PERFIL
A FÓRMULA SECRETA DE ÁLVARO SOBRINHO
Só começou a trabalhar com 28 anos, mas aos 39 foi convidado para CEO de um banco português em Luanda e em pouco tempo, aos 50, quando foi forçado a sair do BESA, já era multimilionário. A história do angolano Álvaro Sobrinho e do seu extraordinário enriquecimento pessoal
texto micael pereira*
Como num derrame de petróleo no mar, quando, já muito tempo depois do acidente, o crude ainda insiste em colar-se a tudo o que alcança, também no universo das investigações judiciais há nomes que continuam a dar à costa, mesmo quando parecia já não haver nada de novo a que se pudessem agarrar.
Há duas semanas, a 15 de fevereiro, na Torre 3 do complexo das Amoreiras, no topo de uma das colinas de Lisboa, a Polícia Judiciária entrou num escritório do nono piso com um mandado de buscas original. Estavam ali porque havia um advogado sob vigilância policial que fora detetado a ir muitas vezes àquelas instalações, usando-as como local de trabalho.
Antigo presidente da Federação Portuguesa de Futebol no final da década de 80 e atualmente com 80 anos, o advogado João Rodrigues tinha sido constituído arguido pouco antes das buscas, no final de janeiro, quando aterrava em Portugal vindo de Angola, por suspeitas de branqueamento de capitais, ao ter alegadamente ajudado a fazer chegar dinheiro a um juiz do Tribunal da Relação de Lisboa, Rui Rangel, a troco de acórdãos favoráveis, naquele que é até agora o processo-crime mais mediático de 2018, a ‘Operação Lex’.
Porque é que as licenças para as suas sociedades financeiras demoraram apenas 15 minutos a serem concedidas nas Maurícias? Mais dúvidas levam a mais questões
João Rodrigues é amigo de Luís Filipe Vieira e de José Veiga, o atual presidente e um antigo diretor do Benfica, também constituídos arguidos neste novo caso, mas o escritório que foi alvo de buscas no 9º piso da Torre 3 das Amoreiras é de um homem do clube rival, o Sporting, aliás, do seu maior acionista individual, Álvaro Sobrinho, um angolano formado em matemática que ocupou o cargo de presidente executivo (CEO) do Banco Espírito Santo de Angola (BESA) durante quase 12 anos e se tornou, pelo caminho, multimilionário.
Sem que haja ainda qualquer prova direta a demonstrar que Sobrinho tenha pago a Rangel, a ‘Operação Lex’ vem alargar o espectro de suspeição sobre o banqueiro angolano, porque João Rodrigues tem trabalhado para ele, agindo em seu nome. E Rangel, o homem no epicentro da intriga criminal, decidiu a seu favor num acórdão de novembro de 2015 que anulou a decisão do juiz de instrução Carlos Alexandre de arrestar 80 milhões de euros em imóveis e contas bancárias que Sobrinho e o seu clã, a família Madaleno, foram acumulando em Portugal na última década — e em que se referia aos resultados até aí obtidos pela investigação do Ministério Público como “uma mão cheia de nada”.
Existem modelos matemáticos para estudar o ritmo e a extensão crescente de uma mancha de óleo a partir do momento em que há um derrame. No caso de Álvaro Sobrinho, a mancha de suspeição começou a expandir-se a partir de Portugal.
Desde 2010 que tem estado debaixo de olho do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Começou com a circunstância de três milhões de euros oriundos de um desvio de uma conta que o tesouro angolano possuía no BES Londres terem ido parar a uma conta sua em Lisboa. Depois, um outro processo-crime foi aberto em 2011 quando comprou seis apartamentos de luxo no Estoril-Sol Residence, em Cascais, com dez milhões de euros pagos a pronto, evoluindo mais tarde, em 2014, para algo muito maior, a seguir ao Expresso ter revelado a existência de um buraco de 5,7 mil milhões de dólares no BESA em créditos malparados e em transferências e levantamentos de dinheiro irregulares, feitos sem justificação, e com pelo menos 182 milhões de dólares a terem como beneficiários Sobrinho e a família.
O escândalo do BESA e o colapso, dois meses depois, da sua casa-mãe em Lisboa, o BES, em grande medida devido às perdas de três mil milhões de euros infligidas pelo buraco da subsidiária em Luanda, depressa entraram nos autos do Ministério Público.
