Um homem
e a sua
sombra

MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images

Jean Wyllys é o primeiro exilado político do governo Bolsonaro. Diz que fugiu para não morrer: assassinado ou de tristeza. Vem a Portugal na próxima semana e já foi ameaçado pelo PNR. O Expresso encontrou-o em Berlim

texto Christiana Martins enviada a Berlim

Pedófilo, viado escroto, cu ambulante, ladrão, queima rosca. Durante anos foi assim que Jair Bolsonaro o tratou. Sem pudor, à frente dos outros parlamentares, os insultos foram gravados pelas câmaras das televisões. O atual Presidente do Brasil, que chegou a afirmar que preferia ter um filho morto a ter um descendente homossexual, nunca suportou Jean Wyllys, o primeiro deputado federal brasileiro assumidamente gay. Até que, em 2016, no dia em que os deputados federais votaram o impeachment de Dilma Rousseff, o copo transbordou. Wyllys fartou-se do assédio moral e cuspiu certeiro na cara de Bolsonaro, quando este, aos microfones, elogiou Carlos Brilhante Ustra, coronel conhecido pela prática da tortura em quem ousava opor-se à ditadura militar. A imagem ultrapassou fronteiras, tatuou a testa dos dois oponentes, marcando quem cuspiu e quem foi cuspido. E o amargo daquela relação não foi engolido por nenhum dos dois.

Dois anos depois da cuspidela, Jean Wyllys vive na Alemanha. Chegar a ele não é fácil. Está há cerca de um mês na Europa, primeiro em Espanha, agora em Berlim, onde vive com uma amiga. Recebe o Expresso num apartamento soalheiro, cercado por varandas, numa rua discreta de um bairro multiétnico. Ao lado do edifício cinzento, o que parece um parque arborizado mais não é do que um cemitério, com lápides disfarçadas entre a relva e as folhas derrubadas pelo inverno. Ele diz que lhe dá paz.

Domingo à tarde, nas ruas veem-se famílias, pais com crianças pela mão. Trinta minutos antes da hora marcada para a entrevista ainda não é possível estabelecer contacto direto com Wyllys. A única forma de o fazer é através de um assessor que também deixou o Brasil e vive agora em Barcelona. Uma troca de mensagens informa que, afinal, é possível subir mais cedo até ao apartamento. Na campainha, um apelido banal, nada brasileiro. Os dois portões abrem-se sem que seja preciso especificar quem toca. No último andar, quando a porta se abre, está um homem pequenino, pele de um delicado moreno claro, os célebres caracóis cortados, como se uma brisa fria do Hemisfério Norte os tivesse arrancado. O homem sorri, educado, mas está triste.

“Quando Marielle foi executada, tudo mudou e alguma coisa se quebrou dentro de mim.” Jean sentiu o arrepio de ser um alvo concreto

O sotaque baiano de Jean Wyllys é leve, adocica a voz já de si açucarada dos brasileiros. Com uma camisola cinzenta e umas calças pretas, o político parece um homem mais velho do que os 44 anos que tem. Brilho, apenas o que emana, suave, das pulseiras de candomblé cor de âmbar, como se a fé não precisasse de se anunciar. Apenas estar lá. Naquele domingo berlinense, cai a tarde de forma lenta, e, como na música de Elis Regina, o homem sozinho parece uma sombra de Charlot. Lá fora, nem a Lua gorda é capaz de iluminar as sombras que Jean traz nele.

A conversa começa tímida, como se houvesse um medo mútuo de tocar em feridas expostas, e arranca pela questão da gentrificação de bairros típicos, como aquele berlinense onde habita, onde as populações já começam a ser empurradas para longe. Também no Brasil, no Bairro 2 de Julho, em Salvador, onde Jean vivia, as meretrizes e os travestis estão a ser expulsos pela especulação imobiliária. Mas, afinal, o diálogo faz todo o sentido: como é viver nas margens, não ter lugar, ser-se empurrado para fora do ninho? “No momento, sou uma pessoa desterritorializada, alguém que precisou de se autoexilar, porque os locais que eu frequentava tornaram-se perigosos para mim, devido às ameaças de morte que estava a sofrer no meu país.” Pronto, vamos lá falar do que interessa: Jean Wyllys, o primeiro e mais mediático exilado político do governo Bolsonaro, vai contar a história da sua fuga.

