uma década de crise lesados da banca

PROTEÇÃO Nos últimos anos, milhares de clientes bancários viram as suas aplicações evaporar-se, ou porque se deixaram seduzir por rendibilidades de produtos complexos ou porque foram enganados. Dez anos depois há uma enxurrada de regras para prevenir que as más práticas se repitam, mas o seu verdadeiro alcance ainda está por testar

“Está lá? Daqui é o seu gestor de conta e esta conversa está a ser gravada”

Textos Elisabete Miranda e Isabel Vicente Foto Nuno Botelho

Enganados ou desinformados, os clientes multiplicaram nos últimos anos as queixas contra as práticas da banca

Enganados ou desinformados, os clientes multiplicaram nos últimos anos as queixas contra as práticas da banca

Se num destes dias receber um telefonema do seu gestor de conta a avisá-lo de que “a nossa conversa está a ser gravada”, não se espante. Do mesmo modo, se for ao banco aplicar o seu dinheiro, não se admire se, antes do mais, lhe fizerem um raio x à escolaridade e aos hábitos de poupança e, no fim de tudo, lhe apresentarem uma pilha de papéis e termos de responsabilidade para assinar. Os procedimentos são novos e, em teoria, servem para garantir que cada cliente sai do banco bem informado e seguro dos investimentos que fez. Na prática, contudo, os especialistas dividem-se sobre o seu verdadeiro alcance: há quem considere as regras revolucionárias e quem, com maior ceticismo, não descarte novos grupos de “lesados” da banca no futuro.

A preocupação com o pequeno investidor não profissional adquiriu uma nova centralidade após a crise financeira, e as regras são tão abundantes e densas que não só demoraram dez anos a cozinhar (só agora chegam ao terreno) como se tornam pouco acessíveis ao cidadão comum. Uma das peças centrais desta rede de proteção dá pelo nome técnico de DMIF II, e Paulo Câmara, sócio no Departamento Financeiro & Governance da Sérvulo, chama-lhe “a maior revolução regulatória de sempre”. Ao todo, “são mais de 10 mil páginas” que, se, por um lado, garantem que as regras “cobrem todo o percurso da produção e distribuição de produtos financeiros”, por outro, também criam um “excesso regulatório”, aponta.

O cliente primeiro

É neste vasto pacote que se encontram medidas que obrigam os bancos a fazer uma análise às características dos produtos que disponibilizam, a hierarquizá-los em função do grau de risco e a vendê-los apenas a quem tem literacia financeira para compreender as suas nuances. Pessoas com menor escolaridade e idosos serão objeto de mais cuidados e, para prevenir situações em que os clientes vêm dizer depois que foram enganados, as suas interações com o funcionário do banco ficam registadas. Se as conversas forem telefónicas, elas têm de ser gravadas; se a transação for feita ao balcão, tudo tem de ficar escrito e documentado. No limite, se o regulador quiser ter acesso a todas as conversas que decorreram dentro da instituição financeira sobre a estratégia de venda de um produto, pode requerer a informação. E quem diz o regulador diz o cliente, sobre o seu caso concreto.

De resto, as novas obrigações vêm acompanhadas de um reforço do poder dos reguladores e supervisores e, “por exemplo, o Banco de Portugal pode suspender a comercialização de um produto com características que não tenham aderência ao perfil do cliente bancário. Em certos casos, a idade do cliente poderá ser um aspeto a considerar”, argumenta Lúcia Leitão, diretora do Departamento de Supervisão Comportamental.

As regras querem proteger os investidores não profissionais de abusos e vendas agressivas de produtos

Um aforrador não está impedido de comprar um produto que não se adeque ao seu perfil, mas, nesse caso, terá de assinar um termo de responsabilidade onde garante que tomou conhecimento dos riscos que corre. E, seja prudente ou aventureiro, receberá informação abundante sobre as características do que está a comprar, sobre os cenários de variação do produto (como já acontece com a variação dos juros do crédito à habitação) e sobre se o bancário tem algum interesse na venda do produto (se, por exemplo, recebe uma comissão) que possa estar a comprometer a sua isenção.

Os polémicos depósitos indexados também passam a ter a malha mais apertada, já que “das novas regras decorre a proibição da comercialização combinada de depósitos estruturados com produtos financeiros que não garantam o capital investido a todo o tempo”, refere ainda Lúcia Leitão.

