amor ao papel

O papel do Expresso

<span class="arranque"><span style="color:#FE2E2E">Redação </span></span>2 de janeiro de 1980, última reunião de Francisco Pinto Balsemão enquanto director do Expresso

Redação 2 de janeiro de 1980, última reunião de Francisco Pinto Balsemão enquanto director do Expresso

foto Raul Nascimento

Na semana em que o Expresso cumpre 46 anos de vida, o diretor do jornal usa a imagem do papel para escrever sobre a redação, o jornalismo e o lugar de um jornal na vida dos leitores. Qual é o papel do Expresso na sua vida?

texto pedro santos guerreiro

Não é possível contar a história completa da democracia portuguesa sem falar do papel do Expresso. Mas em cada dia na redação há uma história que nos interessa mais: a do futuro. Com abertura, sem deslumbramento. Com espírito crítico, sem medo de escolher. E porque há retórica numa pergunta, fazemos-lhe esta: qual é o papel do Expresso na sua vida?

A pergunta é-lhe dirigida, mas na verdade interpela-nos permanentemente a nós. Porque um jornal não é uma listagem do que aconteceu nas últimas horas e uma agenda do que vai acontecer nas próximas. É um espaço de escolhas editoriais que sobrepõem patamares de técnicas, dados, fontes, curiosidade, questionamento, propostas, respostas. Da mesma maneira que nunca ninguém viu o núcleo da Terra mas pisa a sua crosta, também uma notícia tem camadas visíveis e outras invisíveis: informação, experiência, conhecimento, saberes. Uma das belezas dos jornais é sabermos que aquilo que escrevemos com tanto empenho e cuidado será lido e deitado para o lixo — mas se melhorar um grama na vida, no mundo, no cérebro ou no coração do leitor, valeu a pena escrever. Porque, nesse caso, o jornal não foi deitado fora, foi deitado dentro.

O Expresso cumpre esta semana 46 anos de vida, 46 anos construídos dia após dia, e é através dessa interpelação, relação e permanência que se edificam lealdades e até cumplicidades entre pessoas que não se conhecem e nunca se veem: jornalistas e leitores. “Podem publicar estatísticas e contar as populações às centenas de milhares, mas, para cada homem, uma cidade consiste em apenas algumas ruas, algumas casas, algumas pessoas”, escreveu Graham Greene em “O Nosso Agente em Havana”. O Expresso é uma das ruas, uma das casas, uma das pessoas na cidade em que vivem milhares dos seus leitores. Não é ter hábitos, é criar raízes. Estamos há 46 anos nesse esforço consciente de que cada relação se alimenta ou fenece pela dedicação que se deposita em cada dia. Sermos hoje o jornal mais vendido em Portugal não é medalha lustrosa, é um compromisso de responsabilidade: queremos estar sempre e para sempre à altura disso, à altura que nos impomos e do que você, leitor, exige de nós. Dia após dia. Após dia. Após dia. Após dia. Em cada notícia, em cada análise, contexto, reportagem, entrevista, vídeo, podcast, fotografia, infografia, ilustração, em cada grande ou pequeno texto é sempre possível seguir a fórmula fácil da repetição treinada — ou decidir fazer o melhor do melhor jornalismo. Essa decisão é nossa, da redação, de cada jornalista do Expresso. E se a cada momento tomamos a decisão mais difícil, a de fazer bem feito, não é só por brio. É porque sabemos que a decisão de ler é, e será sempre, sua.

<span class="arranque"><span style="color:#FE2E2E">Redação </span></span>2 de janeiro de 2019, primeira reunião de chefias nas novas instalações do Expresso <span class="creditofoto">foto joão carlos santos</span>

Redação 2 de janeiro de 2019, primeira reunião de chefias nas novas instalações do Expresso foto joão carlos santos

É por isso que precisamos de leitores que precisem de nós. Porque a nossa força existe pois temos centenas de milhares a ler-nos. Porque queremos poder. Porque queremos usá-lo, através do jornalismo, a favor dos valores da democracia, da liberdade, da justiça social, da prosperidade coletiva, do humanismo que defendemos e em que acreditamos. E que tempos estes em que vivemos, em que os rubores populistas nos deixam lívidos, em que os vírus corroem devagar-depressa, em que os contágios se descontrolam à esquerda e à direita, raramente ao centro, raramente no espaço de moderação. A lista de Presidentes de países à entrada de 2019 seria há poucos anos uma lista de infames. Agora é uma lista de eleitos.