<p class="legenda"><span class="arranque"><span style="color:#009730">ESPERA</span></span> Enquanto não pode voltar para o Brasil, Jean Wyllys dá conferências, como na semana passada em Berlim ou na próxima em Lisboa <span class="creditofoto">Fotografia joana beleza</span></p>

ESPERA Enquanto não pode voltar para o Brasil, Jean Wyllys dá conferências, como na semana passada em Berlim ou na próxima em Lisboa Fotografia joana beleza

Sem nome e sem telefone, “sem lenço nem documento”, Jean vai explicar como tenta construir um novo presente e futuro europeus. Mas, entretanto, chora. E chora muito. Sabe que “é preciso estar atento e forte”, mas contraria a música e também reconhece que tem “muito tempo para temer a morte”. As ameaças contra ele começaram em 2011. Mas o que já era difícil conseguiu ficar pior, consegue sempre ser assim. Quatro dias depois de ter feito anos, a 14 de março do ano passado, e de ter comemorado com a vereadora do Rio de Janeiro que lhe seguira as pisadas políticas ao abraçar causas como a defesa das mulheres, negros e minorias, Jean recebeu a notícia de que a amiga tinha sido assassinada.

Cristal partido

“Quando Marielle foi executada, tudo mudou e alguma coisa se quebrou dentro de mim.” E Jean, que era ameaçado já há sete anos, finalmente sentiu o arrepio de ser um alvo concreto — “Sempre achei que as ameaças tinham apenas o intuito de me calar e intimidar.” Só que não. Dois homens foram presos, e com eles foram encontrados planos para fazer explodir uma bomba na Faculdade de Brasília, onde Jean lecionava, e mapas com os desenhos da localização das câmaras de vigilância e dos pontos cegos onde poderia ser atacado sem deixar provas. Também foram descobertas imagens da fachada da casa da mãe de Jean, na Bahia, as matrículas dos automóveis dos irmãos e os seus e-mails pessoais. Tudo ganhou uma realidade até ali desconhecida.

O planeamento da fuga começou a ser desenhado em dezembro. Wyllys aproveitou o recesso parlamentar e foi a Alagoinhas, a cidade natal, de onde saiu aos 14 anos, na periferia de Salvador. Reuniu a mãe e os irmãos para os avisar de que estava a partir, sem data de regresso. Outra vez ecoa no apartamento berlinense a música de Elis: “Cuidado, meu bem, há perigo na esquina!”

Como responde às ameaças do PNR? “Com um ramo de cravos e um cheirinho de alecrim.” E a promessa de que vai morar em Portugal

Gay, nordestino, nascido na extrema pobreza, imigrante na cidade grande brasileira, mestiço, como o próprio se define, Jean percebeu finalmente o que o poderia esperar em qualquer canto. Nem foi preciso pedir ajuda. Depois do assassínio de Marielle Franco, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, por orientação da força de segurança federal, destacou uma escolta da Polícia Legislativa para acompanhar Wyllys: um carro blindado e quatro homens armados com a missão de o levar de casa para o trabalho e do trabalho para casa.

E a vida? “Passei a viver uma espécie de cárcere privado.” Parou tudo. Ele estancou, mas a violência não. “Os policiais só intervinham se houvesse violência física, fui empurrado duas vezes na rua e, se eles não estivessem lá, teria sido espancado; mas contra os insultos não faziam nada. Não havia lugar em que não fosse xingado, em que não fosse insultado, acusado de algo que não fiz”, conta. Os mais agressivos não eram os jovens, diz, “eram as senhoras, homens, adultos, alguns adolescentes”. O ar no Rio de Janeiro e em Brasília ganhou cheiro a chumbo — “Os ambientes tornaram-se terríveis, a minha vida começou a ficar restrita.”

E o método instalou-se no cenário político brasileiro: “Os insultos eram filmados, as imagens partilhadas nas redes sociais para humilhar as pessoas, e eu fui o laboratório de uma estratégia que veio a crescer e acabou por eleger esse sujeito.” Há oito anos diziam que Jean Wyllys era o pai do kit gay, uma espécie de pacote preconcebido para ser aplicado no ensino público e que iria converter as crianças em homossexuais. Ou que seriam distribuí­das, pelos candidatos da esquerda, “mamadeiras de piroca”, em que a tetina seria substituída por um bico em forma de pénis. “E as pessoas acreditaram nisso, foi como uma histeria coletiva, e eu fui a vítima preferencial desse modus operandi, como se a homossexualidade pudesse ser fruto de proselitismo”, destrava Wyllys, como se tivesse aquilo fechado há muito tempo.

