ENTREVISTA PGR

JOANA MARQUES VIDAL Ex-procuradora-geral da República

“Não há uma estratégia nacional contra a corrupção”

Texto Micael Pereira (Expresso) e Luís Garriapa (SIC) Fotos Tiago Miranda

Marques Vidal, no seu gabinete, quarta-feira, dois dias antes de passar a pasta

Marques Vidal, no seu gabinete, quarta-feira, dois dias antes de passar a pasta

Raramente deu entrevistas ao longo dos seis anos que esteve como procuradora-geral da República e é pouco entusiasta de posar para as fotografias, mas Joana Marques Vidal parece ter-se adaptado bem àquela casa. Como seria de esperar, de resto. Filha e irmã de magistrados e criada em Coimbra, entre gente de Direito, aprendeu a crescer no coração do sistema judicial. Foi com esse à vontade, descontraída e sorridente, que recebeu o Expresso e a SIC num dos salões aristocráticos do Palácio Palmela, entre as copas do seu frondoso jardim e o Largo do Rato, em Lisboa. Antes de nos sentarmos, explicou como o silêncio pode ser uma virtude em certos lugares mas também como chega um momento em que é hora de falar.

Ficou surpreendida com a dimensão do fenómeno da corrupção em Portugal?

Devo dizer que fiquei. Embora considere que não podemos cair na frase feita de que Portugal é um país de corruptos. Temos instituições que funcionam. Mas somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar. Tem de ser encarada como uma questão essencial do Estado de direito democrático. Penso que politicamente a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial. Não há uma estratégia nacional contra a corrupção. Não só na resposta judiciária, estou a falar da dimensão cultural e da rejeição que deveria haver de todos. A questão coloca-se nos pequenos negócios, no dia a dia e na capacidade de haver uma rejeição total. Se nós repararmos o que foram os programas políticos das últimas eleições, a corrupção aparece lá numa linha. E aparece sempre relacionada com o judiciário. Ora, a luta contra a corrupção é uma luta pela transparência. Transparência no exercício dos cargos públicos e contra o financiamento dos partidos políticos.

Há a Operação Marquês, o caso Lex, os Vistos Gold, etc. O que é que se passou para estes processos terem acontecido num espaço tão curto de tempo, durante o seu mandato, quando não aconteciam tanto em mandatos anteriores, nomeadamente no do seu antecessor, Pinto Monteiro?

Ao longo destes seis anos apostou-se em conseguir financiamento, através dos programas europeus, para fazer um plano de formação de magistrados nesta área, durante dois anos. Reforçou-se também a concessão de perícias especificas e o uso de ferramentas informáticas, com a digitalização de processos. Apostou-se no fundo num conjunto de estruturas, organização e conhecimento que nos permitiu trabalhar melhor.

“Portugal deveria realmente alargar o âmbito da colaboração premiada”

Qual é o papel do procurador-geral da República? É deixar que se faça?

O papel do procurador-geral é promover a organização, a articulação interna e a capacidade de gestão que permita aos magistrados trabalharem melhor.

E a atitude de o Ministério Público não ter medo de investigar políticos, ou inclusivamente de os prender?

Costumo contar, por referência a um grande procurador-geral da República, Arala Chaves, que ele dizia que a qualidade essencial de um magistrado do Ministério Público é ser corajoso. Mas a coragem, por si só, não basta. É preciso conhecimento, organização, rigor, definir prioridades naquilo em que investimos.

Tem pena que os seus argumentos não tenham sido suficientes para convencer os juízes do Tribunal Constitucional em relação a uma lei para o enriquecimento ilícito?

Se o Tribunal Constitucional nega esta possibilidade, eu defendo que seria útil, mas não imprescindível, um tipo legal que permitisse ao Ministério Público e a outras entidades públicas iniciar um processo de inquérito quando se verificasse que existe um enriquecimento não justificado. Não defendo a inversão do ónus da prova. O que eu defendo é a possibilidade de iniciar uma investigação com base na verificação da desconformidade e da não justificação do enriquecimento.

Mas isso já não acontece de alguma forma com os processos administrativos?