Controlo de prémios e comissões

Com esta bateria de procedimentos, Rita Costa, sócia da EY, está convencida de que “passou a haver incomparavelmente mais instrumentos para proteger os clientes e o mercado”. Até porque “o banco, passando a ter muito mais informação, passa a ter mais capacidade de analisar o perfil de risco do cliente”. É também esta a opinião de Paulo Câmara: “Temos agora uma malha normativa que é integral e cobre todo o tipo de produtos bancários, de seguros e do mercado de capitas. E tudo o que tem a ver com incentivos mudou”, recorda, convocando outra bateria de regras que diz que os prémios que os bancários recebem não podem estar desenhados de molde a incentivá-los a impingir produtos de maior risco aos clientes.

Só que, assinala Magda Moura Canas, jurista da Deco Proteste, “sendo o enquadramento legal de extrema importância — e, note-se, o legislador português até foi além das exigências comunitárias —, tudo vai depender da forma como todas estas alterações vão ser executadas”. E antecipam-se já vários objetivos conflituantes à espreita. Desde logo porque “a maior complexidade e exigência regulatória terá de aprender a conviver com a pressão dos clientes, que querem celeridade e simplicidade nas suas interações com o banco”, afirma Rita Costa. Depois porque “as instituições financeiras continuam a prosseguir o lucro, e a pressão para alcançar objetivos de venda não acaba de um dia para o outro”, acrescenta Magda Canas.

Entre o lucro e a lei

Colocados perante “uma lei que obriga a dar primazia aos interesses dos consumidores e, por outro lado, a exigência do lucro”, onde é que os bancos atingem o ponto de equilíbrio?, ques­tiona a jurista da Deco Proteste. Paulo Pinho, professor na Nova School of Business and Economics (NSBE), não tem dúvidas sobre para que lado o pêndulo se inclinará e, por isso, antecipa que “vamos continuar a assistir a histórias como as que vimos no BPN, no Banif e no BES e a ter lesados no futuro”. Primeiro porque, apesar de não ser suposto os bancos venderem produtos desfasados do perfil do cliente, “nada impede o bancário de dizer ao cliente para fazer lá uma cruzinha a dizer que está a comprar o produto com cons­ciência do risco”. Este risco é também sublinhado por Magda Canas, que lembra que, como na venda presencial as conversas não são gravadas, “nada nos garante que aquilo que é escrito corresponde ao que foi dito”. Depois porque os bancários conti­nuam a enfrentar objetivos de vendas de produtos de risco, coisa que, para Paulo Pinho, devia ser proibido. E depois ainda porque, ao contrário do que chegou a ser sugerido no Parlamento, “as instituições financeiras continuam a poder vender produtos do grupo aos próprios clientes”, outra ideia que também é subscrita pela jurista da Deco Proteste, para quem, pelo menos, “devia ter sido acautelada a imposição de limites à venda de produtos do grupo”.

A malha é apertada, mas a eficácia das regras vai depender da sua aplicação prática. Cultura empresarial tem de mudar

Tudo somado leva o professor Paulo Pinho a afirmar que “em Portugal falou-se muito e fez-se pouco”, uma conclusão que choca de frente com a convicção exibida por Ricardo Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, quando no Parlamento garantiu que “acaba agora o tempo em que se vendia tudo a todos”.

A meio caminho entre otimistas e céticos parece colocar-se o regulador. Lúcia Leitão diz ao Expresso que “as novas regras vêm aumentar a proteção dos consumidores de produtos bancários no que respeita aos depósitos e aos créditos”, e, “tendo em conta as alterações dos vários pacotes legislativos, os clientes passaram a ter um quadro geral de proteção mais amplo e denso”. Igualmente prudente é Gabriela Figueiredo Dias, presidente da CMVM, que já disse que com esta lei “vão ser mitigados os riscos de irregularidades, abusos e irresponsabilidades” do passado, mas “não eliminamos, seguramente, todas as vulnerabilidades do sistema, designadamente as que dependem da conduta, da ética e da diligência individual de todos os agentes, investidores incluídos”. “Não podemos pensar que as autoridades são omnipresentes e estarão em todos os balcões, a todo o momento, a monitorizar cada informação, cada investimento, cada transação”, porque “os meios serão sempre escassos em face da multiplicidade e complexidade de agentes e transações e do contínuo surgimento de novas realidades”.