A par do alargamento do objeto de investigação no processo-crime 244/11 que já corria no DCIAP a propósito dos indícios de lavagem de dinheiro nos apartamentos do Estoril-Sol, um outro inquérito foi aberto na Suíça, onde um procurador federal veio a ordenar o arresto no início de 2015 de 150 milhões de euros em contas bancárias, com base nas mesmas suspeitas levantadas em Lisboa, por indícios de branqueamento de capitais, abuso de confiança e burla qualificada. De acordo com os procuradores quer em Portugal quer na Suíça, Sobrinho teria desviado mais de 500 milhões de dólares do BESA, ao aprovar deliberadamente empréstimos avultados e sem garantias a entidades desconhecidas que acabaram por canalizar parte do dinheiro para si e para o seu círculo próximo.
Em 2017, na costa oriental de África, as Ilhas Maurícias estendiam essa mancha de suspeição até mais longe. O facto de uma empresa criada por Álvaro Sobrinho em Port Louis, a ASA Asset Management, ter obtido de forma célere uma licença para operar como entidade financeira no mercado nacional levou o ministro da Boa Governação e dos Assuntos Financeiros a anunciar um inquérito para saber se as regras tinham sido cumpridas nessa atribuição. O caso ficou a cargo da Unidade de Inteligência Financeira e de uma comissão independente anticorrupção.
A partir daí tem sido uma bola de neve. Não só pela coincidência de a Presidente da República das Ilhas Maurícias, Ameenah Gurib-Fakim, ser vicechairman de uma organização não-governamental fundada por Sobrinho, mas também pelos sinais exteriores de riqueza que importou para o país.
“Era uma família muito modesta, que toda a gente conhecia no Bairro Operário”, recorda Mário Torres, um amigo dos Madalenos desde a década de 50
Além de ter incorporado duas sociedades financeiras, que constituem o ASA Group, e de ter aberto uma sucursal da sua ONG, o The Planet Earth Institute, cuja sede é em Londres, no Reino Unido, o multimilionário comprou quatro carros todo o terreno da Range Rover e três Jaguares no valor de um milhão de euros, de acordo com o jornal francês “L’Express”.
As questões multiplicaram-se na imprensa: porque é que as licenças para as suas sociedades financeiras demoraram apenas 15 minutos a ser concedidas em outubro de 2015, ao mesmo tempo que muitos bancos se recusaram a tê-lo como cliente? Quem é que avaliou a idoneidade do investidor angolano no processo de atribuição das licenças? Como numa mancha, mais dúvidas levam a mais questões.
Para encontrar respostas num esquema complexo e cheio de variáveis, é mais fácil, como na matemática, partir a realidade em pequenos pedaços decifráveis, até eles se resumirem a perguntas simples. Eis a mais simples delas todas: como é que Álvaro Sobrinho se tornou rico?
Começar tarde mas bem
Álvaro de Oliveira Madaleno Sobrinho tinha pouco mais de um ano quando a luta pela independência nas ex-colónias portuguesas eclodiu na primeira das suas frentes, em 1961. Passou toda a infância e adolescência em Luanda, onde assistiu ao nascimento de um novo país e à chegada do MPLA ao poder.
Quer o pai quer a mãe tinham ascendência portuguesa do lado paterno. O primeiro Madaleno chegou a Luanda ainda no século XIX, vindo de Lisboa. Instalou-se como comerciante e casou com uma jovem negra de nome Madalena Maxi, oriunda de Catete, uma cidade a 60 quilómetros da capital, onde nasceu Agostinho Neto, o primeiro Presidente angolano. Esse antepassado lisboeta chamava-se Joaquim Ferreira Madaleno e o seu filho, Carlos Ferreira Madaleno, teve, por sua vez, um filho também de nome Carlos, que veio a ser o pai de Álvaro.
Do lado da mãe, o avô de Sobrinho veio de São João da Madeira, no Norte de Portugal, e tornou-se comerciante em Sambizanga, um dos musseques mais antigos da cidade, bairro de gente pobre junto à linha de água, quase no final da Baía de Luanda, em frente à ilha do Cabo. Joaquim Santos e Silva casou com Domingas Pedro Andrade, doméstica, e teve uma filha de nome Generosa, que deu à luz Álvaro e mais três crianças, Sílvio, Emanuel e Lígia.
Os Madaleno viviam no Bairro Operário, uma zona que vinha a ser ocupada por famílias crioulas expulsas do centro da cidade, com a pressão demográfica imposta por vagas de novos colonos vindos da metrópole e cuja imigração intensiva fazia parte do esforço de guerra de Portugal para consolidar a ocupação civil da colónia ao mesmo tempo que os militares faziam incursões no mato. “Era uma família muito modesta, que toda a gente conhecia no Bairro Operário”, recorda Mário Torres, um amigo dos Madalenos desde a década de 50.
