PARADISE PAPERS

INVESTIGAÇÃO Operadora Appleby ignorou relatório da ONU e aceitou gerir offshores de um empresário português referido no escândalo da compra de petróleo a Saddam Hussein

Descobre-me se puderes

Texto Micael Pereira Infografia Jaime Figueiredo

Um dos portugueses que aparecem nos “Paradise Papers” aparece também em “Virunga”, um filme produzido por Leonardo DiCaprio para a Netflix e nomeado nos Óscares de 2015 para melhor documentário. Surge por breves segundos, ao minuto 30, a falar em francês num evento ao ar livre em África sobre o que parece ser uma promessa: “Nos próximos anos este país pode tornar-se um produtor de petróleo”. O Governo da República Democrática do Congo tinha atribuído uma concessão a uma empresa britânica, a SOCO International, para explorar petróleo no lago Edward, numa área centrada no Parque Nacional de Virunga, o último refúgio do mundo para os gorilas de montanha.

Rui Cabeçadas de Sousa, o português em causa, era e é o chairman da SOCO International, a empresa retratada como uma vilã no documentário. A SOCO, que está listada na bolsa de Londres e tem outro português como administrador não-executivo, António Monteiro, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo embaixador de Portugal na ONU e na República Democrática do Congo, subcontratou gente local que foi filmada clandestinamente, com uma câmara oculta, a subornar funcionários do Parque Nacional de Virunga, numa estratégia de sabotagem para conseguirem desclassificar a área protegida e poderem assim prosseguir com a exploração de petróleo.

A equipa de produção do filme ainda hoje mantém no ar uma campanha em que pede às pessoas para verificarem se não estão a investir por engano na SOCO e publicou uma lista online com os donos da empresa. Além de chairman, Rui de Sousa é também um dos principais acionistas individuais da empresa de exploração e produção de petróleo, com quase nove milhões de ações.

Na lista publicada pela equipa do documentário, essas ações estão em nome de uma companhia offshore, a Palamos Limited. É aí que entra a Appleby, uma operadora de offshores fundada nas Bermudas e a principal origem dos “Paradise Papers”, um conjunto de várias fugas de informação obtidas pelo jornal alemão “Süddeutsche Zeitung” e partilhadas com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) e uma rede de mais de 380 jornalistas e 96 parceiros de media em 67 países, incluindo o Expresso em Portugal. Rui de Sousa, residente na Avenue Princesse Grace, no Mónaco, foi cliente do escritório da Appleby nas Ilhas Caimão. É um dos cerca de 70 cidadãos portugueses identificados até ao momento em quase sete milhões de ficheiros da operadora de offshores (ver texto ao lado).

Incorporada em maio de 2000 nas Ilhas Caimão, a Palamos Limited foi gerida pela Appleby entre 2006 e 2009, depois de a operadora de offshores ter comprado uma concorrente, a Ansbacher Bank and Trust Company (Cayman), e ficado com a sua carteira de clientes. A Palamos tinha 19 milhões de dólares declarados como ativos no final de 2006 e estava associada a um trust, o Rui de Sousa Trust, tendo como beneficiários o empresário, os filhos e a mulher. Além da Palamos, havia outra companhia offshore, a Forestal Limited, através do qual o chairman da SOCO era dono de um apartamento no centro de Austin, nos Estados Unidos.

Uma das obrigações que as operadoras de offshores têm de cumprir é verificar quem são os seus clientes para evitarem o risco de poderem estar a ser cúmplices de esquemas de lavagem de dinheiro e, sempre que se justificar, recusar prestar serviços a indivíduos ou empresas cujas fontes de rendimento tenham origens suspeitas.

Um nome nas notícias

Em outubro de 2005, um relatório com os resultados de uma investigação da ONU ao escândalo relacionado com o programa “Petróleo por Alimentos”, que aquela organização manteve entre 1997 e 2003, durante o regime de Saddam Hussein, identificou Rui de Sousa como um de dois portugueses implicados num esquema de alegados subornos e de violação do embargo a que Iraque estava sujeito, envolvendo a venda de petróleo não declarado. O relatório de 630 páginas foi divulgado publicamente e a agência Lusa noticiou o nome dos portugueses. Mas, de acordo com a análise que o Expresso fez aos ficheiros dos “Paradise Papers”, o departamento de compliance da Appleby não mencionou uma única vez a investigação da ONU e Rui de Sousa nunca foi considerado um cliente de risco.

