circunstância, teria feito o mesmo.”

Na tal carta de que falava Pedro Tamen, escrita por Nuno Bragança a Cristovam Pavia no in memoriam de “O Tempo e o Modo”, está mais uma pista para o misterioso H.M.E.. Pavia não se limitava a escrever, a escrever muito. “Uma das últimas folhas de papel que recebi de ti foi cópia de um poema sobre os mortos, do José Régio. Todos os teus amigos receberam folhas dessas: quando não podias falar, escrevias cartas. Se em uma folha de papel furava as grades, copiavas literatura alheia. Assim davas sinal da tua vida-morte, ou morte-vida”, escreveu Bragança.

A “Carta aberta ao menino vivo, ele próprio” é um testemunho da amizade entre Bragança e Pavia. “Se eu te quisesse resumir, diria apenas: ele tinha coisas excessivas a dizer. Recordo o teu vaguear através de Lisboa opressa-opressora como um símbolo de etapa em cidade e geração”.

Nessa revista, João Benárd da Costa lamenta a perda do amigo. “Sei agora que me vai custar viver sem eles [os estranhos encontros entre ambos]. Sem receber postais com poemas (dele ou doutros, que copia­va) sem ouvir dizer ‘ich bin circunflex’. Muitas das palavras do Cristovam são agora nossas, muito do que um certo grupo de pessoas foi e é pelo Cristovam passa. Quando nos encontramos, falamos do Cristovam. Das histórias do Cristovam”.

No mesmo dia da morte de Cristovam Pavia morreu no Brasil aquele que era um dos poetas que mais admirava, Manuel Bandeira, que em 1930 escreveu “O último poema”.

“Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”

É no último verso do último poema do único livro de Cristovam Pavia que está a frase que António Lobo Antunes não consegue tirar da cabeça.

““Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos,
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.”

E a esse poema derradeiro Cristovam Pavia chamou “Poema”.