“Estamos perante a maior revolução regulatória de sempre. Temos uma malha normativa que é integral e cobre todo o tipo de produtos bancários, de seguros e do mercado de capitais. E tudo o que tem a ver com incentivos mudou”

Paulo Câmara Sócio da Sérvulo

“Por um lado, a lei obriga a dar primazia aos interesses dos consumidores. Por outro, o objetivo dos bancos é dar lucro. O ponto de equilíbrio é difícil de alcançar (...) e a maioria dos clientes ainda confia na palavra do gestor”

Magda Moura Canas Jurista da Deco-Proteste

“Passou a haver incomparavelmente mais instrumentos para proteger os clientes e o mercado. Mas a maior complexidade e exigência regulatória terá de aprender a conviver com a pressão dos clientes, que querem celeridade e simplicidade”

Rita Costa Sócia de Advisory Financial Services da EY

“Falou-se muito e fez-se pouco. (...) As instituições financeiras continuam a poder vender produtos do grupo aos próprios clientes. Vamos continuar a assistir a histórias como as que vimos no BPN, no Banif, no BES e a ter lesados no futuro”

Paulo Pinho Professor na Nova Business School of Economics

“O Banco de Portugal pode agora suspender a comercialização de um produto com características que não tenham aderência ao perfil do cliente bancário. Em certos casos, a idade do cliente poderá ser um aspeto a considerar”

Lúcia Leitão Diretora do departamento de supervisão comportamental do BdP

“Não eliminamos, seguramente, todas as vulnerabilidades do sistema, designadamente as que dependem da conduta, da ética e diligência individual de todos os agentes, investidores incluídos”

Gabriela Figueiredo Dias Presidente da CMVM, em março

antes

Foram muitos os bancos que deram dores de cabeça nos últimos dez anos em Portugal, por atropelos à legislação e supervisão pouco preparada para reagir a tempo e horas, vendas abusivas a consumidores bancários e gestão muito pouco criteriosa em termos de governação. Alguns desapareceram e, a par de práticas de gestão irregulares e dolosas para o sistema financeiro, deixaram os seus clientes em maus lençóis. Em todos os casos, a pressão comercial para a venda de produtos (ações ou outros produtos dos próprios bancos) foi grande e indevida, sem informação adequada a muitos dos clientes. Os supervisores estavam distraídos.

Dívida disfarçada de depósitos no BES É o exemplo mais recente de um banco que pecou em várias frentes e está em liquidação. Neste trabalho, a venda enganosa e abusiva de produtos do grupo a investidores não profissionais deixou muitos lesados e uma fatura grande para pagar, para não falar dos inúmeros acionistas particulares que perderam tudo e até sabiam o que eram ações. No BES, que foi intervencionado em 2014, vendeu-se dívida do grupo como se de depósitos se tratasse a muitos investidores mal informados e pouco esclarecidos pelos funcionários.

Pouca informação no BANIF O desaparecimento do Banif teve outros contornos menos pesados, e aos lesados do Banif não estão a ser reconhecidos os mesmos problemas de venda abusiva a investidores como os que foram provados no BES. Neste caso foram vendidas obrigações que muitos clientes se queixam que não sabiam que tinham risco.

BPN com ações remuneradas como depósito A primeira nacionalização do século XXI, em outubro de 2008, teve origem em casos de polícia que se repetiram mais tarde, com outros contornos, no BES. Vendiam-se depósitos que não eram depósitos e remuneravam-se ações a uma taxa fixa como se de um depósito se tratasse e depois vendiam-se as mesmas ações a um preço previamente combinado, mais alto do que o preço de aquisição. Muitos ganharam com o negócio, mas outros, principalmente pequenos acionistas, acabaram por perder tudo.

Uma espécie de depósitos indexados no BPP Numa instituição que era vista como o banco dos ricos, muitos particulares de classe média investiram dinheiro no que pensavam ser depósitos e eram, afinal, o que veio a chamar-se de produtos de retorno absoluto (basicamente, eram ações e dívidas de empresas). A grande maioria acabou por recuperar parte do seu dinheiro, anos depois.

Pressão para compra de ações no BCP O BCP também deu que falar por muitos motivos já julgados. No que toca à venda cruzada, abusou nos clientes que pediam sobretudo crédito à habitação, impingindo-lhes créditos para compra de ações (o banco precisava de capital) num aumento de capital em 2002, que só mais tarde veio a público.

e depois

Nos últimos anos assistiu-se a uma enxurrada regulatória para prevenir conflitos de interesses e minimizar o abuso de confiança por parte das instituições financeiras. O grosso das medidas consta da transposição da DMIF II, que entrou em vigor no dia 1 de agosto e ainda carece de regulamentação. Também nos depósitos estruturados e nos seguros houve alterações.

Produtos têm de ter destinatários definidos As instituições financeiras têm de ter o que se designa de “política de governação dos produtos” financeiros, fazendo uma análise cuidada sobre qual deve ser o público-alvo de cada produto e analisando o seu comportamento em cenários adversos.