Se verificar só que há um enriquecimento e não sabe qual é a origem, e se não tiver mais nenhum indício, legalmente será difícil iniciar um processo. Essa é interpretação que eu faço da lei. Há um conjunto de diplomas que estão a ser debatidos no âmbito da comissão parlamentar para a transparência, que eu gostaria muito que realmente terminasse os seus trabalhos. Todo esse pacote merece ser debatido e termos realmente leis claras.

A delação premiada seria também um bom instrumento nesse combate?

A delação premiada... eu não gosto da palavra. A delação tem em si mesmo um sentido pejorativo para os portugueses, atendendo à nossa história recente com a ditadura. Portugal deveria caminhar num sentido de realmente alargar o âmbito da colaboração premiada, que já está prevista no nosso sistema jurídico há muito tempo em leis específicas como a lei da droga. É muito útil prevermos algumas formas de possibilidade de colaboração dos envolvidos na investigação criminal com a possibilidade de eventualmente ser diminuída a pena ou de isenção da pena.

Mas vê alguma recetividade a isso na Assembleia da República?

Não estou a defender o regime brasileiro. Porque penso que qualquer instituto que preveja a colaboração premiada deve ser bastante claro na sua formulação jurídica e deve também ter a previsão da apreciação por um juiz. A delação premiada no Brasil é um pouco diferente, onde o próprio Ministério Público, na sequência de uma delação premiada, pode nem sequer levar a julgamento ou iniciar a investigação contra determinado tipo de pessoas. Mas, já agora, também é preciso as pessoas perceberem que mesmo no Brasil, por si só, ninguém pode ser incriminado com um depoimento de alguém que vem dizer que essa pessoa é culpada. O que acontece é que há um conjunto de elementos que nos são trazidos pelos depoimentos de quem colabora com a Justiça que permitem que a investigação seja mais rápida e vá por determinados caminhos que não iria se não houvesse essa colaboração premiada. Esses factos que são trazidos por quem colabora com a Justiça têm de ser comprovados.

Tancos “Considerou-se atribuir aquela investigação à PJ”

Porque é se envolveu diretamente no caso de Tancos, ao decidir abrir um inquérito autónomo só para investigar a Polícia Judiciária Militar e alguns militares da GNR?

Houve uma denúncia anónima e considerou-se que aquilo que estava nessa denúncia não coincidia com o inquérito que já estava a ser investigado. A intervenção da procuradora-geral neste caso só teve que ver com a questão da competência da PJ e da PJM.

Arrepende-se de ter deixado que as duas polícias trabalhassem em conjunto no mesmo processo?

O órgão de polícia criminal [do processo sobre o furto de Tancos] é a Polícia Judiciária. Está claro no despacho do Ministério Público.

Isso não pode ter acicatado o que se diz ser uma guerra entre polícias?

Eu não me pronuncio sobre guerras. Pronuncio-me sobre aquilo que é a análise jurídica que se fez do caso. E devo dizer que qualquer órgão de polícia criminal, seja ele um ou outro, no âmbito das suas funções, está dependente da direção efetiva do inquérito pelo Ministério Público. E é perante o Ministério Público que tem de responder e não perante a estrutura da qual faz parte.

Muitos militares criticaram este processo de Tancos, dizendo que estavam em causa no furto daquelas armas crimes militares e que devia ter sido dada primazia à PJM. Essas críticas não têm sentido?

Houve uma interpretação jurídica. Considerou-se, com os fundamentos jurídicos que constam dos próprios processos, atribuir aquela investigação à Polícia Judiciária e tudo o resto são interpretações que fazem à volta disso. O direito não é a preto e branco. O Ministério Público fez uma determinada ponderação dos factos que estavam em causa, que poderá ser contestada ou não, pelas vias processuais previstas.

Operação Marquês “Eu acho que é uma boa acusação”

Foi informada antecipadamente da detenção de José Sócrates?

Fui informada pelo titular do processo e pelo seu superior hierárquico que pretendiam efetuar a prisão preventiva.

Deu a sua concordância?

O procurador-geral da República não tem de dar a sua concordância, porque os magistrados têm autonomia nos seus processos.

Então, porque lhe deram conhecimento?

Porque é claro que um procurador-geral da República tinha de ter conhecimento de uma diligência que ia ter uma óbvia repercussão pública. Em última análise, é a pessoa que dá a cara se houver alguma contestação pública.

Era a primeira vez que se colocava a questão de deter um ex-chefe de Governo. Como é que se sentiu?

