ENTREVISTA
ANÍBAL CAVACO SILVA “NÃO ALINHO NOS FOGUETES DE CADA VEZ QUE SAI UM NÚMERO DO INE”
O Presidente da República que bisou no cargo depois de o ter feito como primeiro-ministro não se ilude com os números do crescimento, porque — diz — Portugal cresce menos do que outros mesmo num quadro de benesses externas. Afirma que é “uma pessoa de grande sorte”, elogia Macron, Rio, Passos e saúda António Costa, “um político muito hábil”. Tem três sonhos: sobre a escola, a administração pública e o jornalismo
POR Luísa Meireles e Pedro Santos Guerreiro (TEXTOs) e António Pedro Ferreira (FOTOGRAFIAS)
Cavaco Silva é Cavaco Silva. Político único, com um comportamento único, que, embora retirado da política ativa, não se consegue desligar da política — logo ele, que nunca gostou de ser visto como tal. É por isso que analisa, adverte e recorda mesmo que o seu velho dito (“a má moeda vence a boa moeda”) é um princípio que se aplica a todos os tempos. Neste caso, aos partidos e ao seu em particular. Pensa Portugal no contexto europeu e não se deslumbra. E muito menos por esta coligação governativa, a que deu posse contrariado, mas entendendo que era a melhor perante as outras alternativas. Promete contar mais coisas do tempo que viveu: foi Presidente no tempo certo e saiu em boa altura. Tem tudo registado para memória futura.
Como vê o país no momento em que estamos?
Vejo Portugal como um país que está a beneficiar de uma envolvente externa extraordinariamente favorável: taxas de juro extremamente baixas, perto de zero, durante um período longo, como nunca se viu na história monetária portuguesa; deslocação de turistas de outros destinos para Portugal; crescimento económico da União Europeia que há muito tempo não ocorria, com destaque para a Espanha, nosso principal cliente, para onde exportamos cerca de 27% do total; e preço do petróleo muito baixo. Tudo isto são fatores que raramente se repetem na sua conjugação de forma tão favorável. Neste quadro de benesses externas, tenho algum receio de que não se esteja a aproveitar o momento para corrigir alguns dos nossos desequilíbrios estruturais em ordem a preparar o futuro.
Quais?
O enorme endividamento do país, a insustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de Segurança Social, a baixíssima taxa de poupança das famílias — que está a um nível historicamente baixo —, a falta de capital, o inverno demográfico, a baixa produtividade, a reforma do Estado.
O que sugere?
Quando se identificam problemas num país, o que o poder político deve fazer é estudá-los em profundidade, convocando os peritos, os conhecedores dessa matéria para encontrar as soluções. Eu não estou no tempo de dar lições, nem as quero dar em público sobre aquilo que o Governo deve fazer para resolver desequilíbrios que estão bem identificados.
Há poucas semanas, em Davos, Christine Lagarde, diretora do FMI, fazia um alerta parecido para a economia mundial: esta retoma é cíclica, mas a crise voltará em força se nada for feito enquanto as coisas estão bem.
Os ciclos vão e vêm. E nós estamos a viver de facto um ciclo extremamente positivo. Este ciclo chegará ao fim e daí a preocupação que lhe referi. Há que aproveitar os ciclos muito bons, com uma conjugação de fatores positiva que é muito difícil de encontrar — às vezes aparece um fator positivo e outros menos, agora são todos muito positivos — para fazer as correções de natureza estrutural de maneira a que, quando uma crise chegar, também vinda do exterior, exista margem de manobra para evitar agravamentos excessivos do desemprego, recessões profundas e aumento das situações de exclusão social. Foi o que aconteceu em 2009, quando vivemos a maior recessão europeia e mundial desde a Segunda Guerra Mundial e a Europa chegou à conclusão de que não estava preparada para a enfrentar. E cometeu alguns erros. Começou por fazer uma política expansionista relativamente forte, mas não alertou suficientemente alguns países para que tivessem cuidado com a falta de manobra orçamental de que dispunham para fazê-las. Foi o caso de Portugal, da Grécia, mais tarde de Chipre e até um pouco o caso de Espanha. Por isso chegou depois a crise da dívida soberana e aí os líderes europeus tomaram consciência de que a construção da união económico-monetária (UEM) era inacabada.
Um dos mecanismos para proteger o euro foi adotar taxas de juro baixas, o que também é um estímulo contrário à poupança. Mas não há como ultrapassar as restrições do enorme endividamento do país sem um enquadramento europeu. Concorda?
Se está a pensar na reestruturação da dívida, sou frontalmente contra. Podia levar os bancos portugueses à falência, já que a maior parte da dívida que não pertence às instituições está na posse dos bancos, companhias de seguros e fundos de pensões. Podia ser uma situação dramática para o nosso sistema financeiro, levava à desvalorização das nossas empresas, afastava-nos dos mercados durante muito, muito tempo, a nossa reputação a nível internacional sofria um abalo tal que atingiria mesmo a disponibilidade para investir em Portugal, até para preferir produtos portugueses, talvez até para visitar Portugal.
Nem toda a gente concorda consigo.
Penso que as pessoas que defenderam e em tempos publicaram um manifesto sobre a reestruturação da dívida não se deram ao trabalho de verificar na posse de quem é que estava a nossa dívida. Boa parte está na posse das instituições — e não se vai deixar de pagar ao Fundo Monetário Internacional e ao Mecanismo Europeu de Estabilidade. São ilusões ideológicas sobre as quais não perco tempo a pensar.
E uma forma de renegociação ou mutualização da dívida no quadro europeu global?
Não acredito que aconteça, nem no quadro europeu. A Europa tem neste momento desafios muito grandes e está até num bom momento, principalmente no seu núcleo duro, a zona euro. São 19 países, 340 milhões de pessoas (que representam 70% do conjunto da União Europeia a 27), onde existem parcelas muito amplas de partilha de soberania, em que a proximidade dos cidadãos é muito maior do que a que se verifica naqueles que não fazem parte da zona euro. São 340 milhões de pessoas interessadas em que a moeda comum, o euro, compre o mais possível de bens e serviços, uma zona que tem um banco central único, uma política monetária única, uma supervisão bancária única. É o verdadeiro núcleo duro da União e deve assumir-se como tal.