LIGAÇÕES
Carlos Ferreira Madaleno era funcionário da Câmara de Luanda e o seu filho Carlos Oliveira Madaleno seguiu-lhe o exemplo. Foi colocado como fiscal no Mercado Municipal de Kinaxixi, um vasto edifício de linhas retas, exemplo da arquitetura colonial portuguesa moderna, construído no início da década de 50, ao lado do emblemático prédio da cerveja Cuca. Após a independência, em 1975, Carlos não abandonou o local de trabalho, mas passou de fiscal a comerciante e abriu dois talhos e um café, a pastelaria Maravilha, que só viria a fechar em 2015, com a demolição do mercado. Mais tarde, em 1990, a família adquiriria um restaurante com bar e uma sala de bowling, cuja atividade ainda iria durar até 2003.
Álvaro Sobrinho foi viver para Lisboa aos 17 anos. Não se sabe muito sobre esse período, a não ser o pouco que o próprio banqueiro admite contar ao Expresso, quando confrontado com o facto de ter demorado tanto tempo a prosseguir os seus estudos superiores: “Eu e o Sílvio fomos os primeiros a ir para Portugal, os outros meus irmãos foram mais tarde. Entre 1979 e 1984, sem nunca ter trabalhado e vivendo à custa do [meu] pai, foi o período em que me apliquei para poder ingressar na universidade”.
Entrou na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa, no Monte da Caparica, aos 22 anos para um curso com um nome um tanto ou quanto esotérico, Matemática — Ciências Atuariais, dedicado a formar técnicos capazes de analisar as necessidades financeiras associadas a fundos de pensões e a sistemas de seguros, para que depois os bancos e as seguradoras possam prever quanto dinheiro é que vão ter de gerar para garantir que esses modelos de retribuição sejam sustentáveis. De acordo com informações prestadas pela FCT, Sobrinho terminou o curso apenas em 1990, com a média final de 12 valores.
Tinha 28 anos e notas modestas, longe do currículo ideal para uma entrada sólida no mercado de trabalho. O curto e vago currículo que chegou a incluir nos relatórios do BESA mencionavam uma breve passagem pela seguradora Mundial Confiança, mas não referem quando é que isso aconteceu. Nem quanto tempo durou ou o que fez por lá.
A teoria das probabilidades inclui sempre as hipóteses mais remotas. Os bancos estavam em franco crescimento em Portugal, que entrara para a então Comunidade Económica Europeia (CEE) quatro anos antes. Iam às faculdades buscar gente. O jovem recém-licenciado conseguiu sobreviver a uma primeira triagem para uma vaga no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), detido na altura pelo Estado, e na entrevista seguinte acabou por ser aprovado. Vinha com uma recomendação de um professor da FCT que trabalhava numa sociedade gestora de fundos de pensões, recorda uma fonte do banco. “Era humilde, tímido mas ambicioso. Parecia conhecer algo do mercado e passou nos testes que lhe fizeram.”
Foi contratado como técnico atuarial na Multipensões, uma empresa acabada de criar pelo BESCL em 1990, e que tinha como missão gerir o fundo de pensões do próprio banco. Nessa época, o BESCL suportava a 100% o pagamento das reformas dos seus funcionários. Fazia isso com as receitas da atividade bancária e, tendo em conta que bastava acumular 35 anos de carreira para poder passar à reforma, os custos tenderiam a tornar-se insustentáveis quando a maioria do pessoal do banco atingisse esse limite. Por volta de 2017 a pressão sobre as contas iria dar um salto e era preciso antecipar.
Os antigos colegas contam uma versão diferente: primeiro começou a trabalhar no banco e só a seguir comprou uma mota usada, de 125 centímetros cúbicos
Sobrinho tornou-se o único técnico responsável por planear a avaliação das responsabilidades do banco para o caso das pensões, calculando quais seriam as reservas matemáticas para fazer face a esse encargo futuro. Era obrigatório entregar relatórios de avaliações anuais atualizadas ao Banco de Portugal e era ele que os fazia.
Portugal atravessava uma fase de enriquecimento rápido. As obras públicas estavam em grande expansão e muitos negócios foram sendo abertos. Empresas que tinham sido nacionalizadas em 1975 voltavam a ser privadas. Com a reprivatização do BESCL em 1991, o BES, Banco Espírito Santo, estava de novo sob o controlo da família fundadora, a Multipensões deu lugar à ESAF, Espírito Santo Activos Financeiros, com duas áreas de atividade principal: os fundos de investimento mobiliário e imobiliário e os fundos de pensões.