A minha preocupação foi perguntar: têm fundamentos suficientes, indícios aprofundados, em termos jurídicos e factuais? Têm verificada a situação que leva a essa decisão processual? “Temos.” Claro que é um momento grave. E todos os magistrados envolvidos têm noção da gravidade. Mas essa é a nossa função. A preocupação que tenho sempre numa situação mais complexa, com repercussão, é: analisaram bem?, ponderaram bem?, têm factos juridicamente sustentáveis? É a única pergunta que eu faço. E outra, quando começa a haver uma aparente demora, é perguntar: do que é que precisam para trabalhar?

Acompanhou de perto este processo?

Acompanhei de perto este processo. É claro que acompanhei outros também. E não só os do DCIAP, que estão mais dependentes do procurador-geral. Quando há processos complexos, eu tento acompanhar.

O engenheiro Sócrates chegou a acusar o Ministério Público de fazer uma perseguição política, de que havia um plano para impedi-lo de se candidatar a Presidente da República. Estava à espera de ataques deste género?

Não faço comentário nenhum a esse tipo de acusações. Quando o Ministério Público atua, a possibilidade de comentários é sempre enorme. E há casos em que uns arguidos reagem de uma maneira, outros de outra.

Chegou a haver uma fricção entre a procuradora-geral e os investigadores relativamente ao tempo da investigação. No final, acha que é uma boa acusação?

Eu acho que é uma boa acusação, tanto neste caso como noutros. É uma apreciação técnica, meramente técnica. Tanto quanto um superior hierárquico pode avaliar os seus magistrados, a acusação parece-me que tem a factualidade, tem a sua prova, está bem articulada.

Se este processo não chegar a julgamento, ou se não houver condenações, sente isso como uma derrota pessoal?

Não, de maneira nenhuma. Os processos têm a sua vida própria. Os tribunais funcionam bem quando condenam e funcionam bem quando absolvem. E isto é o funcionamento normal da Justiça num Estado de direito democrático.

Um relatório polémico feito pela inspeção do Conselho Superior do Ministério Público em 2014 sobre métodos usados pelo DCIAP, o departamento que investigou a Operação Marquês, dava conta de críticas que nós agora vemos na defesa dos arguidos deste caso e que têm a ver com os chamados processos administrativos, ou seja, investigações que estariam a decorrer fora do âmbito do inquérito-crime. O que tem a dizer sobre isto?

Essa inspeção foi anterior a 2014, em 2014 foi quando o conselho a apreciou. Foi uma inspeção determinada por mim própria para fazer uma espécie de auditoria ao funcionamento aos serviços do DCIAP e permitir-nos uma reorganização com um conhecimento mais profundo do que se estava a passar. Aquilo que se resolveu em termos meramente organizacionais chamar de processos administrativos são as notificações que são obrigatórias efetuar ao abrigo da lei do branqueamento de capitais pelas instituições financeiras ao Ministério Público, face a determinado tipo de operações bancárias e financeiras. Essas comunicações são registadas como processos administrativos, e no âmbito desse tipo de procedimentos é permitido ao Ministério Público recolher elementos que permitam depois ponderar se há qualquer indício que leve à abertura de um inquérito-crime.

E não há um abuso por parte do Ministério Público em relação a esses procedimentos?

Não há. Porque senão, seria motivo de nulidade. Nesses procedimentos só se pode utilizar determinado tipo de recolha de elementos. Não se podem fazer escutas nem pedir elementos que necessitem de despacho formal de um juiz. Podem-se pedir informações aos bancos, que são aquelas que a lei permite que seja o Ministério Público a fazer.

Mas também têm um tempo de duração limitado. Não podem ficar adormecidos...

A lei não prevê períodos de tempo máximos e mínimos para os procedimentos. Mas foi precisamente essa crítica que os inspetores vieram fazer aos procedimentos pendentes no DCIAP, dizendo que havia lá alguns que já estavam a decorrer há muito tempo. Devo dizer que o número dos chamados processos administrativos pendentes, ou seja, com origem nesse tipo de procedimentos e notificações bancárias já diminuiu bastante e estão neste momento reduzidos àquilo que é essencial.

E como vê as suspeitas levantadas sobre uma alegada batota que o Ministério Público teria feito para escolher o juiz de instrução Carlos Alexandre, para que fosse ele e não outra pessoa a acompanhar o inquérito-crime da Operação Marquês?