Nos problemas graves que lista, fala da baixa taxa de poupança…
Ela também depende da política de estímulo ou não ao consumo, não apenas das taxas de juro. Foi afirmado em documentos que estão disponíveis que o crescimento económico do país se fazia pela expansão do consumo. A facilidade do crédito ao consumo também vai por aí. Isso leva-me a falar sobre o crescimento económico português. Não faz sentido observar o crescimento do PIB em Portugal isoladamente. Dada a interdependência das economias e a integração dos mercados na União Europeia, em particular na zona do euro, há algumas coisas que temos de juntar para fazer uma análise séria do crescimento em Portugal. Em primeiro lugar, compará-lo com o crescimento médio da UE; em segundo, verificar se há para Portugal incidências externas positivas ou negativas que justificam que Portugal cresça menos ou deixe de crescer mais do que a média da UE. E em terceiro, comparar o nosso crescimento com o dos outros países que também foram objeto de programas de ajustamento e que tiveram uma saída limpa. É o caso da Irlanda, que iniciou o seu programa em dezembro de 2010, a Espanha que começou o seu programa voltado para reestruturação do sistema bancário em novembro de 2012, e de Chipre, que começou em março de 2013. Quando os países passam por esses programas, o que se espera é que a seguir tenham uma taxa de crescimento elevada. Portugal está numa trajetória de crescimento desde 2013, mas está aquém de todos estes países que referi. Portanto, recuso-me a fazer uma análise simplista e não alinho nos foguetes que a comunicação social costuma divulgar quando sai um número do INE. Imediatamente vou ver os números dos países da UE, vou pensar se Portugal tem choques assimétricos positivos ou negativos, e depois vou ver o que tem a Espanha, nosso principal mercado, Chipre, Irlanda. Deixo de lado a Grécia, que começou há oito anos, em maio de 2010, e ainda está sob um programa de ajustamento.
“Portugal está a beneficiar de uma envolvente externa extraordinariamente favorável. Receio que não se esteja a aproveitar o momento para corrigir alguns desequilíbrios estruturais”
Portugal não sai bem do ajustamento?
Portugal saiu bem, não cometeu o erro da Grécia. A Grécia não estaria como está se se tivesse empenhado mais em cumprir o seu primeiro programa de ajustamento.
Cita várias vezes Emmanuel Macron [ver caixa]. Está confiante na visão do Presidente francês para a Europa?
Ganhei interesse por Macron ao ler o jornal que me chega diariamente, o “Le Monde”, e uma revista semanal, a “L’Express”. Atraíram-me nele duas coisas: a forma de governar e a sua relação com a comunicação social. Comecei a ler os seus discursos e a sublinhar determinadas frases e encontrei algumas semelhantes às que eu tinha escrito nas minhas “Memórias”.
Tais como?
Tenho aqui o Expresso, com uma entrevista, que eu já conhecia e que tinha sido publicada na “Der Spiegel”. [Pega na revista E do Expresso de 4 de novembro de 2017 e lê:] “Enquanto Presidente, não podemos ter o desejo de ser amados, o importante é servir o país e levá-lo para a frente”; “Estou a pôr fim à cumplicidade entre a política e os media”; “Para um Presidente, falar constantemente com os jornalistas, estar sempre cercado por jornalistas, não tem nada que ver com a proximidade com o povo”. E podia citar muito mais. Por outro lado, no discurso que o Presidente Macron fez aos media num encontro no princípio de janeiro, disse: “A proximidade entre jornalistas e políticos é negativa para os jornalistas e para os políticos”; em relação à questão de direita e esquerda, perguntaram-lhe qual era o seu posicionamento ideológico. Respondeu: “Nem de direita nem de esquerda, porque de direita e de esquerda”; quer dizer que toma medidas que uns consideram de direita e outros de esquerda. Por isso ganhei um certo interesse no modo de governar e nas relações dele com a comunicação social.
Enquanto Presidente da República, remeteu-se várias vezes ao silêncio público, afirmando que se guiava pelo estrito interesse nacional. Foi criticado por isso.
Muito… até pode verificar nas minhas “Memórias” que tenho isto escrito, frases que são quase iguais às de Macron.
Acha que essa atitude o levou a não ser compreendido?
Não, não, isso para mim nunca foi preocupação. Nessa matéria, eu adotei cedo um critério que nunca mais esqueci. Foi ditado por Sá Carneiro nas reuniões com os seus ministros. Ele disse: “Confrontado com um problema, o que os senhores têm de fazer é obter o máximo de informação, estudá-la aprofundadamente e depois seguir o caminho que em consciência consideram ser o do superior interesse do país, sem se preocuparem com a diferença entre opinião pública e publicada.” A minha preocupação quando confrontado com um problema é fazer mesmo isto: obter o máximo de informação, estudá-la, e depois, de acordo com a minha consciência, procurar resolvê-lo de acordo com aquilo que considero na minha interpretação ser o superior interesse nacional, tendo presente quais são as competências do Presidente da República. No fim, ou obtemos o resultado desejado ou temos um resultado menos desejável. O meu critério de avaliação é aquele que Sá Carneiro sugeria.
Os seus resultados foram os desejados?
Chego ao fim dos meus mandatos sem frustrações especiais, sem desilusões, considerando que cumpri aquilo a que me tinha comprometido ao candidatar-me. Isto é, colocar ao serviço do país o meu saber e experiência como político, de forma a que o resultado fosse melhor do que seria se os portugueses tivessem escolhido outra pessoa. Isto permite que tenha chegado ao fim perfeitamente realizado e de consciência bem tranquila. Por isso digo que sou uma pessoa de muita sorte, embora haja quem diga que a sorte dá muito trabalho. Com muita sorte na família — que é extraordinária, dois filhos, um genro e uma nora, cinco netos e uma mulher extraordinária —, muita sorte na vida académica, na vida profissional e na vida política. Mas isso já são outras matérias. Estamos a resvalar.
Sacramento Cavaco Silva no claustro do Convento, em cuja parte remodelada foi instalado o seu gabinete
A sua relação com os jornalistas sempre foi conflitual.
É de distanciamento, porque considero que isso é fundamental para a dignidade do exercício do poder, mas de respeito pelos jornalistas. Não estou a dizer nada de novo, isso está escrito nas minhas “Memórias”, num capítulo precisamente sobre jornalistas e comunicação social. Tenho muito respeito e concordo com Macron: a proximidade não é benéfica nem para quem está na política nem para os jornalistas. Mas é melhor deixar esta matéria de lado.
O que diz parece uma crítica ao exercício das funções pelo atual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa.
Tomei por princípio não fazer comentários nem sobre os meus antecessores nem sobre quem me sucede. Nunca ninguém me ouviu uma palavra sobre isso, exceto num caso que conto nas minhas “Memórias” em relação ao doutor Mário Soares. De resto, nunca fiz um único comentário público nem penso fazer.
Diz que foi um político realizado. Mas — usando a frase de Macron —, foi um político amado?
A minha preocupação é se fiz ou não aquilo que considerava em consciência correto. O resto… não conta para a minha forma de atuar como político, não influenciou as minhas decisões.