Mas o cerco não cessava de apertar, roubar-lhe ar. Ainda durante a última campanha eleitoral, quando Jean Wyllys trabalhava para ser eleito pelo terceiro mandato consecutivo como deputado federal, quando ia a caminho de Campo Grande, bairro na zona oeste do Rio de Janeiro dominado pelo poder paralelo das milícias, a sua escolta recebeu o aviso de que tinha de voltar para trás. “A polícia carioca avisou os meus seguranças de que não deveria entrar naquela zona, porque seria perigoso. Foi um período muito difícil, não pude fazer campanha, estar nas ruas com os eleitores.”

“Fui quebrando por dentro, deprimindo. A minha mãe foi insultada no supermercado em Alagoinhas, disseram-lhe que eu defendia ideias pedófilas; eu já não visitava os amigos; começaram a me converter num pária no meu país. O Brasil não tinha mais espaço para mim, e comecei a dizer para mim mesmo que não poderia continuar a viver ali.” Outro golpe foi quando a voz do ainda candidato Jair Bolsonaro, a uma semana das eleições presidenciais, foi transmitida em ‘telões’, na Avenida Paulista, a dizer que a oposição, os “marginais vermelhos seriam banidos da pátria”. Chegara a hora de partir.

A Comissão dos Direitos Humanos, um órgão da Ordem dos Estados Americanos, questionou o governo brasileiro sobre o que estava a ser feito para defender Jean Wyllys. O próprio pediu uma medida cautelar, e cinco inquéritos foram abertos, mas as investigações não levaram a lado nenhum. No país campeão mundial de assassínios de pessoas da comunidade LGBT, Jean Wyllys sentiu-se ainda mais sozinho.

Eleito para um terceiro mandato, Jean Wyllys deixou para trás dois cargos, o de deputado federal no Congresso brasileiro e o de parlamentar do Mercosul. Para alguém que saíra da obscura Alagoinhas, o baiano tinha andado muito, mas ainda teria muita estrada para percorrer. Teria e tem. As férias já estavam programadas, não levantaram suspeitas. Com uma mala com roupa para o inverno europeu, um tablet, o telemóvel e quatro livros, rumou a Espanha. Não tinha visto, destino certo, não sabia como se iria sustentar.

Mal chegou a Espanha, começaram a surgir notícias do envolvimento da família Bolsonaro com as milícias cariocas, grupos paramilitares que exigem contrapartidas das populações em troca de um mínimo de segurança nas zonas dominadas por estas estruturas de poder paralelo. “Ficou claro que havia uma relação intrínseca entre a nova Presidência e as máfias, as organizações criminosas que dominam o estado do Rio de Janeiro, pelo qual fui eleito”, explica Wyllys. As férias converteram-se em destino, com permanência sem tempo definido. Telefonou para o partido pelo qual se elegera, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), o mesmo a que pertencera Marielle Franco, e tentaram convencê-lo a regressar, mas não havia volta a dar: “Só tenho essa vida, e é essa que tenho de assegurar.”

A notícia caiu como uma bomba. Uma fotografia do punho fechado e erguido de Wyllys em frente a uma manifestação, acompanhada apenas da frase “Obrigado. Até um novo dia” nas redes sociais e um artigo na “Folha de São Paulo” não deixam quaisquer dúvidas: Jean partira. Surgem referências à decisão em vários jornais internacionais, “Le Monde”, “El País”, “The New York Times”, “The Washington Post”, só para citar alguns. No Brasil, a reação não se faz esperar, e começam a crescer os rumores de que o deputado federal tinha partido porque estava a ser acusado de ter participado no atentado que, a meio da campanha eleitoral, vitimou Jair Bolsonaro. Wyllys seria namorado do atacante ou teria financiado a ação. Confrontado pelo Expresso, reage a fogo: “Além de responder juridicamente, já foi feito um rastreio para descobrir de onde partiram essas afirmações, e posso dizer que há uma relação direta entre as ameaças a mim e a rede de mentiras que levou o atual Presidente a ser eleito. Ou seja, provavelmente, as ameaças que me foram feitas vieram de pessoas ligadas ao Presidente da República.”

