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ANGOLA Uma fuga de informação obtida pela “Der Spiegel” e partilhada com o consórcio EIC, de que o Expresso faz parte, revela como Isabel dos Santos, filha do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, manobrou nos bastidores de modo a ganhar um contrato de 4,5 mil milhões de dólares para a construção de uma barragem, aprovado por um decreto presidencial assinado pelo pai em 2015
Um último presente de pai para filha
Micael Pereira
Isabel dos Santos é dona oculta de quase 40% do consórcio da barragem de Caculo Cabaça Foto Rui Duarte Silva
Quando estiver pronta, dentro de cinco anos, vai criar um lago com 16 quilómetros de comprimento no meio do rio Kwanza. Toda essa água será retida por uma parede de 100 metros de altura e 520 metros de comprimento. É a maior obra pública a ter sido aprovada pelo regime de Angola já depois de o país ter entrado em recessão, na sequência da queda abrupta do preço do petróleo, que representa 97% das suas exportações.
A primeira pedra da barragem de Caculo Cabaça foi lançada a 4 de agosto deste ano na província do Kwanza Norte pelo Presidente José Eduardo dos Santos num dos seus últimos atos à frente do Governo, antes de abdicar do poder aos 74 anos e ao fim de quase quatro décadas no cargo, substituído pelo vencedor das eleições gerais deste mês, realizadas a 23 de agosto.
Zedu, como é também conhecido, quis despedir-se em grande. Caculo Cabaça é uma obra ainda mais ambiciosa do que a barragem que o Presidente tinha inaugurado na véspera, no mesmo rio mas noutra província, Malanje, mais para o interior. Construída pelos brasileiros da Odebrecht, uma das empresas envolvidas no escândalo de corrupção ‘Lava Jato’, a barragem de Laúca custou 4,3 mil milhões de dólares. A barragem de Caculo Cabaça custará ainda mais: 4,5 mil milhões de dólares, o equivalente a 5% do PIB de Angola e ao orçamento anual do Estado para a educação. Mas não serão os brasileiros a fazê-la, desta vez serão os chineses.
Com uma potência prevista de 2172 megawatts, o suficiente para abastecer de eletricidade mais de dois milhões de casas, o projeto de Caculo Cabaça foi adjudicado no verão de 2015 a um consórcio liderado pela CGGC, uma das maiores empresas de construção na China, com uma faturação de 1600 milhões de dólares em 2014. Uma fuga de informação obtida pela revista alemã “Der Spiegel” e partilhada com o EIC (European Investigative Collaborations), uma rede internacional de jornalismo de investigação de que o Expresso é parceiro, mostra que os chineses não ganharam a obra sozinhos. Têm ao lado um parceiro oculto, que nunca deu a cara mas tem quase 40% do consórcio: a filha mais velha do Presidente, Isabel dos Santos. Uma boa parte do dinheiro ficará para a família.
Dezenas de e-mails trocados ao longo de vários meses entre os advogados e gestores de Isabel dos Santos, os parceiros chineses da CGGC e o Ministério da Energia e Águas angolano expõem o modo como a adjudicação multimilionária foi montada nos bastidores antes de José Eduardo dos Santos ter assinado um decreto presidencial a 11 de junho de 2015, em que aprovava o contrato público com o consórcio liderado pelos chineses, pelo valor de 490 mil milhões kwanzas (a moeda local), com recurso a um empréstimo a ser concedido ao Estado angolano pelo banco chinês ICBC. A troca de correspondência obtida pelo EIC inclui e-mails da própria filha do Presidente, em que se percebe que Isabel dos Santos teve a última palavra a dizer no negócio, ao mesmo tempo que os seus advogados garantiam que o nome dela não constaria de nenhum documento relacionado com o consórcio.
O envolvimento de Isabel dos Santos no projeto de Caculo Cabaça já tinha sido revelado em abril num artigo do jornalista e ativista angolano Rafael Marques, publicado no seu blogue, ‘Maka Angola’, em que a filha do Presidente era descrita como a principal beneficiária do financiamento da barragem. Rafael Marques sustentava a notícia no facto de duas empresas relacionadas com o consórcio apontarem para a filha do Presidente: a 2I’S — Sociedade de Investimentos Industriais, S.A. por ter como sede uma das residências privadas da empresária; e a Boreal Investments Limited, por ser detida por Fidel Araújo, um advogado angolano que costuma representar os negócios de Isabel dos Santos. Além de ser o acionista oficial da Boreal, Fidel Araújo deu a cara pela 21’S quando esta empresa foi registada em Luanda tendo como donos meia dúzia de cidadãos anónimos.
