Teatro & Dança

Quem tem o poder

Pedro Almendra e Mafalda Lencastre em “Oleanna” <span class="creditofoto">foto João Tuna</span>

Pedro Almendra e Mafalda Lencastre em “Oleanna” foto João Tuna

Ricardo Pais, num projeto totalmente financiado por si, encenou exemplarmente um texto difícil, inteligente e brilhante

TEXTO JOÃO CARNEIRO

Oleanna”, estreada nos Estados Unidos em 1992, passa-se no gabinete de um professor universitário. No início, John, o professor, fala ao telefone. Carol, uma aluna, está à espera. Está ali porque tem dificuldades; não entende a matéria da cadeira que John leciona, leu o livro dele e ficou confusa, quer saber que nota vai ter no trabalho, precisa da cadeira para passar, para ter o curso, é por isso que foi para a universidade. John tenta desdramatizar as questões. O seu discurso é, em grande medida, típico do intelectual liberal que não leva a sério, ou parece não o fazer, o ensino universitário, que minimiza os problemas da aluna com um misto de paternalismo e de orgulho (Carol: “Qual é a sua profissão?; John: “Provocá-la”); que pensa poder quebrar as regras da vida académica. Que vê a relação entre professor e aluna como um conjunto de “constrangimentos artificiais”; que diz à aluna (que não acredita nele) que toda a gente tem problemas, ele também, problemas com a mulher, com o trabalho, problemas que talvez sejam parecidos com os de Carol. Abraça Carol para a consolar quando ela parece desesperar de tudo, diz-lhe que está tudo bem. A conversa entre os dois está sempre a ser interrompida, quer quando John interrompe Carol, quer quando Carol interrompe John, quer quando o telefone toca e John fala com a mulher e com o advogado, sobre a casa que vai comprar, assim que obtiver a sua nomeação definitiva.

Ao longo da peça, os discursos mudam, nomeadamente quanto ao poder que eles indiciam. Carol vai adquirindo uma segurança que acompanha a progressiva falta de segurança de John; passa a falar em nome de um grupo, e não em nome dela; fala do relatório que apresentou ao conselho científico — “Disse-me que tinha problemas com a mulher, e que queria ultrapassar as fronteiras artificiais entre aluna e professor. Tentou abraçar-me…” Mais tarde vai referir o tribunal, e a queixa-crime — “Tentou violar-me. Eu estava a tentar sair do seu gabinete e você agarrou-me. Encostou o seu corpo ao meu.”

Na pequena sala do Estúdio Latino — 120 lugares — Ricardo Pais situou a ação num espaço em que existem apenas os ‘painéis’ amarelos de Filipe Cortez — pedaços de velhas paredes transportadas para o universo da instalação dramatúrgica — as luzes de Nuno Meira, uma secretária, uma cadeira e dois bancos; e um telefone. A sua encenação consistiu em conduzir os atores na criação de duas personagens cujas ações são determinadas pelas palavras, até que a verbalidade deixa de ser possível; por outras palavras, até que a violência que estrutura o discurso falado seja exibida, de maneira tão intensa como económica, no final da peça. Pedro Almendra passa de professor verborreico, autocondescendente e confiante, a um homem perplexo, receoso, corajoso, furioso, tudo em mudanças que por vezes dependem de uma frase, uma palavra. Perante ele, Mafalda Lencastre passa de uma aluna insegura e desconfiada a uma mulher aparentemente segura, e realmente agressiva, inflexível, vingativa — os adjetivos não são suficientes para descrever todas as cambiantes que as personagens vão mostrando, utilizando, criando, ao longo do espetáculo.

O qual é exemplar. Não apenas pelas condições de produção e realização totalmente suportadas pelo encenador (cf. entrevista com Ricardo Pais na Revista nº 2416 de 16 de fevereiro), e que são o espelho da política cultural do Governo; mas também, e principalmente, porque já ninguém sabe trabalhar assim, ninguém conhece a profissão de encenador, o trabalho e a direção de atores, tudo aquilo que é do campo técnico-artístico e que faz um espetáculo de teatro, como Ricardo Pais; ninguém saberia fazer “Oleanna” desta maneira. A tradução, excelente, é de Pedro Mexia.