Fraco Consolo

Fraco Consolo

PEDRO
MEXIA

V.P.V.

Desde que leio jornais nunca li ninguém que me entusiasmasse tanto, por motivos que iam muito além de concordar ou discordar

V

asco Pulido Valente escreveu nas revistas “O Tempo e o Modo” e “Almanaque”; e escreveu, lembro-me bem, em “O Independente” e na “Kapa”. Dificilmente conseguiria nomear outros títulos da imprensa portuguesa de que goste mais. “O Tempo e o Modo” era uma revista da católicos progressistas que promoveu a cultura da oposição não-comunista; o “Almanaque” e a “Kapa” foram desaforos altaneiros concebidos por escritores e designers gráficos de génio; e “O Independente” marcou a emergência de uma direita que deixava enfim de ser autoritária, filisteia e reaccionária.

Comecei a ler V.P.V. em “O Independente”. Primeiro estranhei, depois entranhou-se. Anglófilo assumido, ele apresentava-se como um “contrarian” à inglesa, à Auberon Waugh, digamos. Esse “ser do contra” ou estar “às avessas” (título de uma colectânea de crónicas de 1990) podia parecer um exagero, mas teve o efeito muitíssimo benéfico de combater a tendência para o consenso da sociedade portuguesa, onde todos se conhecem. Às vezes, o que V.P.V. escrevia deixava-me perplexo, era um homem com formação de esquerda que tinha virado à direita mas não suportava boa parte das mitologias da direita, e que nunca evitava um sarcasmo, um qualificativo, um arraso. É preciso escrever muito bem para conseguir escrever assim, caso contrário o estilo transforma-se no automatismo de dizer o inverso do que diz toda a gente, à custa de generalizações, ignorâncias, maldades, injustiças; mas ele escrevia muito bem.

Vasco Pulido Valente passou a vida a zurzir a pátria, mas também a tentar percebê-la, como se valesse a pena <span class="creditofoto">tiago miranda</span>

Vasco Pulido Valente passou a vida a zurzir a pátria, mas também a tentar percebê-la, como se valesse a pena tiago miranda

Interessava-me em V.P.V. a liberdade que, de tão forte, tão idiossincrática, nunca “representava” exactamente nenhum sector ideológico, mas que era princípio de individuação e princípio estilístico. Colunista constante da democracia portuguesa, V.P.V. fazia-se notar pelas análises certeiras (mesmo quando equivocadas), pelos humores e agastamentos, mas sobretudo pela prosa, conquistada com esforço e leituras, trabalhada até à vírgula. As suas qualidades são conhecidas: a concisão, a mordacidade, a clareza, a elegância, a perspicácia, a síntese, a limpidez, a inteligência, a fórmula, a vivacidade, o brilho. Desde que leio jornais nunca li ninguém que me entusiasmasse tanto, por motivos que iam muito além de concordar ou discordar (concordava em geral quando ele escrevia sobre política, sobre os portugueses, sobre a espécie humana, discordava de muito do que escreveu sobre religião ou literatura, mas que importa?).

O tão mencionado pessimismo de V.P.V. nunca me incomodou, nem a misantropia; o cinismo às vezes, mas era um cinismo magoado, questão que ele tinha consigo mesmo e com Portugal, “o país das maravilhas”. Mais amargo do que Eça, patrono da linhagem a que pertencia, passou a vida a zurzir a pátria, mas também a tentar percebê-la, como se valesse a pena. Descobri-o como historiador na biblioteca do meu pai, que me recomendou “O Poder e o Povo”, obra “revisionista” sobre a República que fez a desmontagem do progressismo não-democrático dos democráticos. V.P.V. parecia acreditar que Portugal, ontem como hoje, era “o século XIX através dos tempos”, para citar um título célebre; os seus ensaios de história política e os seus estudos biográficos nunca se afastam de um conjunto imutável e inevitável de bloqueios, mediocridades e maus hábitos. E quando havia grandeza, era uma grandeza trágica, como nos livros que dedicou a Paiva Couceiro ou a Marcello Caetano.

Entrevistei Vasco Pulido Valente uma vez, quando vivia na Quinta da Luz, o apartamento mais arrumado em que já estive, sem um livro fora do sítio, um objecto desalinhado, um jornal mal dobrado. Percebi que havia muito método no seu destempero, assim como fui percebendo, por amigos comuns, que a aparente arrogância não era de todo autoconvencimento, que ele tinha a persistente sensação de ter ficado aquém, ou não fosse um português. E no entanto não é essa a nossa sensação agora, porque temos duas dezenas de livros que nos acompanham, e a gratidão que lhe devemos, mesmo que já não haja, como houve sempre, o jornal que trazemos do quiosque com a sua verve lúcida e refractária.

Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia