EUROPA
ANTÓNIO COSTA Primeiro-ministro
“Não se pode fingir que não temos um elefante no meio da sala”
Texto Luísa Meireles Foto Alberto Frias
O euro é uma peça central da União Europeia e sem corrigir os seus erros não é possível avançar na Europa. Esta é a tese de António Costa, para quem os cenários sobre o futuro da União apresentados pelo presidente da Comissão Europeia não podem excluir esse “elefante”. Portugal quer conjugar cenários, até porque aqui há dois parceiros mais relutantes em termos europeus. Quanto aos resultados obtidos ri-se: passou de diabo a santo milagreiro.
Como avalia os cenários para o futuro da Europa?
Os cinco cenários encerram verdadeiramente duas perspetivas, uma de retrocesso — o de regressar a um mero mercado interno — e os outros são variantes de uma perspetiva de evolução: na continuidade, de geometria variável, de evoluções mais ambiciosas, mas limitadas, ou mais gerais. A primeira opção é se queremos retroceder ou desenvolver a União.
E quer desenvolver?
Sim. Aí, a evolução na continuidade é manifestamente insuficiente para os desafios que se colocam; a de evolução com geometria variável pode ser um mal menor, mas é perigosa do ponto de vista de dissolução do futuro da União; mesmo sendo otimista, o cenário de fazer mais em conjunto não corresponde ao nível de expectativas no Conselho; quanto ao fazer menos com mais eficiência, depende das opções que se fizerem, e pode até ser um bom método para todos trabalharem em conjunto.
Que opções deve a União fazer?
A UE deve focar-se em algumas áreas e aprofundá-las. Falo da política comercial para regular a globalização, migrações, combate ao terrorismo, completar a União Económico-Monetária (UEM) com o pilar social e mecanismos de prevenção de riscos e capacidade de responder aos choques assimétricos, dotar a zona euro de uma capacidade orçamental digna desse nome. Ao mesmo tempo, aprofundar a cooperação na defesa e política externa. As políticas de convergência e coesão e a política social não podem cair.
E Portugal?
Uma boa linha seria escolher prioridades e avançar com todos. É uma espécie de combinação da metodologia do quarto cenário com os conteúdos do quinto. Recuar para o mercado único não é um caminho a seguir. Se a Europa se arrastar na continuidade, alguns países poderão ser tentados a avançar sozinhos. Pareceu-me que a Alemanha e a França sinalizaram querer fazer menos com mais eficiência, e se nem todos quiserem podem fazê-lo eles.
Uma Europa a duas velocidades?
Pior, uma Europa de geometria variável. Já hoje os que querem fazer mais podem fazê-lo através das cooperações reforçadas (euro, Schengen), mas o que se prevê de novo é que possa haver uns grupos para o terrorismo, outros para outra coisa, agrupamentos variáveis na geometria e sem coerência. E isso é que é perigoso.
Portugal sempre defendeu a integração no núcleo duro.
E estaremos sempre no núcleo duro, temos de estar.
Isso não lhe cria problemas com os parceiros?
Temos uma visão diferente sobre a Europa, por isso falo por mim.
Quais são os grandes desafios da UE?
Os que a globalização coloca — nenhum Estado sozinho responde melhor do que a União. Por isso é fundamental uma política comercial para ajudar a regular a globalização; a necessidade de reforçar a coesão e a convergência para poder crescer e gerar prosperidade partilhada, o que significa completar a zona euro e dotá-la de capacidade orçamental; o desafio das migrações, do terrorismo, das ameaças externas, que implicam novos esforços da cooperação. Não podemos ter uma Europa à la carte. Se queremos avançar com consistência tem de haver um conjunto de áreas entendidas como núcleo duro onde é necessário ter políticas e avançar em conjunto. A pior coisa que a Europa pode fazer é uma fuga para a frente, querer criar novas áreas de aprofundamento sem resolver previamente os problemas que estão por resolver na UEM.
“Passar de diabo a santo milagreiro é um grande percurso”
E que também derivaram de um alargamento apressado?
A evolução política em diversos países do alargamento não existe por acaso e demonstra como dificilmente a 27 conseguiremos avançar para novos domínios. A União tem uma diversidade muito grande, o que implica atitudes completamente diversas perante muita coisa. Nós somos um país atlântico, abertos ao mundo, habituados ao intercâmbio cultural, a comerciar em todo o sitio, a uma língua global. Outros países da UE estão fechados no centro da Europa e têm uma longa tradição de ser sucessivamente esmagados por grandes impérios vizinhos, sem uma visão global do mundo, pelo contrário, de fecho identitário, autodefensivo contra os grandes impérios que os rodeiam. Isto implica atitudes completamente diversas perante as migrações, a política comercial, a circulação das pessoas, a capacidade de integração, a identidade com o espirito europeu. Percebo que alguns países revelem impaciência e achem que a 27 já não se consegue avançar mais e então sugiram adotar a solução da geometria variável. Não podemos condicionar o desenvolvimento do projeto europeu a bloqueios provavelmente duradouros em alguns países. Mas isso tem de assentar numa coerência.