Se lhe perguntar se é de direita ou de esquerda não vai responder como Macron, “nem de direita nem de esquerda”…
Faz muito pouco sentido hoje, em matéria de governação, em particular, falar de direita ou de esquerda, principalmente num país que está integrado na União Europeia e na zona euro, em que a interdependência das economias e a integração dos mercados é muito grande. Neste contexto, na governação económica os políticos são em boa parte pragmáticos. Quando exerci funções executivas, costumava dizer que era social-democrata. Isso queria dizer que defendia uma economia social de mercado, com primazia do sector privado, embora reconhecendo as falhas do mercado que o Estado devia corrigir, com uma grande preocupação pela equidade na distribuição do rendimento, pelo combate à pobreza e à exclusão social, sem preocupação de ser de direita ou de esquerda. Tendo bem a noção de que medidas que eu tomava eram consideradas ora de direita ora de esquerda. E é isso que Macron diz.
Acha que é isso que acontece na Europa?
Na Europa os governos são praticamente todos assim. O pragmatismo tem vindo a impor-se e a ideologia aparece acantonada em partidos mais pequenos que não são Governo, principalmente no que respeita à parte económica. Mas se olharmos para a Europa, quase todos governam ao centro. Temos o caso do [primeiro-ministro grego] Alexis Tsipras, sobre quem agora se diz que não há nenhum outro Governo a aplicar medidas mais de direita do que ele. Aqueles que o aplaudiram tanto no princípio de 2015 quando chegou ao poder, estão agora a esquecer o homem, que merece uma certa consideração por se ter transformado, pelas políticas que executa, num social-democrata de direita, digamos assim [risos]. Já viram a limitação à lei da greve que impôs? É de uma violência brutal, desculpem! Um social-democrata tem de repudiar isso, mesmo quando se está sujeito a um programa de ajustamento.
Na atual solução política portuguesa, há excesso de governação ideológica?
Em determinadas áreas muito importantes da governação a realidade derrota a ideologia. Derrotou em França com Hollande, derrotou de uma forma extrema na Grécia, e em Portugal é óbvio, toda a gente o diz, também derrotou na parte económica, em particular no que tem que ver com o respeito das regras europeias. Depois há sempre matérias que, para compensar, são vistas como de esquerda…
“Impedi que o estatuto político-administrativo dos Açores tivesse normas lesivas do superior interesse do país. Foi uma luta quase heroica. Estava isolado numa matéria que a opinião pública não percebia. Foi um dos casos de maior cobardia dos deputados que alguma vez conheci”
O atual Governo PS sempre disse que cumpriria as regras europeias, os parceiros (PCP e BE) é que não estão de acordo.
[Riso] O nosso caso é um caso sui generis que não quero comentar. Fui eu que nomeei esse Governo, depois de ter ouvido todos os parceiros sociais, os presidentes de todos os bancos grandes, sete economistas com grande conhecimento da realidade, muitos dos quais tinham sido membros de governos socialistas. Essa solução era inédita na nossa democracia e teve a oposição muito forte no passado dos dirigentes socialistas com quem trabalhei — todos! Não vou contar agora, mas um dia contarei o que eles me disseram sobre o Bloco de Esquerda e o PCP, está registado. Mas, dizia, cheguei à conclusão de que era uma melhor solução do que a continuação de um governo de gestão PSD/CDS até à eleição do próximo Presidente da República — um encargo que eu também não lhe queria deixar.
Deu posse ao Governo contrariado, portanto.
Eu não podia dissolver a Assembleia da República, o que para um Presidente conta; eu sou contra governos de iniciativa presidencial, a cuja possibilidade entendo que a revisão constitucional de 1982 pôs fim, ao tirar a responsabilização política dos governos perante o PR e colocando-a apenas na Assembleia da República.
Mas reconhece que entretanto houve uma distensão do clima político?
Como todos sabem, tenho vindo a adotar a posição de não fazer comentários sobre decisões específicas tomadas pelo atual Executivo, o que não quer dizer que um dia não venha a fazê-lo. Ainda estou na fase de ter muito cuidado em relação a comentários públicos. Alguma coisa que queira dizer, posso fazê-lo no Conselho de Estado, mas não quero fazer julgamentos neste momento.
E quanto ao estado da democracia em Portugal? Estamos bem ou há fatores de preocupação?
Uma das motivações para a nossa adesão à União Europeia foi a consolidação da democracia. Foram apontadas três razões: desenvolvimento económico e social do país, consolidação da democracia e reforço da projeção internacional de Portugal. A nossa democracia está consolidada, não tenho receio quanto ao seu futuro. Podem é existir problemas quanto à qualidade da democracia, ao funcionamento da nossa democracia, que é coisa diferente. Enquanto Presidente da República, promovi dois inquéritos de opinião sobre os jovens e a democracia, a participação política e cívica. Esses inquéritos revelaram um afastamento crescente e forte da juventude portuguesa nessa participação. É motivo de preocupação porque eles são os governantes, os autarcas e os parlamentares do futuro. A interrogação é: porquê? É possível que o funcionamento dos partidos e o sistema eleitoral tenham contribuído para isso.
Afastando os jovens?
Sim. O funcionamento dos partidos é algo que tem vindo a fechar-se cada vez mais e quem controla o aparelho procura criar barreiras à entrada de concorrentes. E então isso conduz àquilo que eu disse — que a má moeda afasta a boa moeda, significando que os mais competentes e qualificados podem ser derrotados pelos menos competentes e qualificados. Se olharmos ao longo do nosso tempo de democracia, notamos um afastamento crescente das elites profissionais, dos quadros técnicos qualificados, em relação à participação política. Referem-se custos de natureza material e de exposição que os afastam. Conheço inúmeros casos de pessoas que rejeitaram convites para ministros, secretários de Estado, conheci as dificuldades dos primeiros-ministros em convencê-los. Há um problema de funcionamento dos partidos. Mas o nosso quadro partidário tem-se mantido muito resiliente.
Momento O anterior Presidente da República durante a entrevista conduzida por Luísa Meireles e Pedro Santos Guerreiro
Ao contrário de outros países europeus, em Portugal o quadro partidário tem-se mantido.
Enquanto noutros países surgiu alguma inovação partidária, o “Em Marcha”, de Macron, em França, Os Cidadãos, de Albert Rivera e Inés Arrimadas, em Espanha, em Portugal os nossos partidos têm-se defendido bem da entrada de concorrentes. Não quer dizer que um dia não possa surgir aqui um Emmanuel Macron ou uma Inés Arrimadas, mas neste momento não consigo antever essa possibilidade. Portanto, o problema que se põe é saber se os nossos partidos vão revelar capacidade de inovação e de se reformar. Confesso que tenho algumas dúvidas. A resposta que deve ser dada aos populismos e ao euroceticismo é os partidos que já existem renovarem-se e inovarem, abrirem-se e responderem às preocupações dos cidadãos. Talvez tenha sido essa a razão do sucesso desse case study que é Emmanuel Macron ou Albert Rivera.
Quando fala dessa necessidade de renovação dos partidos, está também a falar do seu partido, o PSD?