Sobrinho continuou a fazer o mesmo que fazia exatamente no mesmo sítio: um edifício na Avenida Pedro Álvares Cabral, junto ao Largo do Rato, em Lisboa. Foi logo nessa época, em 1992, numa reunião de análise do orçamento do BES, que, segundo o próprio conta, conheceu Ricardo Salgado, escolhido para presidente do banco em representação da família Espírito Santo.
Nesse clima de furor e otimismo em Lisboa, nada faria supor que o atuário angolano viesse de uma família abastada, de acordo com pessoas que se cruzaram com ele no banco. Muitos anos depois, no final de 2014 e perante uma comissão de inquérito parlamentar ao colapso do BES, o banqueiro contou que fazia parte “de uma família angolana com posses” e que quando foi estudar para Portugal não foi como bolseiro: “Os meus pais compraram-me uma casa em Cascais, compraram-me carro e eu vim para aqui. Já na altura tinha essa posse.”
Os antigos colegas contam uma versão diferente: primeiro começou a trabalhar no banco e só a seguir comprou uma mota usada, de 125 centímetros cúbicos. Depois adquiriu um Opel Kadett e mais tarde um Volkswagen Golf, ambos em segunda mão. “Nunca o vi com um carro novo”, recorda um deles. “Era claramente uma pessoa da classe média.”
A casa em Cascais era um apartamento na freguesia de Carcavelos, longe da beira-mar, numa área mais recuada. “Deveria ter um salário de nível 8, 9 ou 10, o que rondaria entre os 750 e os 1000 euros por mês, um ordenado médio naquela altura, nada de especial”, diz uma fonte do antigo BES. Entretanto, casara-se com uma portuguesa, Ana Seixas Afonso Dias, enfermeira no Serviço Nacional de Saúde, colocada no Centro de Saúde de Sintra, com quem teve dois filhos, Gonçalo, que nasceu ainda em 1989, e Joana, nascida em 1993.
No final da década de 90 foi promovido a subdiretor de marketing da ESAF, embora um colega desse tempo sublinhe que o nome do cargo pouco ou nada tivesse a ver com a função: “Era só uma forma de ter acesso a um certo estatuto. Mas o pouco que faziam era o Sobrinho que fazia. Era simpático, compenetrado e trabalhador. O que ele andava a fazer era tentar cativar os diretores do BES a investirem os recursos dos clientes do banco nos fundos da ESAF.” O seu chefe direto, o diretor de marketing da ESAF, era um primo direito do presidente do BES, José Manuel Salgado.
Quando foi enviado a Luanda para ajudar o braço não financeiro do Grupo Espírito Santo (GES) em África a gerir o fundo de pensões dos ex-combatentes das Forças Armadas, em 2000, Álvaro Sobrinho conheceu Hélder Bataglia, um empresário português que cresceu em Benguela e que em 1993 fundara a Escom para o GES, ficando como presidente e acionista minoritário da empresa. Rapidamente a relação profissional transformou-se em amizade.
Quando, décadas depois, em janeiro de 2017, Hélder Bataglia foi interrogado como arguido na ‘Operação Marquês’, o inquérito-crime sobre pagamentos corruptos do GES ao primeiro-ministro José Sócrates, em que acabou por ser acusado pelo seu papel de intermediário no esquema de lavagem de dinheiro, o presidente da Escom viria a contar que na verdade foi Salgado quem lhe sugeriu recorrer ao subdiretor da ESAF: “Fizemos até um almoço e foi constituído o fundo [de pensões das Forças Armadas angolanas], mas eu precisava de um atuário. E o dr. Ricardo Salgado disse: ‘Tenho aí um rapaz que nos faz o nosso fundo de pensões, que é uma pessoa muito inteligente, que é um matemático.’”
Durante o interrogatório feito pelo procurador Rosário Teixeira e reproduzido no livro “A Conspiração dos Poderosos”, do jornalista Luís Rosa, Bataglia contou como ficou surpreendido com a performance do matemático indicado pelo presidente do BES: “De tal maneira, que quando íamos às seguradoras as pessoas ouviam-no como ouviam uma prédica, porque era muito bom naquilo. Cheguei a Lisboa e disse ao dr. Ricardo Salgado: ‘Se algum dia fizermos um banco, não te esqueças aqui do Álvaro Sobrinho.’”
