UMA DÉCADA DE CRISE BANCA
RISCOS Crédito malparado, exposição à dívida pública, bolhas de crédito à vista e reestruturações dolorosas
Sector financeiro ainda está coxo
Textos Isabel Vicente e Jorge Nascimento Rodrigues
Dez anos depois da crise financeira, a banca europeia está melhor? Sim, mas... diz o Fundo Monetário Internacional (FMI) na sua recente análise à situação da zona euro, publicada em julho, olhando para quatro indicadores mais sensíveis a problemas graves no horizonte — a rendibilidade dos capitais, o peso do crédito malparado, a exposição à dívida pública do país e os sinais de ‘bolha’. Portugal seguiu a tendência positiva, mas também não é um oásis, apesar de estar na moda.
Os banqueiros portugueses ouvidos pelo Expresso coincidem na avaliação positiva da evolução do sector que dirigem. “A banca está francamente mais robusta. A transformação dos modelos de negócio dos bancos que sobreviveram, quer ao nível de liquidez quer ao nível de eficiência, foi notável e compara bem com os principais bancos da zona euro”, sublinha Miguel Maya, presidente do BCP. Reforçando a ideia, António Vieira Monteiro, presidente do Santander, afirma estar “mais otimista” quanto à evolução do sector, mas teme que as coisas lá fora — desde o ‘Brexit’ até à situação no comércio mundial — atrapalhem. “Estamos sempre bastante dependentes da realidade externa e da intensidade que eventuais problemas possam vir a assumir.” Já António Ramalho, presidente do Novo Banco, uma das ‘criações’ da crise bancária depois da resolução do BES, afirma: “Atrevo-me a dizer que a banca se preparou melhor para uma crise do que se preparou para o crescimento.”
Mas o rol de alertas em várias frentes segue-se, de imediato. Um ponto prévio é o facto de haver bancos que ainda têm rating de ‘lixo’. Paulo Macedo, presidente da CGD, alerta que “é importante que se tomem medidas para que os investidores internacionais reconheçam a robustez da banca nacional quando há vários bancos em Portugal que ainda não são considerados em grau de investimento”. Já Ramalho adverte: “Falta a concretização de um verdadeiro programa de rentabilidade.” Maya é mais incisivo: “Não se aprendeu grande coisa, o que aumenta substancialmente o risco de se repetirem erros do passado”, acrescentando que os perigos continuam a ser os mesmos: orientação para o curto prazo; impunidade relativamente a fraudes; e evitar tomar decisões sobre heranças do passado.
Licínio Pina, presidente da Caixa Central de Crédito Agrícola (CA), avisa que há “no horizonte indícios de dificuldades financeiras a nível de clientes particulares sobre-endividados que, numa fase de taxas Euribor acima de zero, poderão ter dificuldade em cumprir com as suas obrigações, e com isso aumentar o nível de crédito malparado na banca”. Por seu turno, Macedo receia que “a banca fique só com depósitos, que têm grandes exigências de capital e regulação, mas sem meios de pagamento, que são um negócio interessante e rentável”. O que leva Vieira Monteiro a sublinhar que falta “estender a regulação a novas entidades globais que desenvolvem atividades financeiras num quadro concorrencial privilegiado face aos bancos”. Estão a falar das fintech. O Expresso questionou, também, os presidentes do BPI e da Caixa Económica Montepio Geral, mas não obteve respostas.
Rentabilidade portuguesa melhorou
Mas vamos aos números. A rentabilidade do sector bancário da zona euro regressou a níveis aceitáveis, depois de ter estado em 2% em 2011 (ver gráfico). No final do primeiro trimestre do ano em curso subiu para 6,8%, mas continua a estar longe do que era antes da crise e muito distante dos 11,2% nos Estados Unidos. Entre 1996 e 2007, a rentabilidade da banca na zona euro esteve muito perto ou acima de 9%, com picos em 2006 e 2007, nos anos da ‘bolha’, acima de 15%. A banca portuguesa saltou de rentabilidades negativas de 19,4% em 2014 e 7,3% ainda há dois anos para 11,33% (positivos) no final do primeiro trimestre do ano corrente. No final de 2017 estava nos 3,4%. Ainda lhe falta, contudo, um pedaço para chegar aos 17,7% de há 11 anos.