Não distingo entre os partidos. O que estou a dizer não é novidade, os estudos revelam isso. Comparem a Assembleia Constituinte com a Assembleia atual.
E qual a “contribuição negativa” do sistema eleitoral?
O sistema eleitoral dá um peso excessivo aos partidos, em comparação com o que dá às pessoas. A introdução de uma certa pessoalização da escolha dos deputados deve ter em conta dois aspetos, a representatividade e a governabilidade, que têm de ser mantidos equilibrados, de forma a não dificultarem mais a formação de maiorias parlamentares. Em Portugal, ao contrário do que existe noutros países, não há um limite mínimo de percentagem a nível nacional para que um partido entre no Parlamento, pode entrar-se com menos de 1%. Por outro lado, Portugal não tem — e ainda bem — bónus aos vencedores, como tem a Grécia e a Itália está a preparar. Entrar com uma percentagem insignificante foi um erro cometido no início da nossa democracia que agora é impossível de corrigir, mas não seria talvez difícil manter o tal equilíbrio entre representatividade e governabilidade introduzindo alguma possibilidade de escolha das pessoas concretas que vão representar os cidadãos no Parlamento.
Quer concretizar em que modelo nos devíamos inspirar? Se nos círculos uninominais se no modelo de Câmara Alta e Câmara Baixa…
Houve uma altura, quando era primeiro-ministro, em que havia o desejo de avançar, mas depois não foi possível. Existem formas de encontrar uma pessoalização sem que isso signifique listas uninominais — veja-se o círculo de Lisboa, que elege 40-50 deputados. Os especialistas na matéria saberão encontrar uma solução em que se pessoalize um pouco sem que se caminhe para círculos uninominais e sem que se dificulte a formação de maiorias.
Mas quando se fala de qualidade da democracia também se fala de outros problemas…
… também se fala de determinados abcessos que surgem de vez em quando: a corrupção; agora a lei do financiamento dos partidos (eu vetei em 2009 a lei do financiamento dos partidos, quando queriam aumentar significativamente o financiamento privado); ou a ocupação do aparelho do Estado por familiares e amigos daqueles que estão no poder, e tentações do poder político em controlar entidades independentes, como o Banco de Portugal, o Conselho de Finanças Públicas (que tem realizado um trabalho de grande qualidade), o Conselho Nacional de Educação, a CRESAP (que faz a seleção dos dirigentes da função pública), as autoridades de regulação e de supervisão. Estes abcessos põem em causa a qualidade da democracia, mas não a sua consolidação. Esperemos que seja dada resposta pelos meios adequados e que a transparência aumente.
“O nosso caso é sui generis. Esta solução [de governo] teve a oposição muito forte no passado dos dirigentes socialistas com quem trabalhei — todos! Um dia contarei o que eles me disseram sobre o Bloco de Esquerda e o PCP”
Está confiante na Justiça, tal como ela está a ser feita neste momento?
Eu nomeei por proposta do Governo dois procuradores-gerais da República. E sei que a última palavra nessa escolha cabe ao Presidente da República. No tempo do Governo do engenheiro Sócrates, rejeitei dois nomes para o cargo que me foram propostos pelo Governo. Não revelei os nomes. Acabei por aceitar um terceiro, que não teve nenhuma objeção da parte do maior partido da oposição. Depois [no Governo de Passos], nomeei, por proposta do Governo, a doutora Joana Marques Vidal, que me tem surpreendido muito positivamente pela sua ação. Na nossa longa conversa que teve lugar num dia 5 de outubro, falei muito sobre a discrição que deve ser timbre de um procurador, de uma certa aversão ao mediatismo, da necessidade de um novo rumo para o Ministério Público e a sua pacificação. Nesses aspetos não estou absolutamente nada desiludido em relação à sua atuação, tem dado um contributo para a dignificação do exercício da função judicial. Mas quero sublinhar que, quando tive de enfrentar a substituição de dois procuradores, em primeiro lugar consultei Souto de Moura sobre se ele aceitava ou não ser reconduzido. Não tinha a mínima dúvida de que podia sê-lo. E só se soube que o Presidente, eu naquele caso, e o Governo estávamos a tratar do assunto quando estávamos a chegar ao fim do mandato do procurador. Considero que foi muito estranho o que aconteceu em Portugal, mesmo estranhíssimo, falar-se da substituição [de Joana Marques Vidal] com 10 meses de antecedência. Não quero procurar uma qualificação em relação a essa decisão, dentro do princípio de que não devo fazer comentários sobre a atuação concreta do Governo.
Não diz quem recusou, mas pode dizer porque é que recusou esses dois nomes para PGR?
Entendi que não eram as pessoas adequadas para desempenhar o lugar.
Por falta de competência ou independência?
Tenho um capítulo do meu livro de memórias sobre esse assunto, contei aquilo que se passou, não quero acrescentar mais nada. Há pequenos pormenores que entendo que não devo revelar.
Como vê a atuação do Ministério Público em relação a Angola, em que se misturam problemas nas relações políticas entre Estados?
É um assunto muito delicado. Tenho a certeza de que a Procuradoria, o Governo e o Presidente da República o estão a gerir com pinças. Todos nós sabemos que as relações de Portugal com os Países de Língua Oficial Portuguesa são muito importantes e que as relações com Angola são muito importantes. Não quero emitir juízos sobre o assunto.
Como comenta o momento que vive o PSD?
O PSD tem um novo líder, o doutor Rui Rio. Penso que a nossa democracia e o país precisam neste momento de uma oposição forte e indiscutível por parte do Partido Social-Democrata. Por aquilo que conheço de Rui Rio, acho que tem algumas qualidades que são importantes para os tempos que correm. Tenho dele a impressão de que é um homem honesto, educado — o que também começa a ser importante na política —, que é um fazedor, que tem um sentido de serviço público e que também é um pouco teimoso no seguimento do critério do interesse nacional. Tenho por ele respeito e apreço e desejo-lhe as maiores felicidades num cargo tão difícil como é o de presidente do PSD, que eu bem conheço. Mas estando afastado da vida político-partidária, permitam-me que não acrescente nem mais uma palavra.
Das tragédias que se viveram no ano passado em Portugal resultou o diagnóstico de falhas do Estado? Estamos perante uma deterioração da relação de confiança entre instituições e sociedade?
A morte por incêndio de mais de 100 pessoas num período relativamente curto é uma tragédia anormal num país da dimensão do nosso. Não imagino o sofrimento horrível que deve ser alguém morrer pelo fogo na sua casa, dentro do seu automóvel ou a fugir por uma estrada. Deve ser das coisas mais horríveis. Não tenho conhecimento suficiente para me pronunciar sobre a atuação do serviço de Proteção Civil, mas penso que de tudo o que foi dito e escrito emerge um grande falhanço da parte do Estado, naquilo que é o mais importante, a proteção da vida das pessoas. Emerge descoordenação dos serviços e emergem insuficiências de comando — não estavam em postos de comando as pessoas certas. Isto conduz-nos ao problema da dimensão do Estado, da sua reforma, da capacidade técnica, de gestão, coordenação e comando da nossa administração pública e do seu órgão superior, que nos termos constitucionais é o Governo. Se temos um Estado com demasiada grandeza mas não temos uma administração pública com as capacidades adequadas, uma de duas: ou se reduz a dimensão do Estado ou se melhora a capacidade da administração pública e de comando do próprio Governo. A reforma do Estado é uma questão importante.