Sobrinho diz que a sua família “nunca foi próxima de José Eduardo dos Santos”, admitindo apenas que “alguns dos seus membros conhecem e relacionam-se com familiares do antigo Presidente”
O próprio Ricardo Salgado, durante um dos depoimentos que prestou como arguido nos processos-crimes abertos sobre o colapso do BES e do GES e ainda em curso no DCIAP, também ele citado no livro “A Conspiração dos Poderosos”, descreveria o atuário da ESAF como “um homem de uma natureza absolutamente impecável” e “um lápis afiado”, “extremamente exigente e rigoroso”.
Em 2001, na fase final da guerra civil que opunha desde a independência de Angola os antigos movimentos de libertação da UNITA e do MPLA, Hélder Bataglia aproveitou a reputação que tinha acumulado junto do Presidente José Eduardo dos Santos para obter uma licença bancária para a família Espírito Santo.
A Escom tinha investido nos anos mais difíceis de Angola, quando o fim da Guerra Fria determinou a retirada da Rússia como o grande financiador e fornecedor logístico do MPLA, e chegara a hora de dar um salto. Para isso faltava ter um banco.
O BES tinha aberto em 1998 uma representação em Luanda e convidara para liderar esse escritório o angolano Carlos Silva, um advogado que estudara na Faculdade de Direito de Lisboa e estabelecera o seu próprio escritório em 1990. Quatro anos mais novo que Álvaro Sobrinho, Carlos Silva parecia ser a escolha óbvia para liderar um banco criado de raiz em Angola pelo grupo. Mas não foi isso que aconteceu.
Em Lisboa, o convite feito por Ricardo Salgado a Álvaro Sobrinho para assumir o cargo de CEO em Luanda cedo se espalhou pelos corredores e foi encarado com surpresa pelos quadros superiores do BES. “Era um tipo insignificante na estrutura do banco”, lembra um desses quadros. “Toda a gente imaginou que essa escolha só poderia dever-se ao facto de a família dele ser próxima de José Eduardo dos Santos. Que outra explicação poderia haver?”
Um outro elemento da direção do BES admite que Sobrinho, embora trabalhasse numa empresa detida pelo banco, “não tinha qualquer experiência bancária” que justificasse uma nomeação desse género. “Nunca tinha passado pelo balcão de um banco, nunca estivera envolvido em concessões de crédito, em gestão de carteiras de clientes, em aplicações de investimentos, em nada do que diz respeito à atividade bancária tradicional.”
Apesar de Salgado referir-se a Sobrinho como fazendo “parte de uma família angolana conhecida”, o antigo atuário, olhando para trás, reconhece ao Expresso que a sua família “nunca foi próxima de José Eduardo dos Santos”, admitindo apenas que “alguns dos seus membros conhecem e relacionam-se com familiares do antigo Presidente” — um facto confirmado por uma investigação desenvolvida nos últimos meses pelo Expresso mas que remete essa relação para um período muito posterior, quando em junho de 2011 o banqueiro ofereceu a Tchizé dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, 15% de uma sociedade sua e dos seus irmãos, a Marina Baía.
Álvaro Sobrinho aceitou o desafio lançado por Salgado e no verão de 2001 ele e a família mudaram-se para Luanda. A 27 de abril desse ano, o coordenador sub-regional de Saúde de Lisboa aprovou a concessão de uma “licença sem vencimento de longa duração”, a contar a partir do dia 1 de julho, pedida por Ana Seixas Afonso Dias Madaleno, enfermeira graduada do Centro de Saúde de Sintra.
A 11 de agosto, saía pela primeira vez na imprensa portuguesa, uma referência ao seu nome, a propósito de uma notícia sobre a abertura da subsidiária do BES em Luanda. “Pretendemos dotar as agências com rigor e competência, direcionadas para as necessidades específicas dos clientes, mas a nossa cobertura geográfica poderá ser ajustada a outras províncias em função do mercado e da estratégia económica do Governo angolano”, dizia Álvaro Sobrinho ao Expresso. “Defenderemos uma postura pedagógica para promover e ajudar o sector financeiro a bancarizar os cidadãos angolanos”, prometia o recém-nomeado CEO do BESA, que arrancava nesse mesmo mês com um capital social de dez milhões de euros, 95% dos quais detidos pela casa-mãe em Lisboa.
Não começou sozinho. Além de Hélder Bataglia, o homem que obteve a licença, o novo banco angolano teve Carlos Silva como administrador executivo até o antigo advogado sair em 2005 para fundar a sua própria instituição, o Banco Privado Atlântico (BPA).
Em 2007, a subsidiária de Angola já tinha um peso de 36% na área internacional do grupo BES. Sobrinho dizia que Angola ia ser uma “plataforma giratória” do grupo BES para África
Durante os primeiros anos, o BESA só teve boa imprensa em Portugal. Em 2004, o Expresso voltava a escrever sobre o banco: “BESA está bem na classe média.” Um crescimento anual de 61% nos ativos líquidos era justificado por Sobrinho pelo modo como a instituição conseguia “transmitir uma imagem de confiança, qualidade, inovação e modernidade”.
