OPERAÇÃO MARQUÊS

INVESTIGAÇÃO Banqueiro pediu a presidente da Escom para fazer chegar, através de contas na Suíça, 12 milhões de euros a Carlos Santos Silva

Bataglia: Salgado chamou-me e pediu um favor

Micael Pereira e João Vieira Pereira

Ricardo Salgado à saída do TCIC, onde foi interrogado esta quarta-feira. Suspeito de cinco crimes, entre os quais corrupção, ficou impedido de sair do país e de falar com os outros arguidos da Operação Marquês FOTO MIGUEL A. LOPES/LUSA

Ricardo Salgado à saída do TCIC, onde foi interrogado esta quarta-feira. Suspeito de cinco crimes, entre os quais corrupção, ficou impedido de sair do país e de falar com os outros arguidos da Operação Marquês FOTO MIGUEL A. LOPES/LUSA

Passaram-se nove meses desde o momento em que Hélder Bataglia assumiu parte da verdade. Confrontado a 15 de abril de 2016 pelo Expresso e pelas primeiras revelações dos “Panama Papers”, o empresário luso-angolano admitiu na altura haver transferências de 12 milhões de euros, ocorridas em 2008 e 2009 e identificadas no caso de corrupção de José Sócrates, que vinham da Espírito Santo Enterprises, uma companhia offshore que funcionou como um gigantesco saco azul do Grupo Espírito Santo. Nesse momento, reconheceu que as transferências haviam sido feitas por ele para uma conta na Suíça de Joaquim Barroca, um dos donos do Grupo Lena, mas que o dinheiro nada tinha que ver com ele próprio ou com Barroca. Não quis adiantar mais nada. Quando dias depois, a 21 de abril, foi constituído arguido por corrupção e branqueamento de capitais e foi ouvido por procuradores angolanos em Luanda, a pedido do Ministério Público português, recusou-se a esclarecer os contornos desses 12 milhões de euros, “a conselho dos advogados“.

Tudo mudou em nove meses. Agora Hélder Bataglia falou. Por iniciativa própria, numa surpreendente aparição em Lisboa há três semanas, a 5 de janeiro, foi ouvido cara a cara por Jorge Rosário Teixeira, o procurador que coordena a investigação a Sócrates, para um interrogatório complementar. Foram dez horas de conversa. O que revelou irá ter implicações profundas no desfecho da ‘Operação Marquês’, porque reforça os indícios de culpabilidade do ex-primeiro-ministro. Pela primeira vez no inquérito-crime que está em curso no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), e quando a investigação do caso está prestes a terminar, há uma testemunha direta a contar como o alegado corruptor fez para pagar ao corrompido. E essa versão entronca na tese mais recente da ‘Operação Marquês’ de que o motivo para a corrupção de Sócrates foram as sucessivas intervenções do primeiro-ministro na Portugal Telecom, em conluio com a cúpula do Grupo Espírito Santo (GES), quer no chumbo em 2007 de uma OPA da Sonae e na separação da PT Multimédia quer mais tarde, em 2010, com a venda da Vivo e a compra da Oi, duas operadoras brasileiras que representaram a maior operação financeira de sempre em Portugal. O MP acredita que os alegados pagamentos a Sócrates, que começaram em 2007 através de um primo (José Paulo Pinto de Sousa), condicionaram a atuação do ex-primeiro-ministro nos negócios que viriam a envolver o GES e a PT.

PARA EXECUTAR O PLANO, BATAGLIA REUNIU-SE com SANTOS SILVA. Ao todo FORAM TRANSFERIDOS 12 MILHÕES DE EUROS EM SEIS TRANCHES

De acordo com Bataglia, Ricardo Salgado chamou-o à sede do Banco Espírito Santo (BES) para saber se ele lhe podia fazer um favor: queria usar uma das contas pessoais do empresário luso-angolano na UBS, na Suíça, para fazer chegar 12 milhões de euros de forma discreta a um homem chamado Carlos Santos Silva. Perguntou-lhe se sabia quem era esse engenheiro civil e empresário da construção. Bataglia, que era próximo da família de José Sócrates pelo lado dos primos paternos e do tio António Pinto de Sousa, sabia que se tratava de um amigo do então primeiro-ministro, mas não quis saber o motivo das transferências. Em troca pediu ao banqueiro que acrescentasse a esses 12 milhões um pagamento extra de três milhões para si próprio, como prémio pelo facto de ter obtido a licença bancária para o BES Angola (BESA) meia dúzia de anos antes. Foi isso que, segundo ele, ficou acordado com Salgado. Confrontado com estas acusações, o advogado de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho, afirma que “qualquer tese nesse sentido é completamente falsa e recentemente inventada por motivos que deviam ser investigados”.