Qual?
Por exemplo, a zona euro. Se repegarmos a frase do Engº Guterres, “euro, tu és euro, e sobre ti construiremos a Europa” e adotarmos a zona euro como base para construir uma cooperação na área da segurança e defesa, parece-me excelente. Mas para isso é preciso consolidar o euro, completando a UEM e retomar a convergência.
Mas a Alemanha não quer ouvir falar nisso, pelo menos em ano de eleições
Por isso é positivo o documento da Comissão, porque coloca vários cenários em aberto para estimular o debate, revela inconformismo perante a divisão no Conselho e não aceita ficarmos prisioneiros dos calendários eleitorais. É positivo que o presidente Juncker tenha tomado a iniciativa, não se tenha deixado paralisar e queira avançar. O calendário é inteligente: ideias gerais agora, e já deu por adquirido que o 60º aniversário em Roma não é ponto de chegada mas de partida para um debate.
Vai haver uma Declaração?
Que dirá generalidades neste contexto. Haverá uma referência ao euro, porque não é possível falar da Europa sem falar dele. Querer ignorar que na base da Europa temos um problema é pretender construir o que quer que seja sem consolidar os alicerces primeiro.
Portugal não assinará a Declaração se não constar essa referência?
Essas questões não são assim, há um espírito construtivo. O documento da Comissão identifica expressamente a necessidade de completar a UEM e reforçar as políticas de convergência e coesão. Temos de ser consequentes face ao diagnóstico. O calendário tem Roma, que é o ponto de partida com generalidades que todos aceitaremos, tem debate, uma declaração do presidente Juncker em Setembro com o discurso sobre o estado da união e decisões no Conselho no final de dezembro, já depois do ciclo eleitoral holandês-franco-alemão.
Prevendo já mudanças de tom?
Os resultados eleitorais condicionarão muito o que vai acontecer. Se a sra. Le Pen ganhar, grande parte desde debate já estará comprometido antes de chegarmos ao verão. Há muitas variáveis.
Como encara o aprofundamento da moeda única, tendo em conta a posição dos seus parceiros?
A posição que o PCP tem sobre o euro ou que o BE tem sobre aspetos do euro não são contraditórios com a necessidade de completar a união bancária ou de se ter uma capacidade orçamental que dote a zona euro de instrumentos que permitam repor a convergência. Respondem a necessidades identificadas por todos, que é o facto de o euro colocar exigências sobre a competitividade que acentuaram a divergência económica em benefício dos países mais desenvolvidos e claro prejuízo dos países da periferia. Não é um problema português, mas os números mostram que há cinco países que têm sido os grandes ganhadores do euro, um conjunto largamente perdedor e, depois há uma mancha de países com uma situação intermédia. O euro é uma peça central da UE, e não vale a pena fingir que não temos um elefante no meio da sala.
E que há que corrigir os erros...
Desde a unificação monetária nos Estados Unidos a seguir à guerra civil e a criação do dólar, que a teoria economia sabe que as uniões monetárias não corrigem as assimetrias, acentuam-nas. Portanto, têm de ter capacidade orçamental própria que permita redistribuir os ganhos assimétricos. A questão é quem distribui para quem. Temos de ter uma solução de equilíbrio. Não haverá estabilidade enquanto não houver convergência, isso é muito claro para todos e está assumido em vários documentos. Os estudos antes do lançamento do euro diziam que tinha de haver uma capacidade orçamental entre os 4-7% do PIB da União. Temos 1%. Durante muitos anos cometeu-se o erro de diabolizar os argumentos dos que sinalizaram as dificuldades, ou porque eram economistas americanos e queriam destruir o euro, ou eram céticos como o João Ferreira do Amaral. Para recusar as conclusões, não se deu atenção aos argumentos e eles eram válidos. Não vale a pena acreditar que os problemas da UEM se resolvem colocando-os debaixo do tapete e passando para a ambição de criar uma união de defesa. É um exercício que exige espírito de compromisso, ter em conta os pontos de vista diferentes, mas é assim que a Europa tem sido construída.
“A Europa não pode desperdiçar a oportunidade de ter um líder conhecido”
Tem feito o esforço de pôr na agenda os problemas dos países do sul.