Em 2006 era inaugurada uma nova sede, repartida por dois edifícios na baixa de Luanda em que foram investidos 20 milhões de euros. O BESA era descrito como o “único banco português que é dirigido por um angolano” e mostrava ser um caso de sucesso, com uma taxa de crescimento de 23% nesse ano e posicionando-se como o terceiro maior banco a operar em Angola, depois do BFA, controlado pelo português BPI, e do BAI, de capitais exclusivamente angolanos.
Com os números sempre a subir — 222 funcionários, mais de 6300 particulares e 1800 empresas como clientes em 2005 —, a subsidiária do BES em Luanda abrira entretanto a porta a parceiros locais e ofereceu 20% do capital social à Geni, uma empresa que tem entre os seus beneficiários Isabel dos Santos e é representada por Leopoldino Fragoso do Nascimento, conhecido como general Dino, um antigo chefe das comunicações da Presidência da República identificado pelo jornalista e ativista Rafael Marques de Morais como testa de ferro de José Eduardo dos Santos.
A concessão de crédito, no entanto, era ainda tímida. Em 2005 estavam contabilizados 113 milhões de euros em empréstimos atribuídos pelo BESA. Em abril de 2007, com uma nova divulgação de resultados, mais notícias boas: a subsidiária já tinha um peso de 36% na área internacional de todo o grupo BES e levava Sobrinho a dizer que Angola iria funcionar como uma “plataforma giratória da expansão financeira do grupo BES em África”. Meses depois, eram anunciados investimentos de mais de mil milhões de dólares pela Escom no país só para esse ano, a que se iriam juntar mais 900 milhões no ano seguinte. Tudo à custa de financiamento do banco. Os planos eram ambiciosos. Produção de bananas numa propriedade de 3 mil hectares, três barragens hidroeléctricas, uma fábrica de cerveja da Sagres, cinco hipermercados Pão de Açúcar.
Então, em 2008 a maré mudou. A eclosão da maior crise financeira mundial, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa, coincidia com uma decisão do Banco Nacional de Angola que teria fortes repercussões no futuro. A entidade reguladora emitia uma ordem que exigia um corte umbilical entre as bases de dados dos bancos em Angola e os sistemas informáticos das casas-mães desses bancos fora de Angola, impedindo a partir daí a partilha de informações com o BES sobre cada um dos clientes e cada um dos créditos concedidos pela sua subsidiária em Luanda. Era o início de um blackout. E de tudo o que veio com isso.
Incluir sempre a família
Em novembro de 2006, enquanto se mantinha a tempo inteiro como CEO do BESA, Álvaro Sobrinho criava a sua primeira empresa em Luanda, a Anjog — Participações e Serviços, Limitada. Como detentores oficiais das quotas da sociedade eram registados na escritura de constituição da empresa os seus dois filhos, Gonçalo, então com 17 anos, e Joana, com 13, cada um deles titular de 20% do capital social, e a mulher, Ana Madaleno, com os restantes 60%. A Anjog tinha como objeto um leque alargado de atividades: “consultoria, participações, investimentos, promoção de negócios, prestação de serviços, gestão de empreendimentos”, entre outros, podendo ainda “dedicar-se a qualquer outro ramo de serviços, comércio e indústria”. De acordo com os seus estatutos, dava para tudo.
Nos anos seguintes, a Anjog viria a adquirir dezenas de imóveis em Luanda, incluindo 20 armazéns no centro logístico de Talatona, alguns deles revendidos a empresas representadas pelos irmãos de Sobrinho, Sílvio e Emanuel.
Em outubro de 2013, já depois de o banqueiro ter abandonado o cargo de CEO, a Anjog seria identificada pela nova administração do BESA como tendo recebido internamente no banco transferências não justificadas de 108,8 milhões de dólares, feitas a partir de entidades cujos beneficiários eram oficialmente desconhecidos e que receberam 1,6 mil milhões de dólares em empréstimos não suportados em garantias. Depois da Anjog, Sobrinho abriu outras empresas: em 2009 a Marina Baía, através da qual ofereceu parceria a Tchizé dos Santos e que viria a receber 98 milhões de dólares do BESA; e, em 2010, a Ocean Private, beneficiada com 227 milhões do banco dos Espírito Santo.