“O nosso caso é sui generis. Esta solução [de governo] teve a oposição muito forte no passado dos dirigentes socialistas com quem trabalhei — todos! Um dia contarei o que eles me disseram sobre o Bloco de Esquerda e o PCP”
Pode aprofundar?
Metodologicamente, entendo que existem três questões fundamentais. A primeira, quanto é que o Estado pode gastar? A segunda, onde é que vai gastar? A terceira, como vai gastar? Portanto, quanto, onde e como. Primeira questão: quanto gastar? Qual pode ser a dimensão do Estado num país como o nosso? Isso significa que montante de impostos podemos cobrar para financiar a despesa sem que daí resulte um desequilíbrio insustentável das contas. O país aqui não pode deixar de olhar para os seus concorrentes, porque estamos num espaço de mobilidade de bens e serviços, das pessoas, dos capitais e das poupanças. O que o Estado pode cobrar de impostos, a carga fiscal, não devia ser muito diferente da média de um conjunto formado pela Polónia, República Checa, Hungria, Eslováquia, Espanha, porque são concorrentes diretos do nosso país na captação de investimento. Mas há ainda outra questão: quando se cobram impostos às pessoas, retiram-se-lhes recursos, produção que o sector privado deixa de realizar. Se for um Estado eficiente, isto é, se a sua administração pública e o seu Governo tiverem competência técnica forte, competência de coordenação, gestão e comando, então tem maior capacidade para transformar os recursos tirados ao sector privado e os bens que este deixa de produzir em bens e serviços públicos que têm maior valor social.
O que leva à segunda questão: onde gastar?
É uma questão com uma forte componente ideológica — quanto se gasta na educação, Justiça, defesa, financiamento dos partidos, saúde. Há quem defenda que o Estado deve ter uma maior intervenção na sociedade, outros que deve ter menor. E vem a última questão: como gastar? Isso tem que ver com a organização, a gestão, isto é, como estruturamos a administração pública e a organizamos, é todo o complexo trabalho de fazer com que essa administração seja eficiente nas tarefas que lhe estão incumbidas e que foram determinadas ideologicamente e tendo em conta quanto é que se pode gastar. Ora as reflexões feitas no passado sobre a reforma do Estado não seguiram esta metodologia. Foram ver onde é que o Estado gastava muito, pensões, salários, e cortaram aí. Tem de se fazer uma reflexão um pouco mais completa. Nos incêndios, vieram ao de cima falhanços do Estado, que revelam que é provável que o nosso Estado seja excessivo para a capacidade técnica de gestão, do comando e de coordenação que a nossa administração pública tem. É uma questão complicada e que não se resolve apenas com o apuramento das responsabilidades dos falhanços que ocorreram no combate aos incêndios. No futuro podem repetir-se, não digo estas, mas outras tragédias. Agora fala-se muito em terramotos, também já tivemos inundações. Deus queira que nada ocorra, todos rezamos por isso, mas se ocorrerem a conclusão vai ser que houve outra vez um falhanço do Estado, descoordenação de serviços, incapacidade de comando.
Defende a intervenção de privados em funções do Estado?
Os governos têm recorrido aos privados. Há aqui uma confusão, o que não me surpreende porque é uma especialidade de economia pública, que é a diferença entre provisão pública e produção pública. A primeira significa que o Estado pode fornecer gratuitamente determinados bens aos cidadãos. Mas a produção pública pode ser realizada por privados. O Estado fornece as estradas gratuitamente aos cidadãos, mas a produção é feita por empresas privadas em geral. E até na Educação pode ser assim — fornecer educação gratuita a todos os cidadãos mas pedir a alguns colégios subsidiados pelo Estado para realizar a produção. Esta separação entre provisão e produção públicas também tem algum quê de ideológico. O que parece nos incêndios é que a capacidade técnica, de gestão, comando e coordenação está aquém das necessidades do funcionamento do Estado com a dimensão que temos.
Deve reduzir-se o Estado ou reforçar tecnicamente a administração pública?
O poder político é que faz a escolha em que aposta.
“Foi muito estranho o que aconteceu, mesmo estranhíssimo, falar-se da substituição [de Joana Marques Vidal] com 10 meses de antecedência. Não quero procurar uma qualificação em relação a essa decisão dentro do princípio de que não devo fazer comentários sobre a atuação concreta do Governo”
Conhece bem o país, como governante e como Presidente correu-o de lés a lés. É um interior abandonado, desertificado, envelhecido?
Portugal é um país assimétrico. Temos um interior atingido pelo despovoamento e pelo envelhecimento e muitas pequenas comunidades em situação de pobreza e privadas dos bens que caracterizam uma sociedade desenvolvida do século XXI. Compreende-se que o Governo tenha considerado a redução das assimetrias regionais de desenvolvimento como uma prioridade na afetação dos fundos estruturais atribuídos a Portugal para o período 2014-2020. Como Presidente empenhei-me, através dos Roteiros, em dar voz aos bons exemplos que existem no interior do país e em mobilizar os autarcas para se assumirem como agentes ativos do desenvolvimento económico e social dos seus municípios. É, no entanto, errado pensar que o tempo volta para trás e que é possível reverter o despovoamento registado ao longo dos anos em alguns concelhos e freguesias. Em alguns casos a redução do capital humano já ultrapassou o nível crítico.
O que se pode fazer?
Por um lado, valorizar a riqueza endógena do interior: a história, a cultura, as tradições, a gastronomia, a beleza paisagística, a capacidade de produção agrícola. O potencial turístico é enorme e a modernização e rejuvenescimento do sector agrícola têm produzido resultados extremamente positivos. Os programas das Aldeias Históricas e das Aldeias de Xisto da Beira Interior têm contribuído para melhorar as condições de vida das populações rurais.
Como encara a relação das Forças Armadas (FA) com o poder político?