Seis encontros nas Amoreiras

Para executar o plano alegadamente encomendado pelo presidente do BES e líder do Grupo Espírito Santo (GES), Bataglia teria de reunir com Carlos Santos Silva. O modus operandi foi simples: os 12 milhões de euros foram transferidos em seis tranches entre abril de 2008 e maio de 2009. E de cada vez que fez uma dessas transferências, Hélder Bataglia encontrou-se primeiro com Santos Silva no escritório em Lisboa da Escom, o braço não-financeiro do GES para África, de que o empresário luso-angolano era presidente. Ao todo foram seis encontros, ocorridos no 12º andar da Torre 1 do complexo das Amoreiras desenhado por Tomás Taveira. Contactada pelo Expresso, Paula Lourenço, a advogada de Santos Silva, diz que o seu cliente só irá falar “no momento e no local próprios, que é no processo”.

Assim que recebeu a primeira transferência diretamente relacionada com estes pagamentos, em abril de 2008, no valor de cinco milhões de euros, vinda de uma conta da Espírito Santo Enterprises no Banque Privée Espírito Santo para uma conta na UBS titulada pela Markwell International, uma das muitas offshores de que era beneficiário, Bataglia entrou em contacto com Carlos Santos Silva. O amigo de Sócrates foi ter com ele às Amoreiras e deu-lhe um papel com um número de conta na Suíça para onde o dinheiro deveria seguir. De acordo com Bataglia, ficou estabelecido entre ambos que os montantes não poderiam ter uma correspondência direta entre entradas e saídas e que era prudente fazer as transferências em datas diferentes daquelas em que tinham ocorrido os depósitos da Espírito Santo Enterprises na Markwell, para não levantar suspeitas.

O estratagema montado para dissimular o percurso entre a verdadeira origem e o verdadeiro destino do dinheiro envolveu, além disso, dois esquemas adicionais de que Bataglia, segundo explicou ao Ministério Público, só veio a aperceber-se mais tarde.

O primeiro subterfúgio foi a elaboração de contratos que justificassem os pagamentos feitos pela Espírito Santo Enterprises ao empresário luso-angolano através da sua offshore Markwell International. Para isso, o saco azul do GES criou um veículo especial, outra companhia offshore chamada Pinsong. Esses contratos constam dos “Panama Papers”, sendo que o Expresso revelou em julho de 2016 como foram forjados entre 2007 e 2008, com assinaturas pré-datadas combinadas numa troca de e-mails entre a Espírito Santo Services e a operadora de offshores Mossack Fonseca.

O segundo esquema para criar uma cortina de fumo foi o recurso a uma das contas na UBS de Joaquim Barroca, um dos donos do Grupo Lena, com quem Carlos Santos Silva trabalhava de forma estreita e de quem era amigo. Bataglia tinha recebido apenas um número de conta e foi alertado para o facto de estar a transferir dinheiro não para Carlos Santos Silva mas para Barroca pelo seu gestor de conta na UBS, um suíço de nome Michel Canals, com quem viria pouco depois a criar uma empresa de gestão de fortunas, a Akoya, que está no epicentro do processo ‘Monte Branco’. No encontro seguinte nas Amoreiras, antecedendo mais uma transferência de dinheiro, o próprio Carlos Santos Silva confirmou-lhe que era mesmo assim: o número de conta que lhe dera era de Joaquim Barroca. Esse dinheiro só depois é que passou para uma conta na UBS titulada por uma offshore, a Pinehill, cujo beneficiário era o amigo de Sócrates. Ao Ministério Público, o presidente da Escom contou que só conheceria o dono do grupo Lena muito mais tarde, em 2014, quando Barroca lhe foi apresentado pelo próprio Santos Silva em Angola.