O apagão informático imposto pelo Banco Nacional de Angola seguia a par com outra circunstância de relevo: a pessoa escolhida por Sobrinho para ser a diretora responsável no BESA pelo crédito a empresas era a sua cunhada Lígia Madaleno, casada com o seu irmão Emanuel, o mesmo que mais tarde o Ministério Público diria ter levantado do banco 22,4 milhões de dólares em dinheiro vivo. Dentro do banco, Lígia tinha autoridade para ordenar transferências, levantamentos e depósitos de grande dimensão.
Em novembro de 2006, enquanto se mantinha a tempo inteiro como CEO do BESA, Sobrinho criava a sua primeira empresa em Luanda, a Anjog, registada em nome dos filhos e da mulher
Como CEO do BESA, Álvaro Sobrinho auferia um bom salário — mas que não chegava a ser estratosférico. A remuneração total paga à administração, composta por quatro administradores executivos e mais três não executivos, foi de 2,8 milhões de dólares em 2010 e 3,8 milhões em 2011, de acordo com os relatórios e contas do banco. Tendo em conta que no decurso da investigação criminal no DCIAP foi detetado um pagamento mensal regular numa das contas pessoais de Sobrinho no montante de 70 mil dólares, o que multiplicando por 14 dá cerca de um milhão por ano, esse valor deve refletir o que seria o seu ordenado como CEO. O dinheiro, no entanto, parecia multiplicar-se.
Havia já um derrame em progressão. Em 2009 Sobrinho juntava-se a Hélder Bataglia e a três gestores de conta do banco UBS para fundar a Akoya, uma empresa de gestão de fortunas na Suíça. Michel Canals, um dos gestores vindo do UBS, já tinha antes disso o CEO do BESA como cliente. Ao todo, antes e depois da criação da Akoya, o banqueiro angolano abriu 20 contas no Credit Suisse e mais duas contas noutros bancos helvéticos, todas elas tituladas por companhias offshore incorporadas em vários paraísos fiscais.
Em maio de 2012, quando os três antigos gestores do UBS — Canals, Nicolas Figueiredo e José Pinto — foram detidos em Portugal no âmbito da ‘Operação Monte Branco’, um inquérito-crime sobre um complexo esquema de branqueamento de capitais que envolvia a Akoya, foram encontrados ficheiros que revelavam os números das contas bancárias cujo beneficiário efetivo era Álvaro Sobrinho e os montantes associados a cada uma delas. Ao todo, no final de abril de 2012, os seus depósitos na Suíça ascendiam a 180 milhões de euros.
Uma parte desse dinheiro, 57 milhões de dólares, tinha sido transferida diretamente para a Suíça a partir de uma das contas da Ocean Private no BESA, enquanto outros fluxos foram fazendo caminhos indiretos, através de levantamentos e depósitos em numerário que atingiram valores de várias dezenas de milhões de cada vez, a par com transferências em cascata entre empresas angolanas controladas pela família Madaleno, justificadas formalmente no banco como suprimentos — empréstimos concedidos por acionistas — e devoluções de suprimentos, até se perder o rasto do seu destino final.
Para Sobrinho, a boa imprensa tinha dado lugar à má imprensa um ano antes disso, com uma primeira notícia publicada pelo “Correio da Manhã” em junho de 2011 que expunha o seu envolvimento como suspeito no caso do desvio de dinheiro da conta do tesouro angolano no BES Londres. Meses depois, em novembro, vários jornais revelavam a história dos seis apartamentos comprados no Estoril-Sol. Mais de 3,5 milhões usados para pagar os imóveis vinham de uma companhia offshore das Ilhas Virgens Britânicas, a Grunberg Investments Ltd, titular de uma das contas suíças de Sobrinho geridas pela Akoya — e beneficiada com 63,5 milhões de transferências irregulares feitas pelo BESA.
A Grunberg das Ilhas Virgens Britânicas andava a alimentar uma sua subsidiária portuguesa, a Grunberg Portugal, desde dezembro de 2007. Além do Estoril-Sol, a offshore também canalizara 5,9 milhões de euros para a compra de um solar em Marco de Canaveses, a Casa da Quintã.
Uma outra dessas offshores com contas na Suíça, a Pineview Overseas, incorporada no Panamá e beneficiada com 37 milhões de dólares no esquema do BESA, tinha servido para o banqueiro comprar no início de 2009, através de uma empresa portuguesa, a Newshold, a maioria do capital de dois jornais em Lisboa, o semanário “Sol” e o diário “i”.