Não há problemas dos países do sul, mas da UE. A interrupção do processo de convergência da periferia é um problema para o conjunto da zona euro. No dia 6, vão reunir-se em Versalhes os quatro maiores países, três dos quatro estiveram na conferência dos países do sul: França, Itália e Espanha, a par da Alemanha.
É um diretório de matriz latina?
Não. É positivo que os países façam debates em formatos diversos. É mais um esforço de reflexão conjunta e não tenho nenhum complexo em relação à dimensão de Portugal. Vejo com satisfação que algumas pessoas desvalorizaram muito a reunião dos países do sul, e quando três dos quatro maiores se reúnem, afinal passam a ser diretório.
Há sempre esse problema.
Só há diretório quando os outros se demitem de estar na linha da frente dos debates. Portugal não era maior quando Cavaco Silva fez a reforma da PAC, ou Guterres a Agenda de Lisboa, ou Sócrates o Tratado de Lisboa e alargou o espaço Schengen. O país foi sempre grande quando soube chegar-se à frente e ser proativo na política europeia.
Diz o otimista irritante.
Ex-otimista, agora realista. Está aritmeticamente demonstrado. Veja ao desespero que é preciso chegar. Passar de diabo a santo milagreiro é um grande percurso. Levámos quatro anos a ouvir que não existia alternativa àquela política, nove meses a ouvir dizer que a alternativa conduziria ao desastre e agora já só resta para desculpa que afinal houve um milagre. Mesmo os crentes sabem que Deus dedica os milagres a outras causas humanas.
A Europa este ano vai confrontar-se com uma série de acontecimentos dramáticos, a começar pelo Brexit.
Sim, há uma grande incerteza. Ainda esta semana a Câmara dos Lordes teve um voto muito importante ao definir que todos os cidadãos já residentes no Reino Unido não poderão ver os seus direitos restringidos. Portanto, teremos um longo caminho pela frente de negociação. Esta semana até podemos estar menos pessimistas quanto ao futuro dos nossos concidadãos. Quem diria que a aristocrática Câmara dos Lordes havia de ser o bastião da defesa dos direitos dos emigrantes? Até pode ser que Macron ganhe em França e Schulz na Alemanha e que este ano de todos os perigos se transforme num ano de oportunidades.
Como explica o facto de não existir o populismo em Portugal?
O que o alimenta é o medo e a ausência de respostas dos partidos com expressão parlamentar. Portugal, tal como vem sinalizado no Livro Branco, é um dos países mais seguros do mundo, por razões históricas e culturais temos tido capacidade de integração das comunidades migrantes, não estamos nas fronteiras das ameaças externas mais próximas e, questão essencial, conseguiu-se encontrar uma alternativa politica no quadro dos partidos tradicionalmente representados na AR. Se tivesse falhado a demonstração de que havia alternativa, seguramente surgiria de fora do sistema, como surgiu em outros países. Foi uma vantagem da geringonça.
Mas houve um recuo na adesão à Europa...
Nada fez pior ao europeísmo dos portugueses que os desastrosos quatro anos da legislatura anterior. A construção da visão de uma Europa como entidade punitiva foi tremenda, a incompetência que a troika revelou na gestão de todo o processo politico e a estratégia da gestão orçamental traçou danos profundíssimos nas convicções europeístas dos portugueses. Não fossem os portugueses e seguramente não teríamos uma maioria pró-europeia e até pró-euro. Isto significa que não podemos voltar a ignorar que o euro é uma moeda com duas faces, a da virtude e do problema. E portanto convém não ignorar a face do problema para que possamos valorizar as virtudes.
O Conselho Europeu da próxima semana vai debater o “Livro Branco”?
Pode ser que haja uma conversa, mas vai estar mais ocupado na escolha de quem vai ser o próximo presidente do Conselho.
A Polónia já disse que não apoia o atual.
As escolhas são simples: ou temos uma lógica de continuidade, e mantém-se Donald Tusk, que tem o apoio generalizado; ou porque não há consenso ou porque perante um novo quadro internacional, a Europa tem a necessidade de ter um novo rosto mundialmente reconhecível a liderar o Conselho Europeu. Não deve desperdiçar essa oportunidade. Dispõe de um chefe de Estado em termo de mandato e com projeção internacional, como François Hollande. O outro líder de dimensão europeia, Angela Merkel, já exprimiu a vontade de disputar eleições.
Portugal apoia Tusk?
Fazemos uma boa avaliação do seu trabalho e não vemos razão para não ser reconduzido.
Não o incomoda que o PPE detenha os três lugares nas mais importantes instituições europeias?
O equilíbrio entre famílias políticas tem de ser assegurado e há diferentes formas de o fazer. Se se mantiver Tusk, provavelmente será necessário redistribuir pelouros no seio da Comissão de forma a que nas áreas económicas e sociais o comissário socialista tenha um peso acrescido, por exemplo. Mas cada coisa a seu tempo.
