ENTREVISTA
Elísio Estanque Sociólogo
“A requisição civil não pode tornar-se um padrão”
© Expresso Impresa Publishing S.A.
Texto Hugo Franco Fotos Rui Duarte Silva
Especialista no mundo laboral e dos sindicatos diz que o Governo “fez bem” em decretar a requisição civil mas avisa que isso não pode ser a regra. Velhos sindicatos têm de se adaptar para sobreviver e os novos têm de apostar na transparência.
Os motoristas estão a ser diabolizados como já o foram enfermeiros e professores?
Qualquer cidadão minimamente atento reconhece que os motoristas, e não apenas os dos transportes de matérias perigosas, têm um tipo de trabalho exigente, duro, que desgasta e causa stresse. E acho que há também a noção de que este trabalho é muito mais do que aquilo que deveria ser. A indignação será maior relativamente à forma como a mensagem tem vindo a ser transmitida, como as posições se têm radicalizado. E os protagonistas que têm vindo dar a cara também não têm conseguido conquistar a simpatia, a confiança e a compreensão da generalidade dos portugueses.
Esta vai ser a paralisação que vai obrigar os partidos a reverem a lei da greve?
Mais do que uma revisão da lei da greve, acho que são as estruturas do movimento sindical que precisam de repensar as formas de organização e da defesa dos direitos dos trabalhadores em sectores muito específicos onde este tipo de fenómenos, mais ou menos desregulados, mais ou menos suscetíveis de alguma manipulação, causam um impacto muito desproporcional relativo àquilo que é o volume da força de trabalho envolvida. Talvez as próprias lideranças sindicais não estejam suficientemente despertas.
O que deve ser revisto na lei da greve, que é dos anos 70 e baseada num contexto muito diferente do de hoje?
Há que atender, sobretudo, às tendências de segmentação do mercado de trabalho, às formas diferentes que hoje prevalecem de vínculos e de contratação e de subcontratação. Há toda uma série de intermediações entre o trabalhador e a entidade final. E essas intermediações significam modos mais ou menos habilidosos de os agentes económicos e as entidades patronais escaparem à sua responsabilidade social e também a fuga aos impostos.
O Governo abriu um precedente grave ao decretar a requisição civil?
Acho que nesta greve, o Governo, ao contrário do que tinha acontecido na de abril, preparou-se melhor e respondeu de uma forma mais cautelosa. Percebeu que ao mostrar mais autoridade do Estado, isso lhe traria dividendos políticos. A requisição civil tornou-se necessária.
Significa que no futuro greves de sectores sensíveis estarão condenadas à partida pela requisição civil. Isso não coloca em causa direitos constitucionais?
Isto não se pode tornar um padrão, não se pode correr o risco de vir a condicionar as liberdades, o direito à greve e o direito à reivindicação e contestação social. As greves existem, causam complicações, têm impactos e é por isso que por vezes conseguem alcançar os seus objetivos.
Os sindicatos mais tradicionais devem adaptar-se e atualizarem-se para responder a novas situações
Estas greves por tempo indeterminado ou com crowdfunding são batota?
Tudo isso é formalmente reconhecido como legítimo e legal. Mas acho que todos devemos estar atentos a questões que têm que ver com a função social destas estruturas e destas dinâmicas grevistas, de bloqueios, de movimentos inorgânicos e de ações que podem facilmente resvalar para uma lógica que beneficia o populismo.
Os sindicatos independentes são o futuro do sindicalismo ou são uma maneira de os partidos instrumentalizarem mais facilmente sectores de atividade importantes?
O facto de existirem estas novas modalidades de ação coletiva deve levar os sindicatos mais tradicionais a repensarem os seus próprios modos de funcionamento e a atualizarem-se para responder a novas situações laborais, sectores da força de trabalho que pensam de forma diferente, que foram socializados num contexto diferente marcado por uma despolitização geral, por um individualismo crescente e por uma sociedade de consumo. Os protagonistas são juristas e não é por acaso. Dantes, o que contava era força coletiva das bases e não a argumentação legalista e formal.
Os velhos sindicatos ligados à UGT e à CGTP estão condenados à extinção?
As condições gerais do mercado de trabalho não os favorecem, em contraste com o que acontecia há 20 ou 30 anos. Hoje não protegem como protegiam os direitos dos trabalhadores. A própria legislação laboral está sob pressão da economia global, e os sindicatos sofrem com isso. No entanto, também não descarto a própria responsabilidade interna do campo sindical que nem sempre faz o que é necessário para uma maior atualização.
Esta greve pode marcar um antes e um depois na luta sindical?
É curioso: ouve-se a rádio ou a televisão, leem-se as noticias, e há uma sucessão de situações aparatosas, mas depois vou para a rua e ponho gasóleo sem problemas. Estava tudo pacífico, pelo menos na região centro. E sobretudo há aqui uma situação que não aconteceu... Se a isto se juntasse uma série de incêndios em escalada num único dia e isto impedisse o socorro necessário, esta greve ficaria conhecida por razões muito mais preocupantes.
Elísio Estanque, sociólogo