O rosto do Brasil

Como puderam 48 milhões de eleitores votar em Jair Bolsonaro? “Esse Brasil sempre existiu, um país que sempre esteve lá mas que não queria ver-se a si mesmo e que não foi destruído pelos breves governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. Esse Brasil que agora encontrou o seu porta-voz. Um país que a comunidade internacional nunca viu, porque comprou a ideia do homem cordial de um país alegre, que nós também somos, mas que é uma herança dos povos originários e dos pretos que chegaram para ser escravizados. O Carnaval é uma resistência.”

Contada a história da fuga, Wyllys ainda não tem respostas para o futuro. Nem para o presente. “Vivo da solidariedade dos amigos, de uma rede que se formou. Tenho convites para ser professor visitante em universidades nos Estados Unidos, quero voltar a estudar, fazer o doutoramento”, afirma, explicando, contudo, que ainda precisa de “um período de recolhimento” para se reestruturar.

Há uma semana fez a sua primeira aparição pública do ano, no visionamento do filme “Marighella”, de Wagner Moura, no Festival de Cinema de Berlim. É a história real de Carlos, um dos contestatários que foi morto durante a ditadura militar brasileira. A cerimónia foi coroada pelo beijo na boca que Wyllys deu ao realizador, com as imagens a serem intensamente reproduzidas pelos media brasileiros. Dois dias mais tarde, Jean Wyllys daria uma conferência na Fundação Rosa Luxemburgo, na mesma cidade que há muitos anos é refúgio dos intelectuais brasileiros de esquerda.

Daqui a quatro dias, Jean chega a Portugal para falar em Coimbra e em Lisboa dos temas que o tatuaram: as fake news e a experiência do exílio. Vai encontrar-se com os amigos José Soeiro e as irmãs Mariana e Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda. Vem a convite do Centro de Estudos Sociais, liderado pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos, e de Pilar del Rio, presidente da Fundação Saramago. E também deverá encontrar os apoiantes do PNR (Partido Nacional Renovador), de extrema-direita, que já avisou Jean Wyllys que não é bem-vindo em Portugal. Como responde às ameaças? “Com um ramo de cravos e um cheirinho de alecrim.” E com a promessa de que vai morar em Portugal, afirmação que surge entre os primeiros risos abertos que dá durante a conversa berlinense.

 <p class="legenda"><span class="arranque"><span style="color:#009730">Histórico</span></span> A 17 de abril de 2016, Jean Wyllys cuspiu em Jair Bolsonaro <span class="creditofoto">fotografia d.r.</span></p>

Histórico A 17 de abril de 2016, Jean Wyllys cuspiu em Jair Bolsonaro fotografia d.r.

De longe, o político que, garoto, um de seis filhos, começou por vender algodão doce nas ruas de Alagoinhas, descobriu a homossexualidade aos 6 anos, conquistou a educação no colo da Teologia da Libertação, estudou com bolsa, recebeu 50 milhões de votos numa edição do “Big Brother Brasil” e que, com o dinheiro, comprou uma casa para a família e outra para uma irmã e usou o resto do prémio para se eleger deputado, com uma votação baixinha, acena com esperança de quem soube desobedecer à mãe, D. Inalva — “Melhor não alimentar sonhos para não se frustrar.” “Vou fazer tudo o que for possível para denunciar a violência política que atinge o povo brasileiro”, promete. E as armas que quer usar serão as mesmas que enfrentou, as novas tecnologias.

Jean acredita que o Brasil “ainda não bateu no fundo do poço” e receia que, “quando a classe média que elegeu esse energúmeno pelos argumentos misóginos, homofóbicos e racistas perceber que perdeu direitos trabalhistas e garantias sociais”, será demasiado tarde para reverter a situação. De longe, vai saboreando as mensagens que lhe chegam, como a música que Daniela Mercury lhe dedicou, em parceria com Caetano Veloso, ‘Proibido o Carnaval’, com uma carinhosa mensagem (“estamos te esperando”).