O novo depoimento de Hélder Bataglia sobre os contornos dos 12 milhões de euros é consistente com os indícios que foram sendo acumulados ao longo dos últimos dois anos. Quando foi constituído arguido e interrogado, em abril de 2015, Joaquim Barroca contou que não fazia ideia que movimentos bancários eram aqueles e apontou o dedo a Santos Silva: tinha sido ele a usar a sua conta. Mais: Barroca revelou que tinha assinado ordens de transferência em branco e que as entregara ao amigo de Sócrates, levando o Ministério Público a duvidar sobre até que ponto poderia estar a dizer a verdade. Contactado pelo Expresso, Hélder Bataglia recusou-se a comentar o assunto. Também o seu advogado, Rui Patrício, disse não pretender acrescentar nada ao comunicado que emitiu no dia 14 de janeiro e às peças que tem apresentado no processo.

Bastidores de uma revelação

Bataglia tinha sido interrogado em abril, em Luanda. Mas algo ficou por dizer. E foi isso que o livrou de um mandado de captura

Há muito tempo, desde 2015, que corriam rumores sobre as coisas que Hélder Bataglia poderia ter para dizer sobre o caso de corrupção do ex-primeiro-ministro José Sócrates. Mas o seu silêncio foi-se arrastando, sobretudo a partir do momento em que, no verão de 2015, o Ministério Público pediu a emissão de um mandado de captura internacional contra o empresário luso-angolano. Bataglia deixou-se ficar em Angola. Havia fortes suspeitas sobre a relevância do seu papel na história e não queria ir preso preventivamente, como tinha acontecido com Sócrates quando aterrara em Lisboa. A equipa do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tinha recebido no início desse ano todos os movimentos bancários que estavam na origem dos mais de 20 milhões de euros depositados na Suíça em contas de Carlos Santos Silva, um amigo muito próximo de José Sócrates e que o Ministério Público acredita ter funcionado como seu testa de ferro nos anos em que foi primeiro-ministro. Havia 17,5 milhões de euros que vinham de Bataglia. Doze milhões tinham passado dele para Joaquim Barroca e de Barroca para Santos Silva. E outros 5,5 milhões de euros tinham ido dele para José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, um primo de Sócrates, e de Pinto de Sousa para Santos Silva. Mas depois Bataglia foi constituído arguido por corrupção e branqueamento de capitais a 21 abril de 2016 pelos procuradores angolanos, a pedido das autoridades portuguesas, e quando nesse dia foi ouvido em Luanda explicou uma parte e houve outra que deixou por explicar.

A parte que explicou há nove meses aos angolanos tem a ver com os 5,5 milhões de euros que passou para o primo de Sócrates, que é irmão da mãe de uma das suas filhas. Ao longo dos anos, desde 2005, tinha transferido sete milhões de euros (o MP diz que são nove) para José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, justificando que o ajudara num período de dificuldades e que uma fatia foi-lhe devolvida em dinheiro, através de depósitos bancários (quase cinco milhões), e que o resto foi pago com a tomada de 50% de umas salinas em Benguela, Angola. Mas em relação aos 12 milhões de euros passados para Joaquim Barroca entre 2008 e 2009 preferiu manter-se calado, declarando que, por “conselho dos advogados”, não queria revelar o enquadramento dessas transferências naquele momento.

Foi esse mistério que ficou por esclarecer que terá permitido à defesa de Bataglia, patrocinada pelo advogado Rui Patrício, fazer valer a sua posição com o DCIAP. O empresário estava disponível para vir a Lisboa, depor pessoalmente perante Rosário Teixeira, num interrogatório complementar, para contar o que tinha ficado por contar. Mas não para correr o risco de ir parar à cadeia. A troca de correspondência entre Rui Patrício e Rosário Teixeira prolongou-se entre setembro e dezembro de 2016, até que o procurador aceitou rever as medidas de coação que pudessem impender sobre o antigo presidente da Escom — incluindo um eventual mandado de captura. E assim, quando Bataglia aterrou em Lisboa em janeiro, não foi preso. M.P.