Em paralelo, os investimentos em outras empresas e em imóveis desdobravam-se e, com a sucessão de casos judiciais e a saída forçada como CEO do banco no final de 2012, tornavam-se visíveis. Assumiu-se como acionista maioritário da fábrica de conservas Bom Petisco, da gráfica Printer Portuguesa e do grupo Babel, que detém as editoras Verbo, Ulisseia, Ática, Arcádia e Guimarães, entre outras.
Os pais e os irmãos acompanhavam o ritmo de aquisições. Emanuel Madaleno está atualmente presente como administrador ou gerente de 18 sociedades em Portugal. O irmão Sílvio está presente em 13. Carlos Madaleno consta de outras duas empresas e a mulher, Ana, em mais cinco. Além disso, na ordem de arresto anulada pelo juiz Rui Rangel em 2015 constavam mais de 20 imóveis, entre apartamentos e moradias de luxo em Lisboa, Cascais, Porto e noutros lugares, adquiridos por Sobrinho e pelos seus familiares diretos na última década. A lista incluía uma casa na Quinta da Marinha comprada por 1,2 milhões em 2009 pelos seus pais — e que assim passaram a ter uma propriedade na zona mais nobre de Cascais.
Em Angola, onde o seu plano de influência nos media levou-o a adquirir em 2011 o “Novo Jornal”, comprado à Escom, Sobrinho fundava o seu próprio banco em 2013, para onde levou as pessoas que mais diretamente trabalhavam consigo, incluindo a sua cunhada Lígia, que se veio a tornar vice-presidente da nova instituição, e João Moita, um antigo quadro superior do BES Investimento em Lisboa que era o diretor responsável pelo departamento de risco no BESA — e que se assumiu entretanto como o novo CEO do Banco Valor.
Agora vive entre Lisboa, Luanda, Londres, Genebra e Port Louis, tem negócios no Quénia, na Etiópia e na Indonésia e quer obter uma licença bancária na África do Sul
O universo Espírito Santo ainda se estava a desmoronar e o matemático contratado pelo BES duas décadas antes já era, entretanto, um cidadão do mundo. Hoje, ao Expresso, revela que vive entre Lisboa, Luanda, Londres, Genebra e Port Louis e tem negócios no Quénia, na Etiópia e na Indonésia, além do Reino Unido, onde é fundador do The Planet Earth Institute e acionista da Hotpsur Energy. Na Suíça, depois do escândalo da Akoya, criou a Signet, uma nova empresa de gestão de fortunas com que gere os seus investimentos imobiliários. Na África do Sul está a montar uma joint venture para tentar abrir um banco de investimento. E depois há ainda as Ilhas Maurícias, onde os jornais não lhe têm dado descanso.
Em novembro de 2017, novas revelações eram feitas pelo “L’Express” em Port Louis: o banqueiro foi autorizado a comprar, através de uma das suas empresas-veículo, um total de 131 moradias num complexo de luxo, o Royal Park, apesar de um relatório encomendado pelas autoridades financeiras das Maurícias à multinacional de intelligence Kroll concluir que a sua reputação “não é boa”. Esse e outros temas relacionados com Sobrinho têm sido abordados profusamente no parlamento local. No ano passado, no pico da polémica, o líder da oposição aproveitava a oportunidade para fazer estragos: “O vice-primeiro-ministro declarou há uns dias que olhou o senhor Sobrinho nos olhos e que acreditou nele.”
Consternado com o que andava a ser divulgado nas Maurícias, o angolano enviou a 31 de março de 2017 um pedido ao Ministério Público em Lisboa. A carta lamentava o conteúdo de um comunicado de imprensa distribuído semanas antes pela Financial Services Commission, o equivalente à CMVM naquele país africano, em que era referido, com base em notícias da imprensa local, que um ex-procurador do DCIAP, Orlando Figueira, tinha sido subornado para fechar várias investigações em curso contra altas figuras angolanas, incluindo um inquérito contra o antigo CEO do BESA.
Tendo em conta a gravidade do que era alegado nesse comunicado das Maurícias e “os avultados prejuízos que tal notícia traz ao requerente”, o banqueiro solicitava que uma das procuradoras da ‘Operação Fizz’, o inquérito-crime que envolvia Orlando Figueira, emitisse uma certidão a atestar que ele não era suspeito naquele caso. O esclarecimento foi escrito, assinado e entregue a um advogado que o representou nesse ato. Era João Rodrigues, o antigo presidente da Federação Portuguesa de Futebol que é agora arguido, ironicamente, nos alegados pagamentos corruptos ao juiz Rui Rangel. Parece que, tal como na matemática, quando se faz uma curva mantendo sempre o mesmo raio, há um momento em que o círculo se fecha.
*Com Gustavo Costa, em Luanda