O cancro do malparado na zona euro desceu de 6,5% da carteira de crédito em 2014 para 3,9% em março passado, mas o FMI avisa que, pelas suas projeções, ainda estará em 3,5% daqui a oito anos, o que compara pessimamente com o rácio nos EUA, que está em 1,1%. A banca portuguesa fez um esforço significativo na sua redução. Ainda em 2016, o rácio era de 20% e caiu para 12,7% em março passado. Depois de ter atingido quase €50 mil milhões em 2015, desceu para menos de €35 mil milhões no final do primeiro trimestre de 2018. Desde o final do ano passado já reduziu mais €2,4 mil milhões. Mesmo assim, continua a estar no clube dos piores em percentagem do PIB (ver tabela). O presidente da CA considera que os níveis ainda poderiam estar muito mais baixos, se não fosse o problema “da ineficiência da justiça portuguesa”. A exposição da banca à dívida pública do seu país continua a ser um problema para alguns membros do euro. Nove países continuavam a ter, no final de 2017, mais de 50% da sua carteira de títulos públicos concentrada na dívida pública local. Com mais de 70% encontramos Portugal, Espanha, Alemanha e França. O temor de novas bolhas regressou em alguns países do euro. O European Systemic Risk Board, criado em 2010 para vigiar o sistema financeiro da União Europeia, apontou a dedo a Áustria, Bélgica, Finlândia, Luxemburgo e Holanda como estando a criar, de novo, um cocktail perigoso — um casamento de uma bolha imobiliária com um disparo no endividamento das famílias. O FMI, por seu lado, avisou no mês passado que, no Luxemburgo, em algumas cidades alemãs e em algumas áreas de Portugal e da Holanda, se está a gerar um disparo na valorização dos preços dos imóveis para habitação e comércio.
Uma década de desgaste
O esforço de “ajustamento” no sector bancário de países mais frágeis, como Portugal, teve um custo estrutural. A par das heranças do passado de que continua refém, a banca portuguesa revela uma década de desgaste.
Viveu intensamente as duas grandes fases da crise. Logo no início, em 2008 e 2009, com os casos do Banco Português de Negócios e do Banco Privado Português, que entraram no rol das primeiras crises bancárias que assolaram principalmente os EUA (com o estoiro surpreendente do Lehman Brothers em setembro de 2008), Reino Unido (com os casos emblemáticos do Lloyds e do Royal Bank of Scotland), Alemanha (o Hypo), França (Dexia) e Benelux (Fortis). Depois a mistura das crises bancárias com a crise da dívida soberana desde 2010 e uma estreia do sector bancário português com a resolução do BES em 2014, repetindo a proeza em moldes diferentes, dois anos mais tarde, com o Banif.
A BANCA PORTUGUESA FOI OBRIGADA A VENDER OPERAÇÕES NO EXTERIOR, a ALIENAR PARTICIPAÇÕES E A ENCOLHER O NEGÓCIO
O custo para o orçamento público das duas fases das crises bancárias foi imenso. Nos EUA exigiu 245 mil milhões de dólares (€170 mil milhões ao câmbio médio da época) e no Reino Unido a injeção foi equivalente a €13,5 mil milhões em 2008 e 2009. Numa década, o impacto orçamental na zona euro foi de €219 mil milhões (ver tabela). Portugal fez o maior esforço em 2014 e a Itália, ainda no ano passado, teve de injetar €7,4 mil milhões.
Noutra dimensão, o Banco Central Europeu (BCE) funcionou como um verdadeiro mecanismo de resgate. Em 2012, as operações de financiamento de prazo alargado da banca da zona euro atingiram um pico de mais de €1 bilião. Depois, essa seringa foi diminuindo a injeção, e, a partir de 2015, foi a vez de o BCE intervir em força no mercado secundário da dívida pública, comprando aos bancos do eurossistema títulos que tinham em carteira. A operação passou de €217 mil milhões em 2014 para 2,6 biliões no final de junho passado. Multiplicou por 12. No caso de Portugal, a seringa do financiamento de prazo alargado à banca chegou a um pico de mais de €53 mil milhões em 2012 para descer para menos de €20 mil milhões agora. Nas compras de dívida, o Banco de Portugal tem em carteira €28 mil milhões de Títulos do Tesouro nacional.
Por força da recapitalização a que foi forçada para cumprir com os requisitos exigidos pelos supervisores, a banca nacional foi obrigada a vender operações no exterior, a alienar participações e a encolher o negócio, nomeadamente travando a concessão de crédito, e a ficar cada vez mais nas mãos de acionistas estrangeiros. Tudo sob o comando da Direção-Geral da Concorrência Europeia (DGComp). A banca portuguesa vive na pele um paradoxo. A estratégia europeia diz que é preciso mais diversificação dos riscos, mais internacionalização, mas Bruxelas não perde uma oportunidade para colocar a banca portuguesa num gueto.