No livro “Warrior Politics”, que um leitor nos enviou há poucas semanas (as relações entre jornalistas e leitores praticam-se também em generosas reciprocidades como esta), Robert Kaplan escreve sobre a armadilha da raiva populista, não para a recriminar com soberba, mas para que os soberbos possam compreendê-la e, nisso, compreenderem também como são causa e não apenas alvo dela. Esta raiva populista será o mal do século XXI, escreve ele e resumimos nós, aproveitando-se da democracia e fortalecendo-se através da pós-revolução industrial das tecnologias de informação. Nem uma nem outra são más — mas podem ser usadas tanto para o bem como para o mal (e é tão mais fácil “dizer (o) mal” do que “dizer (o) bem”, escrevia Tolentino de Mendonça há duas semanas nestas páginas, alertando para esse “definhar da alma, esse olhar cheio de preconceitos”, essa “espécie de ressentimento expresso como anátema em relação à vida, esse totalitarismo da lamúria que, sem darmos conta, nos asfixia”). Aquela fúria, prossegue Kaplan, aduba-se nas tensões sociais e económicas, na demografia e na escassez de recursos, no capitalismo que afunda desigualdades entre uma classe de empresários novos-ricos e outra de subproletários novos-pobres, numa dispersão de informação manipulada e manipuladora, na possibilidade de um homem com um telemóvel na mão e uma mochila às costas se transformar num terrorista assassino.

Uma democracia vive de informação e liberdade de escolha, da maneira reversa de como as ditaduras se impõem sobre a ignorância e sobre o medo que disfarçadamente cultivam. Mais difícil do que resolver a transformação do modelo de negócio (e de nunca esquecer que o modelo de negócio serve um projeto editorial e não o contrário), o desafio mais importante do jornalismo é permanecer como resistência ao ódio e ao medo que carcome sistemas democráticos adoecidos. O discurso antissistema atrela muitas vezes o discurso antijornais, porque entende os jornais como parte do sistema odiado. É verdade, os jornais são parte do sistema, mas são a parte que o contesta por dentro, que o revela por dentro, que o tenta melhorar por dentro, que faz contrapoder dentro das regras de equilíbrio das instituições democráticas. E fá-lo tanto através das chaves de entendimento como da denúncia da corrupção, tanto da abertura ao outro como da compreensão do diferente, tanto da interligação de factos como da revelação do que pretende manter-se oculto. “Hoje, estaremos perdidos se abandonarmos a fé nas instituições e nos valores que separam as democracias, quão imperfeitas elas sejam, da tirania”, afirmava Madeleine Albright há dias à revista “The Economist”. “O fascismo prospera quando não há âncoras sociais, quando a perceção assume que a comunicação social mente sempre, que os tribunais são corruptos, que a democracia é uma fraude, que as empresas estão escravizadas pelo diabo, e que só uma mão forte pode proteger-nos contra o mal no ‘outro’.”

É por isso que os jornais querem poder, o poder de usar a informação, de fazer jornalismo, de compreender, esclarecer, contextualizar, de saber ouvir e depois contar, mostrar, revelar, para que os poderes se sintam vigiados e pressionados a estar à altura de quem os elege e escolhe, para que os leitores se informem e tomem as suas próprias opções, posições, opiniões e decidam agir de acordo com elas. É por isso que o Expresso cruza tantas áreas e se funda sobre três pilares editoriais: a política, através da qual se estabelecem as escolhas de um país; a economia, que decide as condições de prosperidade de um povo; a cultura, que firma identidade e afirma as inesgotáveis possibilidades dentro de nós. É isso que o Expresso é e quer ser, “um porto de abrigo para pessoas inteligentes”, como aqui escreveu há um ano Francisco Pinto Balsemão, que naquele dia 6 de janeiro de 1973 fundou este jornal com a jovialidade e a inspiração que mantém, e que mantemos.

Nas nossas democracias liberais ocidentais tão ameaçadas o passado não é um fóssil nem garante a sua própria continuidade, deve ser preservado percebendo-se que tem a delicadeza de um coral. A lista de atrocidades como no Iémen, de descontinuidades como com o ‘Brexit’, de ameaças, perigos, desresponsabilizações, de guerras, crises, catástrofes está sempre na beira dos nossos olhos. Mas o mundo nunca é uma natureza morta. Mesmo quando parece estar sempre a acabar, em cada mente humana pode estar sempre a começar. Porque todos temos poder de escolha. Porque uma sociedade informada e ativa tem força de intervenção. A história do Expresso honra-nos, mas sobretudo fertiliza em nós a inspiração de praticar o bom jornalismo e de assumir o nosso papel neste mundo fascinante, nesta Europa de valores humanistas, neste país maravilhoso — e, sobretudo, na sua vida. É esse o nosso papel, um papel que se recicla. Agora deite este texto dentro e continue a virar as páginas: em cada texto, em cada dia, em cada uma das nossas palpitações, todos somos Expresso.