Isso é objeto de apreciação no âmbito do próprio processo. Aliás, algumas dessas alegações já foram objeto de recurso. Já houve decisões de tribunais. Não me vou pronunciar.

Em relação ao DCIAP, Amadeu Guerra deveria ser reconduzido no cargo de diretor deste departamento?

O doutor Amadeu Guerra é um magistrado de uma competência extraordinária, com uma grande capacidade de liderança. Foi sem dúvida durante este período, neste mandato de seis anos, um elemento essencial na orgânica do Ministério Público, designadamente para os resultados que estamos a obter. Eu gostaria de o ver mais tempo no cargo. Acho quase que não devia pronunciar-me sobre isso, mas quero responder claramente que o gostaria de o ver mais tempo.

GES será o caso mais complexo

Passaram-se quatro anos desde que foram abertas as investigações ao colapso do BES. Em que pé estão?

Essas investigações requerem perícias económico-financeiras de grande profundidade, abrangem muitos casos, que necessitam de ser analisados com uma visão mais geral, e está a demorar um pouco.

Há capacidade em Portugal para investigar offshores e esquemas financeiros nos casos do universo BES?

Temos capacidade. Também é uma área onde hoje temos mais capacidade de articulação e troca de informação com os ministérios públicos de outros países. E há uma equipa vasta de magistrados em exclusividade neste processo.

Acredita que vai ser possível descobrir quem são os beneficiários efetivos do famoso saco azul do Grupo Espírito Santo?

Vamos ter de aguardar para ver qual vai ser a evolução desse caso, que é realmente muito complexo em termos técnico-jurídicos. Será o caso mais complexo que o Ministério Público tem em mãos.

Angola “Não há qualquer julgamento sobre a justiça de outro Estado”

Como lidou com o facto de o Ministério Público ter sido acusado de não respeitar a soberania de outro Estado?

O Ministério Público, neste processo como noutros, atuou dentro daquilo que era a aplicação da lei. Vieram a lume afirmações que diziam que não tinha sido respeitada a convenção entre países da CPLP e relativamente a isso quero dizer que foi respeitada. O MP fez a sua interpretação da lei e a sua promoção foi seguida por um juiz quando o processo chegou à fase de julgamento. A decisão desse juiz foi depois alterada num recurso e penso que isso é o funcionamento da justiça.

Houve pessoas a ligar-lhe para lhe dar conta da necessidade de resolver o processo, tendo em conta as relações com Angola?

Por vezes há situações muito difíceis, mas aquilo que os tribunais devem fazer é aplicar a lei. Não podem aplicar uma lei que não têm.

Mas fizeram pressão política em relação a isso?

Não fizeram. Penso que os representantes institucionais conhecem-se uns aos outros. Um procurador-geral não vive numa redoma.

Ouvir Presidente da República, primeiro-ministro, ministro dos Negócios Estrangeiros falarem no “irritante” desta questão não é também uma forma de pressão?

É por isso que existe autonomia do Ministério Público e separação de poderes. Não me pronuncio sobre as palavras empregues por outros órgãos de soberania. Também nunca ouvi pronunciarem-se sobre as minhas palavras. Foi dito que o MP não respeitava a justiça angolana. Não era isso que estava em causa. Essa interpretação pode ser determinada pelo facto de um dos requisitos das convenções internacionais ser a boa administração da justiça. Deve fazer-se a análise, em caso de transmissão do processo, se aquele caso vai ser objeto de apreciação ou não. Ora, se existe uma lei de amnistia, que nos disseram que iria ser aplicada ao caso, a interpretação que fizemos foi que aquele caso não iria ser objeto de apreciação. E foi isso que esteve na base da não-verificação da boa administração da justiça. Ou seja, não há qualquer julgamento sobre a justiça de outro Estado, nomeadamente do Estado de Angola. E já agora devo dizer que, durante todo este processo, as relações entre o MP português e o MP de Angola se mantiveram e a cooperação judiciária decorreu na normalidade. Houve magistrados de lá que estiveram cá, magistrados de cá que estiveram lá.

Acredita que o processo de Manuel Vicente vai ser julgado em Angola?

Não é uma questão de convicção, é uma questão de aguardar.

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