As FA são um pilar incontornável do nosso Estado de direito democrático. Já há alguns anos a esta parte são um elemento da maior importância para a política externa do nosso país, pelas missões de paz que realizam nas Nações Unidas, NATO e UE. Os nossos soldados têm demonstrado um profissionalismo que é objeto de elogios generalizados. Ao poder político compete providenciar os meios indispensáveis para que as FA realizem as missões que lhe estão atribuídas e para que os chefes militares possam assegurar a coesão e a disciplina. Sem esquecer também que nos momentos de tragédia e de dificuldade das populações se lança mão das FA — foi nos incêndios, nas inundações da Madeira, é na salvação de vidas, naufrágios, transporte de transplantes. Prestam serviços inestimáveis às populações. Tive um excelente relacionamento com as FA e no meu gabinete tenho em lugar destacado a prenda que me ofereceram quando saí — as três espadas símbolo de comando, do Exército, da Força Aérea e da Marinha. Empenhei-me na defesa do seu prestígio, dignificação e nas múltiplas reformas que foram feitas com a colaboração dos chefes militares.
É um erro dizer-se que as FA não têm procurado reformar-se?
No meu tempo de Presidente da República foram levadas a cabo importantíssimas reformas de fundo das nossas FA, ultimamente a reforma da estrutura de comando, do sistema de educação, de saúde, e os chefes militares nunca colocaram objeções em relação a elas. O poder político às vezes não compreende uma questão que é importante nas FA, a especificidade da condição militar, e à qual os militares são muito sensíveis. Por aquilo que conheço, as FA e os seus comandantes têm tido uma relação de total lealdade face ao poder político. Há que reconhecer o que têm feito pelo país ao longo do tempo e o contributo, repito, na defesa dos interesses de Portugal no plano externo e nos apoios à população.
No exercício das suas funções realizou-se mais como primeiro-ministro ou como Presidente da República?
São funções muito diferentes. O primeiro-ministro é o executivo, o PR, como diz a Constituição, representa a República, assegura a independência nacional, a unidade do Estado, o regular funcionamento das instituições e é por inerência o comandante supremo das Forças Armadas. São funções de grande responsabilidade. Eu gostei de exercer as funções de Presidente da República e acho que a minha experiência como primeiro-ministro foi de extrema utilidade para exercer o cargo. Como exerci essas funções num tempo de grandes dificuldades na Europa, de crise, e em que Portugal teve de recorrer a um empréstimo de 78 mil milhões de euros para se fazer face ao financiamento do Estado e da economia em situação de emergência, acho que fui Presidente da República no tempo certo. Tal como considero que saí no tempo certo. Continuo a dizer que sou uma pessoa de grande sorte.
Mas atravessou como Presidente um dos momentos mais difíceis da história da democracia.
Foi muito difícil, mas sei bem o que fiz nesse tempo, o que me deixa bem confortado.
Como vê a diferença da política hoje face a quando foi primeiro-ministro e Presidente?
Desde logo, não tínhamos internet, nem Facebook nem Google, e tínhamos uma comunicação social diferente. Foi um tempo muito distinto. Mas o facto de ter exercido a Presidência da República no tempo do último Governo, um tempo de emergência económica e financeira, fez-me sentir que dei contributos que considero importantes para o nosso país, que ajudei de alguma forma a que as coisas fossem melhores do que seriam sem a minha intervenção. Podia mencionar imensos casos.
“Tenho de Rui Rio a impressão de que é um homem honesto, educado, que é um fazedor, que tem um sentido de serviço público e que também é um pouco teimoso no seguimento do interesse nacional. Desejo-lhe as maiores felicidades”
Refira alguns.
No tempo da coligação PSD-CDS o Governo passou por várias crises e bastante difíceis. A crise da TSU, em que, nunca mais me esqueci, o então diretor do Expresso escreveu “agora tudo sobra para o Presidente da República”; a crise de encerramento da sétima avaliação [da troika]; a crise da demissão de Vítor Gaspar de ministro das Finanças e demissão “irrevogável” do ministro dos Negócios Estrangeiros [Paulo Portas]. Penso que com uma intervenção ativa da minha parte consegui evitar que o primeiro-ministro desistisse e que a coligação se desmoronasse. Estava profundamente convencido de que manter a coesão da coligação era uma condição necessária para que Portugal não caísse numa situação semelhante à da Grécia. Se naquele tempo, em que se enfrentava um exigente programa de ajustamento, se tivesse verificado uma queda do Governo, quase de certeza que Portugal caía numa situação semelhante à da Grécia. Era uma condição necessária, a suficiente foi preenchida pelo Governo, que teve a coragem e a determinação de se empenhar fortemente no cumprimento dos compromissos internacionais assumidos. Portugal deve ao Governo presidido pelo doutor Passos Coelho não estar numa situação não muito diferente daquele país: na Grécia, a produção caiu 25%, o desemprego ultrapassa ainda 20%, as áreas de empobrecimento aumentaram brutalmente, a degradação dos serviços públicos não tem nada de comparação com Portugal. Os três programas de ajustamento que lhe foram aplicados foram muito mais duros do que o nosso e, portanto, digo, preenchi a condição necessária de aguentar o Governo até ao fim da legislatura, mas foi o Governo presidido pelo doutor Passos Coelho que preencheu a condição suficiente para que tivéssemos uma saída limpa e o país regressasse aos mercados.
Encara como um fracasso seu não ter conseguido fazer um governo de salvação nacional?
Sobre isso não se sabe tudo o que aconteceu, mas hei de escrever sobre o que ocorreu nessa semana de negociações. Foi muito importante ter realizado aqueles sete dias de reuniões entre o PSD, o PS e o CDS. Pela primeira vez estes três partidos discutiram a possibilidade de um entendimento de médio prazo à mesma mesa. Em Portugal os partidos resistem muito em estabelecer compromissos entre si, contrariamente ao que se verifica nos outros países da mesma dimensão por essa Europa fora. Fui um defensor da política do compromisso e do diálogo entre os partidos. O relato daquilo que se passou — eu tinha um representante nas reuniões — foi muito positivo. Tomou-se a consciência de que eram importantes os compromissos entre os partidos, houve apelos de todos os parceiros sociais, com exceção da Intersindical, assinaram-se documentos pedindo aos partidos que chegassem a um compromisso. Apesar da rutura à última hora, ficou o alerta para a importância da cultura do compromisso e, chegado ao fim, encontrei a solução que me parecia que era a melhor para o país. Forcei o governo de coligação a reestruturar-se, a fazer uma remodelação, a submeter à Assembleia um pedido de voto de confiança e assumir determinados compromissos até ao fim do seu mandato. Eu não faço registos nem de arrependimentos, nem de frustrações, nem de falhanços, não é a forma como trato o exercício das funções públicas.
Mas houve outros episódios.
Sinto satisfação por ter dado um contributo para o acordo de concertação social de janeiro de 2012. Numa reunião entre mim e João Proença, líder da UGT, contribuiu-se para desbloquear obstáculos. Foi um acordo da maior importância para a competitividade da economia e para que as nossas exportações tivessem passado de 30% para mais de 40% do produto. E se recuar ao Governo de Sócrates, penso que dei um contributo para evitar um erro técnico que seria dramático para os contribuintes portugueses e o desenvolvimento do país, que era a construção do aeroporto na Ota. Estudei centenas de páginas, relatórios para conseguir confrontar o Governo sobre uma questão técnica, li todos os relatórios sobre o novo aeroporto de Lisboa.