Avaliar o perfil do cliente Os gestores de conta passam a ter de avaliar o cliente que têm à frente e apenas podem oferecer-lhe produtos que se coadunem ao seu nível de risco e literacia financeira. Se o cliente fizer questão de comprar um produto mais arriscado do que o aconselhável, pode fazê-lo, desde que assuma a responsabilidade.

Conversas gravadas, ordens por escrito Para evitar equívocos, o banco passa a ser obrigado a ficar com registos que mostrem como os clientes tomaram uma determinada decisão de investimento. As ordens dadas presencialmente têm de ficar escritas e as orais gravadas. Isto é válido tanto para produtos complexos como não complexos (ações, obrigações, papel comercial).

Mais informação ao cliente Há um alargamento dos deveres de informação sobre custos e encargos dos produtos, mas também sobre comissões que os intermediários financeiros estejam a pagar ou a receber.

Formação reforçada Os bancários têm de ser sujeitos a uma carga horária mínima de formação, de modo a assegurar que conhecem as características do que estão a vender, o funcionamento dos mercados, as variáveis que podem fazer alterar a rendibilidade dos produtos e os custos globais para o cliente, entre outros.

Prémios mais controlados A avaliação dos trabalhadores e os prémios em função das vendas devem ser feitos de molde a proteger os interesses do cliente.

Mais informação nos seguros Gestores de fundos, seguradoras, instituições de crédito ou empresas de investimento são obrigadas a elaborar os documentos de informação sobre os produtos de seguros que criam (PRIIPs) e a fazer cenários de desempenho.

Credito à habitação sem produtos de risco De 2011 em diante, os bancos deixaram de poder vender créditos à habitação associando-lhes produtos com risco.

Depósitos estruturados A venda associada de depósitos e de produtos financeiros que não garantam o capital investido a todo o tempo passou a ser proibida.

Como estão os bancos a adaptar-se às novas regras

CGD O atual quadro legal apresenta uma elevada robustez, porque incide sobre todas as atividades orientadas para o investidor e porque está harmonizado em todos os países da UE. Dos 5162 trabalhadores identificados para receber formação já foram certificados 98%. A política de remuneração foi concebida de forma a não criar conflitos de interesses. No caso de ser atribuída uma remuneração variável, cumprirá as disposições legais e regulamentares.

BCP Já receberam formação e foram certificados cerca de 5000 trabalhadores.

Santander As novas regras são um passo importante na proteção dos investidores. Não eliminam por completo casos como o dos lesados do BES, mas ajudam a evitar muitas das situações. Mais de 4000 trabalhadores do banco tiveram formação, com um grau de aproveitamento superior a 90%. O banco não atribui incentivos por venda de produtos, mas dá prémios pela performance às áreas e aos respetivos funcionários, tanto nas áreas comerciais como nas outras.

BPI Mais de 3000 trabalhadores receberam formação, o que corresponde a 65% do efetivo do banco.

Novo Banco Receberam formação com sucesso, tendo sido certificados 2923 trabalhadores, num investimento que ascendeu a €180 mil.

Crédito Agrícola Salienta a classificação dos investidores por categorias, a identificação e aprovação do mercado-alvo de produção e distribuição pelos intermediários financeiros, assim como a necessidade de prevenção de políticas remuneratórias que desincentivem a venda de produtos desadequados às características dos investidores. A legislação mitiga casos como o dos lesados do BES, mas não os erradica. É indispensável uma atuação mais pró-ativa dos reguladores junto dos intermediários financeiros que apresentem maior risco. Dos 2500 colaboradores identificados, 2151 já estão certificados. O custo total desta ação ascendeu a €232 mil. A avaliação de desempenho e remuneração variável dos trabalhadores não incentiva a recomendação ou venda a um cliente de um qualquer produto em detrimento do interesse e necessidades do cliente.

Caixa Económica Montepio Geral O maior poder de intervenção dos supervisores em produtos financeiros é um aspeto inovador que faltava no anterior regime. A nova legislação não é garantia de uma mais efetiva proteção dos investidores. Tudo dependerá dos comportamentos dos intermediários financeiros, da formação profissional e ética dos seus colaboradores e da melhoria dos níveis de educação financeira dos investidores. Ao todo receberam formação 2060 colaboradores, num investimento que ascendeu a €120 mil. O banco não aplica qualquer sistema de incentivos que se traduza em prémios pecuniários ligados diretamente à venda de produtos financeiros complexos.

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