De acordo com o artigo de Rafael Marques, a 2I’S — Sociedade de Investimentos Industriais, S.A. detém a meias com outra empresa (a CGGC-Engenharia de Angola, Lda., subsidiária local da CGGC) uma sociedade de nome CGGC & Niara Holding, Limitada. E essa relação é importante para perceber o primeiro e-mail em que a barragem de Caculo Cabaça aparece referida.
A fuga de informação obtida pelo EIC não só corrobora o que Rafael Marques escreveu sobre o envolvimento de Isabel dos Santos através de um testa de ferro, como acrescenta alguns factos relevantes.
A 28 de abril de 2015, uma advogada da GLA Advogados em Luanda escreve a uma colega em Lisboa da PLMJ, um das maiores sociedades de advocacia em Portugal. A GLA advogados presta serviços aos clientes da PLMJ em Angola. No e-mail, a advogada em Luanda confessa-se confusa sobre a CGGC&Niara Holding, depois de ter recebido no escritório um chinês com um cartão de visita da CGGC que lhe falou dessa empresa. Está preocupada com um potencial conflito de interesses. Terá essa CGGC&Niara Holding alguma coisa que ver com a avença que a CGGC mantém com o escritório? A colega de Lisboa, Inês Pinto da Costa, explica-lhe que acredita não haver nenhum conflito de interesses em acumularem essa avença com o facto de assessorarem a Niara Holding na negociação do contrato de obras públicas de Caculo Cabaça, em que a Niara “estará em consórcio com a CGGC”. Noutro e-mail a advogada de Lisboa acrescenta que a CGGC & Niara Holding Lda., “é a joint-venture que eles criaram para estes projetos que estão a fazer em conjunto”.
A Niara Holding angolana — que formalmente é detida pela 2I’S — tem o mesmo nome que outra sociedade criada em 2009 na ilha da Madeira, da qual Isabel dos Santos se assumiu como acionista única até 2013, quando 10% do capital social foram cedidos a uma empresa sediada no Chipre, Carana Management LTD, cujos beneficiários são desconhecidos, ao mesmo tempo que manteve em seu nome os outros 90% das ações. A Niara Holding madeirense serviu para a empresária angolana comprar uma das maiores empresas de engenharia portuguesas, a Efacec Power Solutions, especializada em energia, incluindo estações de produção elétrica para barragens, em que teve como parceira minoritária, nessa aquisição, a companhia pública angolana de distribuição de eletricidade, a ENDE.
Uma ajuda portuguesa
Alguns dias depois da troca de e-mails entre os escritórios em Lisboa e Luanda sobre um eventual conflito de interesses, a 4 de maio de 2015 a advogada Inês Pinto da Costa envia para uma empresa sediada também na capital portuguesa, a Fidequity, uma versão revista de um esboço de contrato de empreitada entre o Ministério da Energia angolano e a CGGC&Niara Holding, Lda., para a primeira fase das obras em Caculo Cabaça, de desvio temporário do rio Kwanza. Inês Pinto da Costa é a advogada no escritório da PLMJ que, nesta altura, gere os assuntos de Isabel dos Santos. Há muito tempo que a empresária angolana é uma das clientes mais notórias da PLMJ. E a Fidequity é a empresa de gestão da filha do Presidente para todos os seus negócios dentro e fora de Angola, tendo à sua frente um português, Mário Leite da Silva, que foi o chief financial officer do homem mais rico de Portugal, Américo Amorim, até ter sido contratado pela empresária em 2006. Quem está à frente do dossiê de Caculo Cabaça na Fidequity é Vasco Rites, um gestor especializado em estruturas financeiras e em imobiliário contratado em 2010 à PricewaterhouseCoopers, uma consultora com que Isabel dos Santos também costuma trabalhar.
A maioria dos e-mails sobre a barragem é trocada entre Vasco Rites e Inês Pinto da Costa, mas os homens da CGGC estão também envolvidos. Bem como a própria Isabel dos Santos. A 8 de maio de 2015, um funcionário da CGGC em Luanda que assina com o nome de Ricardo mas usa o endereço eletrónico de Shang Zhipeng, o representante local da empresa chinesa, envia um e-mail a Vasco Rites em que a filha do Presidente está em CC. O homem da construtora chinesa escreve: “Remeto em anexo a memória descritiva e justificativa da nossa proposta que a sra. Isabel me solicitou que lhe enviasse.” E depois acrescenta: “É-nos pedido que preparemos todos os documentos contratuais, incluindo os documentos de pré-qualificação, as propostas comerciais e técnicas, e acordo de contrato”. Ricardo pede ajuda ao gestor da Fidequity: “Gostaríamos que o senhor, dr. Vasco, nos desse sugestões para concluirmos este trabalho, já que o empreiteiro será um consórcio composto pela CGGC International, pela Niara e pela CGGC & Niara Holding. Se nos deixar preparar a documentação de pré-qualificação, envie-nos então por favor os documentos relevantes da Niara. Além disso, os esboços da proposta técnica devem ser alterados de forma a terem um novo nome do atual consórcio. Gostaríamos que o senhor desse o nome ao consórcio.”