PORTUGAL JÁ GASTOU MAIS DE 18 MIL MILHÕES NA BANCA O país regista, na zona euro, o terceiro maior esforço orçamental em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) no que respeita à intervenção no sector financeiro desde 2007. Até ao ano passado, a intervenção na banca portuguesa já custou €17,5 mil milhões, cerca de 9% do PIB, o que não tem ainda em conta, por exemplo, a transferência que o Fundo de Resolução fez para o Novo Banco de quase €800 milhões já em 2018 de modo a compensar perdas em ativos. A intervenção global, à escala europeia, entre 2007 e 2017 custou €240,3 mil milhões na União Europeia e €219,3 mil milhões na zona euro. Os impactos orçamentais mais elevados em valor registaram-se em Espanha e Irlanda, acima de €45 mil milhões. E o esforço em função do PIB foi liderado por Irlanda e Grécia. João Silvestre
Regulação apertou. Eficácia ainda por provar
Escrutínio sobre os bancos europeus intensificou-se. Criação do Mecanismo Único de Supervisão foi uma das principais mudanças
Nos últimos 10 anos muita coisa mudou no quadro institucional que molda o mundo da banca europeia. Em especial o olhar mais atento dos supervisores nacionais e europeus sobre um negócio que deixou muitos investidores e clientes em maus lençóis. Impunha-se obrigar os bancos a ter sistemas de monitorização de risco eficientes e almofadas de capital capazes de aguentar novas crises quando estas surgirem. Era indispensável impor regras mais apertadas e de competência para quem faz parte dos conselhos de administração das instituições financeiras e uniformizar as regras a nível europeu. A alteração mais marcante foi a criação, no final de 2014, do Mecanismo Único de Supervisão, a que se seguiu, mais tarde, a diretiva sobre resoluções bancárias que desde o início de 2016 vigora em todos os países, conhecida pelo acrónimo em inglês DDRB. Muitas outras regras e recomendações surgiram a nível nacional e europeu que funcionam como campainhas de alerta — a contabilização dos créditos em risco mas não ainda em incumprimento (conhecida pelo acrónimo inglês NPE), o malparado, e o financiamento aos particulares para compra de casa. Os presidentes do BCP, Novo Banco e Crédito Agrícola atestam que a supervisão “mudou muito” e se tornou “mais intrusiva” (ver declarações em baixo).
De 2007 a 2017 foram muitas as turbulências e os governos e supervisores tiveram de apagar os incêndios da forma como podiam. Já havia regras de boa governação mas não chegaram, havia regras que impunham mínimos de capital e de liquidez que também falharam e mesmo assim houve práticas de má gestão quanto a requisitos exigidos que apanharam os supervisores distraídos. Pode mesmo dizer-se que dos Estados Unidos da América à Europa os responsáveis pela supervisão e regulação confiaram em excesso nos banqueiros e nos vários mecanismos internos e externos (auditores) que havia.
No pico da crise financeira, entre 2008 e 2010, foram intervencionadas 215 instituições financeiras na Europa, segundo a Direção-Geral da Concorrência Europeia (DG Comp), que receberam, entre injeções de capital e garantias de Estado, à volta de €575 mil milhões. Portugal registou dois momentos mais marcantes no filme destes dez anos: a nacionalização do BPN em novembro de 2008 e a resolução do BES em agosto de 2014.
O QUE DIZEM OS BANQUEIROS SOBRE A SUPERVISÃO
“A intrusão regulatória é uma realidade diária e sem paralelo. (...) se for demasiado onerosa, dificulta a recuperação dos bancos, se for demasiado burocrática retira agilidade”
Paulo Macedo Presidente da CGD
“Está mais presente, mais atuante, mais cara, com uma carga burocrática imensa para o cumprimento da regulação. O aspeto positivo é uma maior atuação. O fator negativo são maiores custos e burocracia”
Licínio Pina> Presidente do Crédito Agrícola
“Tem havido um quadro regulatório muito apertado que se pode revelar por vezes algo excessivo para os bancos cumpridores”
António Vieira Monteiro Presidente do Santander Portugal
“Em 10 anos, a supervisão passou de um árbitro distante para um jogador interveniente. Trouxe vantagens imediatas, mas implicará um escrutínio mais exigente no futuro”
António Ramalho Presidente do Novo Banco
“Evoluiu-se muito após a criação do Mecanismo Único de Supervisão em 2014”
Miguel Maya Presidente do BCP