JEAN-CLAUDE JUNCKER Presidente da Comissão Europeia
“A Europa não pode ser construída contra as nações”
FOTO Yves Herman/REUTERS
Nunca haverá um melhor momento para debater a situação da Europa, diz o presidente da Comissão Europeia que esta semana apresentou os cinco cenários (“não exaustivos” nem “exclusivos”) que encara para o futuro da União e que lançou para a discussão pública. Nesta primeira entrevista (por escrito) a um jornal português confessa: aos 15 anos era federalista e agora não acredita nos Estados Unidos da Europa.
Devemos entender este “Livro Branco” como uma espécie de legado da sua presidência?
Nunca ao longo da vida tomei decisões a pensar nos títulos dos jornais no dia seguinte, no próximo ciclo eleitoral, ou num qualquer julgamento pela história. É público que não me candidatarei a um segundo mandato à frente da Comissão, mas não vejo qualquer razão para agir de forma diferente.
No ano passado disse que a Europa vivia uma “crise existencial”. Este é um passo para sair dela? E ainda vai a tempo?
É um debate difícil, mas não haverá nem melhor momento nem outro momento para o fazer do que agora. Os cenários que apresentei esta semana assentam num diagnóstico muito lúcido da situação e dos desafios que nos esperam, numa altura em que muitos cedem à tentação do isolacionismo. O 60º aniversário do projeto europeu é motivo de celebração e orgulho, mas é também o momento de virar a página e assinalar o início da União Europeia a 27. Queremos enfrentar o futuro juntos, mas temos de discutir, refletir, envolver os cidadãos neste processo e fazer escolhas. A Europa sempre foi e será uma escolha consciente. Mas ao fazermos essas escolhas, hoje, amanhã, nos próximos dois anos, até 2025, teremos de estar plenamente informados das implicações que elas terão. Não para nós, mas para as gerações futuras. Ofereci elementos para suscitar o debate e também um calendário. Elaborarei as minhas ideias quando voltar ao assunto no meu discurso anual sobre o estado da União, em setembro. Até lá a Comissão apresentará uma série de contributos mais específicos, sobre a dimensão social, a defesa, o financiamento da União, o euro e a união monetária e a globalização. Espero que em dezembro os líderes dos 27 possam oferecer algumas conclusões, num processo que culminará nas eleições europeias de 2019.
Preferiu “dar a escolher entre várias opções” e não propor uma solução. A mensagem será mais bem entendida assim?
Foi minha intenção deliberada não apresentar posições definitivas da Comissão sobre este assunto. O meu modo de funcionar não é o das “executive orders”, tão na moda por estes dias. Temos de dar a palavra ao Parlamento Europeu, aos parlamentos nacionais, aos governos, à sociedade civil, aos cidadãos. A Comissão quer ouvir antes de decidir. Esta Comissão não dita nem impõe e eu prefiro ouvir antes de falar. Esta abordagem poderá desiludir alguns, mas é um método que honra a democracia. E penso que esta abordagem está a ser bem recebida, a julgar pela reação de vários países, nomeadamente Portugal. Foi com agrado que tomei conhecimento das palavras encorajadoras e de apoio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa — que irá visitar e reunir-se com a Comissão no dia 22 de março —, e do primeiro-ministro, António Costa, no próprio dia da apresentação do “Livro Branco”. Contamos igualmente com o seu empenho para levar este debate além dos circuitos em que habitualmente nos movimentamos, levá-lo às nossas cidades e regiões Europa fora. Queremos ouvir o que é que os nossos cidadãos esperam da União, as suas dúvidas, as suas questões, as suas esperanças. Depois, caber-nos-á responder.
Diz-se que tem uma preferência entre as várias opções — “Os que querem mais, fazem mais”. Ou seja, uma Europa a várias velocidades. É certo?
O que posso dizer é que quando tinha 15 anos era federalista e agora não acredito nos Estados Unidos da Europa. A Europa não pode ser construída contra as nações e os Estados-membros. Também lhe posso dizer que não aceito uma União Europeia reduzida ao estatuto de área de comércio livre. Os cinco cenários não são nem exaustivos nem mutuamente exclusivos: mais do que obrigar a uma escolha, obrigam a uma reflexão e à discussão. Dito isto, todos os cinco cenários estão em cima da mesa, embora nem todos colham o apoio espontâneo da Comissão. São perspetivas possíveis do ponto de vista teórico, são ideias, projetos que estão à nossa disposição. Neste momento a minha preferência é irrelevante até porque no final do processo não me caberá nem a mim nem à Comissão decidir orgulhosamente sós. L.M.