Como os “Panama Papers” revelaram o esquema de dissimulação

Dois contratos forjados justificaram as transferências do dinheiro que foi alegadamente para José Sócrates

Em cima, primeira página do Expresso de 16 de abril de 2016 em que Bataglia admitia que 12 milhões de euros do caso Sócrates vinham do saco azul do GES. Em baixo, o artigo de 16 de julho que expôs como foram justificadas as transferências

Em cima, primeira página do Expresso de 16 de abril de 2016 em que Bataglia admitia que 12 milhões de euros do caso Sócrates vinham do saco azul do GES. Em baixo, o artigo de 16 de julho que expôs como foram justificadas as transferências

No interrogatório a que foi sujeito em Lisboa este mês, Hélder Bataglia negou que alguma vez tivesse feito qualquer trabalho — ele ou uma das suas muitas sociedades — para uma companhia offshore chamada Pinsong. O empresário luso-angolano também negou que alguma vez tivesse feito qualquer espécie de consultoria relacionada com a obtenção de concessões de exploração de petróleo em Angola, tirando o caso isolado do bloco 18, a que esteve ligado através da Escom, o braço não-financeiro do Grupo Espírito Santo (GES) para África, de que foi fundador e presidente. Porque é isto importante? Porque a Pinsong foi usada para justificar formalmente os milhões de euros que, alegadamente, Ricardo Salgado fez chegar a José Sócrates no caso de corrupção ‘Operação Marquês’. O depoimento sobre o assunto feito agora por Bataglia ao Ministério Público reforça o que os “Panama Papers” já revelavam sobre dois contratos de consultoria aparentemente relacionados com a exploração de petróleo em Angola e que permitiram suportar junto do compliance da UBS, na Suíça, transferências bancárias de 22 milhões de euros do saco azul do GES para Hélder Bataglia. Esses contratos foram forjados, de acordo com o que Expresso revelou num artigo publicado a 16 de julho de 2016. Agora Bataglia admitiu ao Ministério Público que isso foi mesmo assim.

A Pinsong foi um veículo especial criado pela Espírito Santo Enterprises — uma companhia offshore criada em 1993 que funcionou como um gigantesco saco azul do GES — de propósito para estabelecer apenas esses dois contratos de consultoria com uma companhia offshore de Hélder Bataglia, a Markwell International.

Na base de dados dos “Panama Papers”, a fuga de informação obtida pelo jornal alemão “Süddeutsche Zeitung” e coordenada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), de que o Expresso é parceiro, é possível perceber que, ao longo dos seus mais de 20 anos de existência, a Espírito Santo Enterprises só por duas vezes criou veículos especiais. Um dessas ocasiões foi no final de junho 2007, quando Chantal Farina, uma funcionária da Espírito Santo Services, uma empresa fiduciária do GES na Suíça, encomendou à operadora de offshores Mossack Fonseca a compra de uma shelf, um tipo especial de companhias offshore, com uma data de criação mais antiga. À superfície, olhando apenas para os documentos de incorporação, essa shelf, a Pinsong, surge como tendo sido criada pela Espírito Santo Enterprises a 2 de janeiro de 2007 quando na realidade, por aquilo que revelam as trocas de e-mails com a Mossack Fonseca, isso aconteceu seis meses depois. A 16 de julho, outra funcionária da Espírito Santo Services, Anne-Claude Deriaz, enviou à Mossack um primeiro contrato entre a Markwell e a Pinsong para ser assinado. Ia com a data de 2 de janeiro e tinha o valor de sete milhões de euros. Depois, em abril de 2008, foi encomendado um novo contrato, muito mais pormenorizado, no valor de 15 milhões de euros e repartido em três tranches de cinco milhões, com assinaturas postas como se tivesse sido feito a 30 de novembro de 2007. Nessa altura, em abril, o objeto formal do contrato, uma consultoria para um concurso público lançado pela Sonangol, a empresa petrolífera angolana, já nem fazia sentido porque o concurso foi suspenso.

Em julho do ano passado, no artigo sobre a Pinsong, o Expresso publicou que a Markwell recebeu 17 milhões de euros com base nos dois contratos. Agora, novas informações recolhidas através de fontes cruzadas permitem concluir que foi pago um total de 22 milhões de euros, já que havia uma success fee de cinco milhões de euros que estava dependente de as concessões de petróleo em causa serem atribuídas à Pinsong. Mas, apesar de o concurso ter sido suspenso e anulado pela Sonangol, os cinco milhões extra foram pagos na mesma, em maio de 2009. De resto, as transferências anteriores a essa, de uma conta em nome da Espírito Santo Enterprises no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, para uma conta da Markwell na UBS, coincidem com os momentos críticos dos e-mails. Sete milhões foram transferidos em julho de 2007, cinco milhões em abril de 2008 e outros cinco milhões em junho desse ano. Micael Pereira

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