“Na crise da demissão de Vítor Gaspar e da demissão ‘irrevogável’ do ministro [Paulo Portas] consegui evitar que o primeiro-ministro desistisse e que a coligação se desmoronasse. Quase de certeza que Portugal caía numa situação semelhante à da Grécia”
Que contributo considera mais importante?
Escrevi que o contributo mais importante que eu tenha dado para a defesa do superior interesse nacional talvez tenha sido o de impedir que o estatuto político-administrativo dos Açores tivesse algumas normas que eram claramente lesivas do superior interesse do país. Foi uma luta quase heroica, não só contra o governo regional dos Açores, mas contra toda a Assembleia da República. Eu estava isolado numa matéria que considerava estar a pôr em causa um pilar da nossa democracia e que a nossa opinião pública não percebia. Travei a luta quase sozinho e a partir de certo momento tive o apoio do provedor de Justiça Nascimento Rodrigues, que pediu a verificação da constitucionalidade de algumas normas. Foi um dos casos de maior cobardia da parte dos deputados que alguma vez conheci, porque eles diziam-me: “O senhor tem razão, mas como vão ocorrer eleições nos Açores não podemos ser diferentes do que propõe o próprio Governo socialista.” Nunca tinha acontecido: 25 normas jurídicas foram declarados inconstitucionais, não há outra lei em que tenha acontecido isso. E não tinha nada que ver com a autonomia das regiões autónomas, que eu defendo. O que estava em causa era o equilíbrio da distribuição de poderes entre o Presidente da República e a Assembleia da República, que se queria alterar por lei ordinária, além de competências regionais em matéria de política externa, fiscalização da comunicação social, etc. Alguns outros vetos que fiz também mudaram a situação. Se hoje os portugueses residentes no estrangeiro continuam a votar por correspondência deve-se ao facto de eu ter vetado a lei que o Governo e o Parlamento queriam impor para que o voto fosse presencial. Alguns diziam-me: “Tenho de me deslocar, senhor Presidente, mil quilómetros para ir votar ao consulado.” Também é sabido que mandei para o Tribunal Constitucional já no tempo de Passos Coelho a suspensão do subsídio de férias, a convergência do sistema de pensões da Caixa Geral de Aposentações com o regime geral da Segurança Social. Isto é, contribuí para que algumas coisas sejam diferentes do que seriam se não tivesse atuado e estudado profundamente os assuntos num tempo muito difícil para a Europa e para Portugal.
Já falámos de Passos Coelho, José Sócrates, até de Rui Rio, mas não mencionou uma só vez António Costa.
Tem sido de uma cordialidade imensa para comigo, não tenho queixas pessoais a fazer em relação a António Costa. Tivemos muitos diálogos aprofundados depois de ele ter sido eleito líder do PS e quando se colocou a possibilidade da coligação sui generis que temos neste momento em funções, foi sempre muito correto e tenho que reconhecer que é um político muito hábil. Mas deixe-me ficar por aqui.
O que aprendeu na vida que gostasse de ensinar?
O que posso dizer é o que eu gostaria que mudasse em Portugal, embora tenha pouca esperança de que se concretize. Tenho três sonhos. O primeiro é termos uma educação de excelência generalizada no ensino público, o que requer exigência máxima na seleção e formação de professores. Gostaria que no meu país o ensino público do básico e do secundário conseguisse excelência, porque isso é o mais importante para o futuro do país. O segundo sonho é o de uma administração pública de grande qualidade e despartidarizada, à inglesa. Vivi em Inglaterra, o meu supervisor foi chief economic advisor de um ministro britânico e ele contava-me como funcionava a preparação para a decisão ministerial, dizia-me que até um médico podia ser ministro das Finanças na Grã-Bretanha. E já agora permitam-me uma provocação, um sonho em relação à comunicação social, sem ofensa: uma comunicação social que estimule menos a inveja por forma a que os talentos que temos — e são muitos — não precisem de ir para o estrangeiro para se revelarem e subir na vida. Encontrei vários no estrangeiro que me diziam que podiam trabalhar em Portugal, mas que não voltavam, porque ganhavam muito bem, aproveitavam os seus talentos e ninguém os incomodava. Não sentiam a força da inveja.
“NÃO TIVE A MÍNIMA DÚVIDA DE QUE PORTUGAL DEVIA ENTRAR PARA A ZONA EURO, DA QUAL SÓ SAIRÁ SE ENLOUQUECER”
Diz que a zona euro é “um verdadeiro núcleo duro da EU” [ver corpo principal da entrevista]. Existe vontade de aprofundar a zona euro?
Ela recebeu dois impulsos de diferente natureza para uma vontade de aprofundamento. Uma foi o ‘Brexit’ e o populismo. Contrariamente ao que se pensava, ambos deram uma força acrescida à vontade de aprofundar esse núcleo duro. E depois os discursos importantes feitos em setembro — o de Jean-Claude Juncker no Parlamento Europeu, em primeiro lugar, sobre o estado da União, e o de Emmanuel Macron na Sorbonne. Foram discursos sobre a refundação da Europa, cuja prioridade é a União Económica e Monetária (UEM). Avançar na construção de uma verdadeira união financeira. À partida era apenas o pilar monetário, verdadeiro federalismo, mas muito incompleta nas outras partes da união financeira e na parte da união orçamental e da união económica. No seguimento da crise das dívidas soberanas, tomaram-se algumas medidas de emergência para estabilizar a zona euro e lançou-se — e bem — o debate sobre o aprofundamento da UEM. O primeiro passo foi avançar na união bancária, que ainda falta terminar com a garantia comum de depósitos (e espero que o obstáculo criado pela Alemanha até agora se desvaneça) e o chamado backstop [garantia da reserva do Fundo de Resolução para as crises bancárias]. Mas há uma vontade de avançar também com a união dos mercados de capitais. Nesse caso, ficaríamos com a união financeira quase completa: união monetária, união bancária e união do mercado de capitais. Com o discurso de Macron abriu-se a porta para preencher uma das lacunas mais fortes da UEM, que é a ausência de uma função de estabilização macroeconómica. É uma porta muito importante. Aliás, quando foi o Tratado de Maastricht (1992), Portugal referiu-se a isso, ao defender a necessidade de uma linha orçamental para fazer face aos choques assimétricos.
Na altura era primeiro-ministro.
Defendi-o e escrevi-o. A proposta foi rejeitada pelos países contribuintes líquidos do orçamento comunitário.
Era um embrião de um orçamento da zona euro?