Confrontado por escrito pelo Expresso com várias questões, um porta-voz de Rui de Sousa em Londres informou que o empresário não faz comentários. Uma fonte próxima do empresário admitiu que os dividendos recebidos através da Palamos foram declarados às autoridades fiscais das Ilhas Caimão — o que significa, na prática, 0% de impostos pagos — e assegurou que em relação ao relatório da ONU nunca foi provado que Rui de Sousa tenha cometido qualquer crime.

A 28 de outubro de 2005, no dia a seguir à divulgação dos resultados da investigação ao escândalo “Petróleo por Alimentos”, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) emitiu uma nota em que dizia: “A natureza do envolvimento deste cidadão no caso das violações ao regime de sanções aplicado pelas Nações Unidas ao Iraque será, desde já, analisada em pormenor pelas autoridades nacionais competentes, estando, também neste caso, o Governo português inteiramente disponível para colaborar com as competentes autoridades de investigação internacionais.”

Contactado pelo Expresso, o gabinete de imprensa do MNE esclareceu que, depois de os serviços internos terem consultado os arquivos, nada foi encontrado que indique qualquer seguimento do assunto. Na Procuradoria-Geral da República foi localizado um inquérito-crime relacionado com o escândalo da ONU, aberto em maio de 2005 mas entretanto arquivado.

Em maio de 2008, a revista “The Economist” dava conta de que apenas sete pessoas tinham sido condenadas no mundo inteiro até essa altura por causa do caso “Petróleo por Alimentos” — apesar de terem sido referidas mais de 2200 empresas pela ONU associadas a um total de quase dois mil milhões de dólares em pagamentos ilegais feitos ao regime de Saddam Hussein. E de as provas recolhidas por uma equipa liderada por Paul Volcker, antigo presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, incluírem documentos e testemunhos comprometedores do ministro iraquiano do Petróleo. Rui de Sousa foi descrito na investigação como um facilitador entre a Trafigura, um dos maiores traders de metais e energia do mundo, e a SOMO, a empresa estatal iraquiana responsável pelas vendas de petróleo.

Em outubro de 2001 um petroleiro ao serviço da Trafigura com 200 mil barris de petróleo não declarados acabou por ser intercetado pelas autoridades em Curaçau depois de o capitão do navio ter denunciado a situação a um inspetor da ONU. Era o segundo carregamento naquele navio em que isso acontecia. Parte do petróleo estava para ser vendido a duas empresas de Houston, no Texas. Em maio de 2006 a Trafigura assumiu-se como culpada num tribunal federal nos Estados Unidos, aceitando pagar uma multa de oito milhões de dólares.

Além dos “Paradise Papers”, Rui de Sousa já tinha sido identificado nos “Panama Papers” — e o seu nome consta da base de dados que passou a estar online e é acessível publicamente —, mas não tinha sido objeto de nenhum artigo do Expresso. A companhia offshore a que surge associado como beneficiário nos “Panama Papers”, a Quantic Invest Management Limited, está ligada a outro caso denunciado por uma investigação da Global Witness e incluído num relatório de 2008 sobre offshores da Comissão do Tesouro da Casa dos Comuns, no Reino Unido. Segundo esse relatório, a Quantic estava a comprar petróleo abaixo do preço de mercado à petrolífera estatal do Congo-Brazzaville, a SNPC, enquanto uma empresa privada do CEO da petrolífera estava envolvida num negócio com a SOCO International.

Clientes sim, mas a viver lá fora

Tirando os nomes ligados ao GES e ao BPN, a maioria dos portugueses identificados até agora nos “Paradise Papers” está ligada ao mercado imobiliário de luxo (oito nomes) ou baseada noutros países: China, Reino Unido, Brasil, Bermudas, Índia, Panamá, Suécia, Suíça, Rússia e Irlanda. Em muitos casos trata-se de gestores em empresas financeiras ou funcionários da própria indústria de offshores.

No banco russo Renaissance Capital, por exemplo, que é cliente da Appleby, o Expresso identificou um administrador português associado a um das sociedades offshore com que o banco do multimilionário Mikhail Prokhorov é controlado, sediada nas Bermudas.