Luz no fim do túnel

Assumidamente místico, Wyllys guarda para o fim da conversa o que tem de mais íntimo: a fé. Na justiça, seja de que dimensão for. “Acredito que a morte não é o fim e que quem vai derrubar Bolsonaro será Marielle, porque a investigação sobre a execução dela vai até ao fundo. E eu vou defender a memória e as ideias dela, e essas não há bala que matem.” Filho de Oxóssi, o santo caçador do candomblé, e de Oxum, que representa “a água que aparta a morte e afoga o traidor”, Wyllys declara que não se vai deixar caçar e lança um recado aos inimigos: “Quem acredita que estou só e derrotado desengane-se, porque os dados ainda estão rolando.” Nessa altura da entrevista, já não há luz, os candeeiros foram sendo acesos, e lá fora só a Lua. Um momento de silêncio pesa e divide a conversa num antes e depois. Mas há que prosseguir, avançar. Para onde? Para casa.

“A gente vai fazer o Brasil feliz de novo, vamos retomar as rédeas para fazer daquele um país em desenvolvimento, e as pessoas vão sair desse transe fascista”, promete Wyllys, com os olhos outra vez a brilhar. Com ele tem apenas os quatro livros que trouxe: “Regresso a Reims”, as memórias do intelectual francês e homossexual Didier Eribon; os “Cadernos do Cárcere”, do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci; e os dois pedaços literários do Brasil, “Grande Sertão: Veredas”, obra seminal de José Guimarães Rosa, e “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector. “Como disse Fernando Pessoa, a minha pátria é a língua portuguesa e, não tendo pátria nesse momento, tenho mátria e quero fátria, quero fraternidade.”

“As causas que defendo não vão ganhar nada se eu morrer, e por isso decidi viver. Por mim, porque viver é bacana e porque preciso de trabalhar pelo que acredito”

E é com a língua que pavimenta os próximos tempos, feitos “de sonho e de pó”, como tão bem cantou Elis Regina sobre a romaria dos brasileiros atrás de um futuro que lhes tarda a chegar. Jean foi convidado por Lilia Schwarcz, da editora Companhia das Letras, a escrever sobre política a partir do seu próprio percurso pessoal. A política de afetos feita pelo filho da lavadeira e do preto alcoólico, pintor de automóveis, cujo nome é uma mistura de homenagem ao sonho da fotonovela e ao desejo de consumo dos automóveis Aero Willys. O rapaz que abraçou o ativismo homossexual para se salvar a si e aos seus da morte na epidemia de sida e que se tornou famoso num concurso de televisão, o trampolim ideal na sociedade mediática para entrar no sistema e tentar modificá-lo por dentro. Que foi chamado de “fenómeno político” por Fernando Henrique Cardoso e é amigo de Lula da Silva.

Grande parte do livro já foi escrita, falta o último capítulo, que será dedicado à experiência do autoexílio. O título também não está aprovado, mas Jean tem uma sugestão — “Nada será como antes”, como na música de Milton Nascimento e Fernando Brandt. Será nestas últimas páginas do livro que vai falar do além — “Aquele lugar de onde se saiu mas onde não se chegou; o lugar do salto, lugar onde sempre vivi desde que assumi a homossexualidade e que radicalizei com o autoexílio.” Até porque, diz, “as causas que defendo não precisam de um mártir, não vão ganhar nada se eu morrer, e por isso decidi viver. Por mim, porque viver é bacana e porque preciso de trabalhar pelo que acredito, e porque as minhas raízes estão dentro de mim eu as levo onde for”.

Há muito que a luz da rua sumiu. Um amigo manda uma mensagem a convidar Jean para jantar. O tempo aperta, a conversa tem de acabar. Mas é preciso ainda dizer algo, professar a fé que o alimenta: “A noite passa sempre. A escravidão foi uma noite de 350 anos e passou. A ditadura militar durou 21 anos e passou. Por mais longa e profunda que seja a noite, não dura para sempre. Ela passa, e essa também vai passar. E eu vou voltar. Porque ninguém solta a mão de ninguém. Lá, aqui e em todo o lugar.”

Jean Wyllys, o homem que tatuou no peito a frase de Maiakovski temperada por Caetano (“gente é para brilhar, não para morrer de fome”), agarra na mala, no casaco, na imagem de Charlot mais triste do que o original e entra na noite berlinense. Para trás ficam as palavras da música que deverá dar o título ao seu quarto livro — “Eu já estou com o pé nessa estrada/ Qualquer dia a gente se vê/ Sei que nada será como antes, amanhã.../ Que notícias me dão dos amigos?/ Que notícias me dão de você?/ Alvoroço em meu coração/ Amanhã ou depois de amanhã/ Resistindo na boca da noite um gosto de sol.”