Era a introdução da função de estabilização, que faz falta na UEM — falta completar o pilar orçamental e o pilar económico. Não só para fazer face aos choques assimétricos, mas também para o caso de a Europa entrar numa recessão, como a de 2009: onde estão os instrumentos para combater um ciclo recessivo? Por isso se fala de um orçamento próprio da zona euro. Depois, para o financiamento das reformas estruturais, para o aumento da competitividade, e no limite para financiar as compensações por desemprego que possam surgir em vários estados. Essa porta foi aberta. Não estou convencido que se deem passos significativos nesse domínio antes das eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2019. Eu fui daqueles que nunca acreditaram que alguma vez pudesse ocorrer o desmantelamento da zona euro. Só quem não estudasse a matéria é que o poderia imaginar, porque aderir à zona euro é uma opção, sair não. Qualquer Governo tem pânico daquilo que pudesse acontecer se tomasse tal decisão.
Seria projetado para outra galáxia...
Foi o que disse Tsipras, “para que galáxia iria?”. Por isso, tendo presente que existe no Leste europeu um conjunto de países eurocéticos e populistas, seria um erro neste momento alargar a zona euro. O melhor é deixar os 19 aprofundarem a zona euro e confrontar os outros com esses avanços. Eles ficariam com a liberdade: ou ficam ainda mais para trás ou aceitam que também fora das matérias da UEM há avanços no aprofundamento da União Europeia. É a partir da zona euro que se deve avançar e deve ser colocada a prioridade. Concordo muito com o documento que acaba de ser produzido pela Comissão, que se chama “Completar a União Económica e Monetária da União Europeia”, que saiu em dezembro.
Porque há mais condições agora?
Foi dado um passo importante no motor franco-alemão, que ganhou um novo impulso com o entendimento entre a CDU da chanceler Merkel, a CSU e o SPD de Schulz, que se junta às ideias propostas pelo Presidente Macron na Sorbonne. Agora, a prioridade vai ser completar a união financeira. E na união financeira o que falta é terminar a união bancária — penso que os obstáculos já não são muito grandes — e fazer a união de mercados de capitais. Eventualmente, pode ser aberta uma porta — uma orientação na parte da estabilização — voltada para dois aspetos: os choques assimétricos e os apoios às reformas estruturais para a competitividade. O resto ficará para reflexão, mas se conseguir fazer isso até às eleições para o Parlamento Europeu, já será muito. Penso que Macron e Juncker puseram bem o acento tónico no reforço da zona euro. Quem quiser ficar de fora fica, mas se quiser entrar tem de manifestar o diálogo, a abertura, o compromisso e a disponibilidade própria de quem partilha áreas tão amplas de soberania como já se verifica atualmente entre os 19 países da zona euro. E a que se juntam a Dinamarca e a Suécia, que não sendo membros, replicam o que é feito pelos países da zona euro.
Por isso escolheu que Portugal integrasse a zona euro.
Eu fui sempre um defensor de que Portugal ficasse na linha da frente dos aprofundamentos da União Europeia. Lembro-me bem quanto discuti e analisei e estudei para saber se Portugal devia ou não integrar a zona do euro como membro fundador. Sabia quais eram os custos, estudei e mandei analisar aprofundadamente quais seriam os benefícios. Não tive a mínima dúvida de que Portugal devia entrar para a zona do euro, da qual só sairá se enlouquecer.
Muitos economistas disseram que Portugal não estava preparado para entrar na moeda única com aquelas taxas de conversão.
Discordo totalmente. Já imaginaram o que teria acontecido se a Espanha tivesse entrado e Portugal não? Como veriam Portugal países como Angola, Moçambique, Brasil, se Portugal estivesse fora do núcleo duro e a Espanha, França e a Itália dentro? Já imaginaram, num tempo em que o centro de gravidade se deslocava para Leste e situando-se Portugal na periferia da Europa, como ficaria ainda mais periférico por não estar no centro com aqueles que decidem verdadeiramente o futuro da União? L.M. e P.S.G.
“NÃO CONSIGO IMAGINAR SITUAÇÃO MAIS DIFÍCIL DO QUE CONDUZIR UM PAÍS NA GUERRA”
O último livro que li foi “A Hora Mais Negra”. Foi-me oferecido, muito antes de o filme chegar a Portugal, pela minha antiga assessora para a juventude. Trata-se de um relato minucioso da vida de Winston Churchill nos seus primeiros 30 dias de primeiro-ministro na condução da guerra. Antes disso, Churchill era um político bastante desacreditado, por vários falhanços enquanto membro do Governo inglês. E eu conhecia mal essa fase. Mas revejo-me muito na forma como este autor, Anthony McCarten, trabalhou: a preocupação de rigor e pormenor. É uma forma muito semelhante de como trabalho para escrever as minhas memórias. Tenho um certo fascínio por Churchill, já tinha lido as “Memórias da Segunda Guerra Mundial”, um livro de mil páginas que li com grande interesse, a biografia dele de Martin Gilbert e quando comecei a ler este livro não parei. Porque fui primeiro-ministro e não consigo imaginar situação mais difícil do que conduzir um país na guerra. Naquela altura, as tropas alemãs de Hitler já tinham ocupado a Polónia, a Checoslováquia, a Dinamarca, a Holanda, a Bélgica e avançavam sobre Paris. Já tinham quebrado várias defesas francesas. O que é decidir sobre a vida dos soldados, resistir em Calais, até conseguir embarcar a força expedicionária que estava em Dunquerque: “Resistam até ao último homem!” Churchill como que se transfigurou tendo em vista o que tinham sido os seus falhanços anteriores e revela-se exímio na retórica, no uso da palavra para conseguir manter a vontade de combater do povo, do gabinete dele próprio, do Parlamento e do Governo francês! Ele tomava o avião e ia a França reunir-se com o gabinete de guerra para conseguir manter o ânimo de Paul Reynaud. Uma história engraçada em França, conta ele: “Desembarquei, procurei o ministro dos Negócios Estrangeiros, disseram-me que não estava em casa, estava com a amante; procurei o primeiro-ministro, disseram-me que não estava em casa, estava com a amante.” Ele usa a palavra de tal forma que foi escrito que atirou a língua inglesa para o campo de batalha. É um dos maiores políticos do século XX. Ele tinha a sensação — e o gabinete também — de que a Inglaterra estava sozinha. Roosevelt não tomava a decisão de o apoiar exceto na venda de algum material. O autor do livro argumenta que Churchill chegou a pensar num acordo com Hitler, mediado por Mussolini. Eu prefiro acreditar que foi apenas tática para evitar a demissão de Lord Halifax. Prefiro reter a imagem de um Churchill herói.
Agora vejo filmes em casa, na televisão. Estou na fase de explorar a Netflix, vi a série “The Crown”, gostei imenso; vi e gostei menos da do Marco Polo; os filmes da Meryl Streep costumo vê-los todos. Depoimentos recolhidos por Luísa Meireles e Pedro Santos Guerreiro