Em Macau, dois advogados residentes no antigo território português, João Encarnação e Gonçalo Mendes da Maia, sócios do escritório MdME, aparecem nos ficheiros porque lhes foi passada uma procuração pela proprietária da PokerStars, a maior sala online de póquer do mundo. A PokerStars é detida por uma companhia na Ilha de Man, a Rational Entertainment Enterprises, que usou os serviços da Appleby, que por sua vez registou a procuração em nome dos advogados portugueses. A procuração permite-lhes representar a empresa junto das autoridades macaenses responsáveis pelo registo de propriedade intelectual da marca PokerStars. Nenhum dos advogados respondeu às perguntas do Expresso.

BPN e BES usaram a Appleby nas Caimão

Dos cerca de 70 cidadãos portugueses que estavam registados na operadora de offshores, 17 eram acionistas e administradores do GES

Os bancos envolvidos nos dois maiores escândalos financeiros das últimas décadas em Portugal recorreram aos serviços da operadora de offshores Appleby. Quer o Banco Português de Negócios (BPN) quer o BES foram clientes daquela sociedade de advogados fundada nas Bermudas e que está na origem dos “Paradise Papers”. Entre os 70 cidadãos portugueses que surgem registados como clientes ou como representantes de empresas clientes da Appleby, há 17 que estão ligados ao Grupo Espírito Santo, por terem sido acionistas ou administradores, e há cinco nomes que surgem associados ao BPN.

Em ambos os casos, a relação com a Appleby resumiu-se ao escritório que esta operadora possuía nas Ilhas Caimão. O Grupo Espírito Santo era cliente, na verdade, de outra operadora, a Ansbacher Trustees, que foi absorvida em 2005 pela Appleby Trust (Cayman).

Além do próprio Ricardo Salgado, líder do GES e presidente do BES, estavam registados na Appleby elementos do núcleo duro de acionistas da família, incluindo o seu primo José Maria Ricciardi. E também constava o ex-ministro da Economia Manuel Pinho, que foi administrador no grupo.

A Appleby tratou da burocracia de três companhias do GES registadas nas Ilhas Caimão: uma filial local do BES; um veículo de financiamento com nome de Espirito Santo Overseas Limited; e ainda o Bank Espírito Santo International Limited (ou BESIL). A mais antiga das três entidades, a Espirito Santo Overseas Limited, foi criada ainda em 1993 para financiar operações do BES a partir das Ilhas Caimão. Um porta-voz de Salgado informou o Expresso que o antigo banqueiro não comenta o assunto.

Abdool Vakil: “Nunca”

Quanto ao BPN, um dos nomes que aparecem é de Abdool Vakil, banqueiro que chegou a presidir ao banco antes do seu colapso e da sua nacionalização no final de 2008. O atual presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa já utilizava a operadora de offshores para serviços prestados a uma empresa sua registada nas Ilhas Caimão em 1984, a Gemini Financial Services Limited.

Contactado pelo Expresso, Vakil nega qualquer relação com a Appleby (cujo escritório nas Ilhas Caimão se chamou, até determinada altura, Huntlaw). “Nunca recorri pessoalmente aos serviços da Huntlaw/Appleby, nem nunca tive qualquer titularidade da referida Gemini.”

Estas afirmações contrastam com o que escreveu num e-mail a 7 de dezembro de 2010 dirigido a Sherice Arman, sócio da Appleby nas Ilhas Caimão, de acordo com os ficheiros encontrados nos “Paradise Papers”: “Depois de 26 anos de trabalho com a Huntlaw e mais recentemente com a Appleby, decidi mudar a Gemini para outra jurisdição e criei outra empresa com o nome Gemini Financial Services Partners Limited nas Ilhas Virgens Britânicas que será administrada pela Gestrust em Genebra, que é o meu trust.”

Nesse mesmo e-mail, Vakil dava instruções: “Peço-lhe que transfira o saldo da conta mantida pela Gemini no Cayman National Bank para a conta que a senhora Fanny Bushi da Gestrust Limited lhe irá indicar em breve.”

O banqueiro nega também que tenha sido por sua iniciativa que a Appleby passou a ter como cliente o BPN: “Não sei nada do que se passava a esse respeito no então BPN”. A correspondência descoberta na fuga de informação dá conta de que interveio na relação do banco com a operadora de offshores. Num e-mail que enviou a Bruce Putterill, da Appleby, a 4 de março de 2008, escreveu: “Também gostaria de abordar consigo um assunto relacionado com o nosso banco nas Caimão para ver se nos pode ajudar com isso. Já tinha falado consigo sobre o tema. Vou pedir à minha chefe do internacional, a senhora Maria Duarte, que me dê um briefing sobre o assunto e então ou ela ou eu ou alguém falaremos consigo”. Maria Duarte era a diretora da Direção Internacional do BPN e Vakil tinha acabado de ser nomeado, no mês anterior, presidente do banco.

