
Sérgio Sousa Pinto
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Sérgio Sousa Pinto
A apoteose do bufo
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Lembra o meu amigo António Campos, citando Torga, que “em Portugal as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coação, ou por devoção”. São exatamente essas as condicionantes em que medra o bufo, acrescidas de uma quarta, não menos cintilante — o culto feroz do interesse próprio.
O bufo teve camarote próprio na arca de Noé, aparece em grande destaque no Novo Testamento e acompanha-nos desde as idades primitivas. Sempre houve quem procurasse extrair ganho — pessoal ou coletivo — da existência do bufo, e nunca faltou quem descortinasse justificações morais, religiosas, de ordem pública ou de razão de Estado para lhe proporcionar justo prémio.
O bufo, sendo mais antigo que o Estado policial, é condição necessária deste último. O bufo profissional recebe estipêndio, como acontecia até 1974, mas a maioria dos bufos exerce o seu mister graciosamente. O bufo anónimo, por exemplo, age sem outro fito que não seja a mera vingança, instinto atávico que ornamenta cobardes e heróis, embora goste de elaborar que é um catão dilacerado, servidor do direito e da justiça, escravo do imperativo categórico.
Num país de pequenas turpitudes, pobre e viciado na esmola e no abuso, em que a miséria material e a miséria moral andam de braço dado, como o nosso, o bufo viceja e prolifera vigorosamente, nisto aproximando-se dos roedores, embora em ambiente democrático tenha experimentado dificuldades sem paralelo no passado, às quais se procura adaptar, resgatando-se da noite negra que sobre ele se abateu a 25 de Abril de 1974.
A sereníssima república de Veneza — em tantos aspetos precursora do moderno Estado policial — prezava o bufo e generalizou um sistema de “caixas de correio” para denúncias anónimas que permitia à polícia saber tudo e o seu contrário sobre um vasto número de cidadãos que se enganavam sobre os seus amigos. Muito a propósito disto, o meu amigo António Campos, em tempos, falou-me do choque e da tristeza que para ele foi conhecer, a seguir ao 25 de Abril, a lista dos informadores da PIDE em Coimbra.
Em 1944, a libertação da França ofereceu uma verdadeira âge d’or ao bufo francês durante a épuration. Na confusão da libertação, milhares de culpados e inocentes foram executados por alegado colaboracionismo, denunciados por vizinhos, parentes, colegas, devedores, invejosos, homúnculos que não distinguimos na multidão, ou por maquisards comunistas, como aconteceu no Institut Dentaire, de sinistra memória, em Paris.
Nós, herdeiros seculares do Santo Ofício, descendentes de bufos, vítimas e carrascos, tínhamos obrigação de não esquecer o saldo histórico da colaboração entre o poder e o delator, ou, já agora, entre as magistraturas e o salazarismo, instituído sobre uma rede nacional de bufos nas escolas, no emprego, nos cafés e nas ruas.
O bufo, por vocação, coação ou interesse, é sempre um rato moral que aproveita qualquer corda que lhe seja estendida para se pôr a salvo. Quando a autoridade pública se propõe negociar a justiça e fazer fé no bufo, um desesperado por definição capaz de tudo, avilta-se a ela e avilta-nos a nós, que a instituímos para nos proteger de inúmeros males, entre os quais a composição de interesses entre o Estado e o bufo.