Dezenas de emails trocados entre gestores, advogados e Isabel dos Santos expõem como a obra foi adjudicada
Três dias depois, a 11 de maio de 2015, Isabel dos Santos escreve a Vasco Rites, na sequência de troca de e-mails com a CGGC: “Tentei ligar agora, falei com o Ricardo e disse-lhe que, daquilo que pude entender no seu e-mail, a ideia seria consultarem a memória descritiva e justificativa de Matala e adequarem a do desvio [do rio] a algo parecido, concorda?” Matala é outra barragem, na província de Huíla, cujas obras de reparação terminaram meses antes, em março de 2015, e que tiveram o envolvimento da Efacec Power Solutions — a empresa portuguesa de engenharia que, nessa primavera de 2015, está em processo de ser comprada pela filha de José Eduardo dos Santos.
A 13 de maio, a advogada Inês Pinto da Costa diz a Vasco Rites que a proposta que está ser preparada “deveria prevalecer sobre o caderno de encargos”, tendo em conta “as circunstâncias” em que estão a negociar o contrato, dando a entender que têm o queijo e a faca na mão.
Um email enviado por Isabel dos Santos refere pela primeira vez o preço: 4 mil milhões. No fim, subirá para 4,5
Isabel dos Santos volta a escrever sobre o assunto quando a 26 de maio reencaminha para Inês Pinto da Costa, com o conhecimento de Vasco Rites, uma apresentação geral do projeto de Caculo Cabaça que lhe foi enviada no mesmo dia por He Youngjun, administrador da CGGC. “Boa tarde, dra. Inês, o pessoal da CGGC está a rever os documentos, proposta técnica do AHE [Aproveitamento Hidroelétrico] Caculo Cabaça. A ideia é, como ela foi preparada em dezembro de 2013 e [isso] já foi há muito tempo, evitar que ela contenha erros de tradução. Em anexo envio uma nota explicativa, para a dra. Inês ter uma ideia do projeto.”
Uma adjudicação obrigatória
Dois dias depois, a advogada remete a Vasco Pires uma proposta de memorando de entendimento com uma cláusula em que o Governo se comprometeria a garantir condições de exclusividade ao consórcio, impedindo que outras empresas pudessem concorrer para construir a barragem. “Incluí que o financiamento era condição de adjudicação da obra porque entendo que essa é a vossa vantagem competitiva que justifica o ajuste direto (não previsto na lei angolana)”, diz a advogada ao gestor da Fidequity. A cláusula não chegará a constar do memorando definitivo. Seria redundante. A obra vai ser financiada por um empréstimo concedido pelo banco estatal chinês ICBC, que a CGGC se compromete a obter para o Governo angolano. E o memorando diz de forma clara que se Luanda não contratar a construtora chinesa não haverá financiamento. “Na prática acaba a ser obrigatória a adjudicação à CGGC/Niara”, admite a advogada.
Um novo e-mail é enviado por Isabel dos Santos a 29 de maio. É endereçado a Vasco Rites e é a primeira vez que o preço da barragem é referido. Um total de 4 mil milhões de dólares mencionados num acordo de contrato de duas páginas com o Ministério da Energia. Por esta altura, há várias semanas que o gestor da Fidequity está a trocar correspondência com Fernando Barros Gonga, o diretor-geral do Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza (GAMEK), um departamento dentro do Ministério da Energia diretamente responsável pelo projeto da barragem. Têm estado a rever juntos os termos do contrato.
A partir daqui é preciso apenas uma semana para que, a 5 de junho de 2015, todos os documentos estejam concluídos e assinados. O custo da obra sobe, no entanto, de 4 mil milhões para 4,5 mil milhões de dólares. Do lado do Governo quem assina a adjudicação da barragem é Fernando Barros Gonga, o diretor-geral do GAMEK. O contrato com o Ministério da Energia estabelece que o pagamento da obra implica um adiantamento de 15% — 675 milhões de dólares — para cobrir os custos iniciais.