Em 2006 o BPN Cayman lançou uma emissão de papel comercial no valor de mil milhões de euros com a ajuda da Appleby. E em 2007 investiu 724 mil euros num fundo gerido pela Eden Rock Capital Management (a empresa de hedge fund do noivo de Pippa Middleton) através da Appleby. Isso levou a que a Parups, SA, uma das empresas criadas pelo Estado para gerir os ativos tóxicos do BPN, passasse a constar em 2015 como cliente da operadora de offshores. Pelo facto de se tratar de uma empresa pública, os administradores da Parups eram os únicos cidadãos portugueses identificados em 2016 como “pessoas politicamente expostas” (PEP) na lista de clientes da Appleby. M.P.

Apple defende o uso de offshores

ARGUMENTOS Os “Paradise Papers” mostram como a maior empresa dos Estados Unidos, a Apple, montou nos bastidores uma estrutura offshore em Jersey, uma ilha no Canal da Mancha, para resolver os problemas que passou a ter com a Irlanda, onde em 2014 pagou apenas 0,005% de taxa de imposto sobre todos os lucros obtidos fora dos EUA. Num comunicado divulgado esta semana, a Apple diz que tem uma atitude responsável, que é o maior pagador de impostos do mundo e que a mudança para Jersey não reduziu o que já paga.

€11

milhões foi quanto a rainha de Inglaterra investiu num fundo de investimento nas Ilhas Caimão. O staff de Isabel II disse entretanto que a rainha paga impostos no Reino Unido, apesar de estar isenta

Um efeito colateral na Casa Branca...

DESPROMOÇÃO Wilbur Ross não foi demitido do cargo de secretário do Comércio de Donald Trump depois de ter sido revelado pelos “Paradise Papers” que o empresário manteve, através de offshores, uma posição importante numa companhia que vende gás para uma empresa russa do genro de Putin. Em contrapartida, a revista “Forbes” retirou o nome dele da lista dos 400 americanos mais ricos, depois de saber que Ross informou ter menos de 700 milhões de dólares em ativos na declaração de interesses que entregou quando tomou posse no Governo em 2016. A revista tinha publicado que ele valia 2,9 mil milhões no ranking do ano passado, com base em informação prestada pelo próprio. “Parece-nos claro que mentiu.”

... mas ainda não para o clã Trump

RÚSSIA A revelação de que Yuri Milner, um sócio russo de Jared Kushner, o genro e também conselheiro de Donald Trump na Casa Branca, canalizou investimentos de empresas estatais russas no Facebook e no Twitter não teve consequências para já. Mas há quem acredite que Kuhner possa ser indiciado no caso do conluio com a Rússia.

SALA PRÓPRIA Com um volume de negócios de 130 mil milhões de euros, é uma das maiores empresas do mundo a explorar minério e no comércio de petróleo e carvão e era um cliente tão importante da Appleby, a operadora de offshores que está no centro da fuga de informações investigada pelo ICIJ, que tinha direito a uma sala própria. Documentos encontrados nos “Paradise Papers” “revelam como a empresa pagou 45 milhões de dólares a um milionário israelita, Dan Gertler, para este conseguir obter um contrato com a República Democrática do Congo.

“Jornal de Angola” publica caso

ZENU Uma das histórias dos “Paradise Papers” conta a forma como um gestor suíço usou as Maurícias para canalizar dinheiro do Fundo Soberano de Angola presidido por José Filomeno dos Santos (Zenu), filho de José Eduardo dos Santos. Os factos foram publicados pelo órgão oficial do regime, o “Jornal de Angola”, no meio de um desmentido.

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dias foi quanto o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, demorou para dizer que ficou satisfeito com as explicações dadas pelo principal angariador de fundos para a sua campanha sobre uma offshore nas Caimão

Ministro no Brasil fala em caridade

JUSTIFICAÇÃO Henrique Meirelles, ministro das Finanças do Governo brasileiro, justificou que uma fundação criada por ele nas Bermudas vai servir para apoiar “instituições de solidariedade”. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, também apanhado, usou outra justificação para uma offshore: não é “beneficiário direto”.

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