O formato do consórcio está entretanto fixado num acordo definitivo. É formado por um conjunto de três empresas. Além da China Gezhouba Group Company Limited (CGGC), com 60% do consórcio, e da CGGC&Niara Holding, Lda., com 2,5%, surge a Boreal Investments Limited, à qual é atribuída uma posição de 37,5%. Nos documentos a CGGC é representada por He Yongjun, a CGGC&Niara Holding, Lda. é representada por esse gestor chinês e por Fidel Araújo, enquanto a Boreal tem como procurador apenas este advogado angolano.
Na manhã desse mesmo dia, 5 de junho, Isabel dos Santos aprova por e-mail um memorando paralelo estabelecido entre o consórcio e o Governo em que o grupo de empresas se compromete a investir até 50 milhões de dólares em “projetos de cariz social”, sendo que fica desde já obrigado a restaurar um centro público de formação em Luanda.
Uma empresa virtual
Mas o que é exatamente a Boreal Investments Limited? Criada em março de 2012 em Hong Kong, a companhia não tem site oficial e está completamente fora do radar nas buscas do Google. Nos documentos que constam da fuga de informação a Boreal está identificada como uma empresa constituída com um capital social de 10 mil dólares de Hong Kong e com sede social numa sala no 12º piso de um edifício na ilha de Kowloon pertencente a uma companhia que oferece escritórios virtuais. A Boreal não tem nem escritório próprio nem, muito provavelmente, trabalhadores. No acordo de consórcio assinado com os chineses é descrita como tendo “amplos conhecimentos na gestão de projetos” e “os recursos para realizar a participação nos trabalhos determinada no anexo 1” do documento. No entanto, o anexo 1 não vai além de seis linhas, contando já com o título. Apenas diz que a Boreal fica com 37,5% dos trabalhos.
Nos e-mails, o que de início aparece referido como Niara passa a constar como Boreal na véspera da assinatura do contrato com o Governo, numa indicação de que se trata de uma empresa que serve apenas para garantir a posição de Isabel dos Santos no consórcio.
Os advogados andam várias semanas atrás de Fidel Araújo, um testa de ferro, para ele entregar cópia do passaporte
Nas semanas a seguir à assinatura do contrato e à publicação, a 11 de junho de 2015, do decreto presidencial em que José Eduardo dos Santos aprova a adjudicação, os advogados andam atrás de Fidel Araújo para que este advogado entregue uma cópia do passaporte, uma prova de residência (um contrato de eletricidade ou água) e o seu curriculum vitae. Para isso recorrem à ajuda de uma gestora da Socip, uma holding de participações de Isabel dos Santos em Luanda. Depois de algumas tentativas infrutíferas, essa gestora queixa-se à advogada Inês Pinto da Costa: “Que chatice!!! Estou farta de insistir... Será que o Vasco não tem mais ‘poder’ sobre isto?!”, referindo-se a Vasco Rites, gestor de Isabel dos Santos na Fidequity, em Lisboa.
O CV de Fidel Araújo só chega à equipa de Isabel dos Santos a meio de julho. O advogado tem um currículo bastante curto: nasceu em 1976, licenciou-se em 2001 em Direito numa universidade de Lisboa e a partir de 2010 passou a fazer parte do conselho de administração de várias empresas da filha do Presidente. Primeiro como administrador na Urbinvest (planeamento urbano) e na Imogamek (imobiliário) e depois, desde 2014, na Hipergest (imobiliário) e na Condis (cadeia de hipermercados). Sobre o que andou a fazer entre 2002 e 2010 nem uma linha.
Fidel Araújo não respondeu às perguntas enviadas pelo Expresso. Nem Isabel dos Santos, a advogada Inês Pinto da Costa, o gestor Vasco Rites, o alto funcionário angolano Fernando Barros Gonga e He Yonggjun, administrador da CGGC.
Mais de um ano depois do contrato de Caculo Cabaça ter sido assinado, a 25 de outubro de 2016 a Boreal Investments muda a sua morada para outra sala num outro edifício da ilha de Kowloon. De acordo com um documento atualizado do registo comercial de Hong Kong, a empresa está agora sediada na suite 2611, na Langham Place Office Tower, no mesmo endereço de uma firma especializada no fornecimento de serviços fiduciários, a Lang Chao Limited, que até aí teve em seu nome todas as ações da Boreal. Nesse dia, no entanto, a Boreal passa a ter como único acionista e único administrador Fidel Araújo. Para todos os efeitos, é isso o que ele é oficialmente. Mas não nos bastidores. com Yann Philippin, Mediapart