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O capitalismo chegou à canábis

A legalização do consumo de marijuana nos Estados Unidos está a abrir caminho a uma indústria avaliada, no mínimo, em €40 mil milhões. Aplicações, serviços e produtos inovadores não param de nascer

Veste fato executivo e até usa gravata. Nada de particular distingue Brendan Kennedy, de 41 anos, do comum homem de negócios, mesmo que dele se espere que use rastas e oiça o reggae de Bob Marley, o cantor jamaicano dos idos anos 60 e 70 e que é, agora, o rosto da Marley Natural, marca de acessórios para o consumo de canábis, que o empresário lançou no ano passado. Nada disso. Brendan Kennedy não só usa fato e gravata, como tem no currículo um MBA (master executivo em gestão de empresas) na prestigiada Universidade de Yale. E é o fundador e presidente da Privateer Holdings, o maior fundo de capital de risco da indústria da marijuana: recentemente, anunciou a angariação de €76 milhões junto de investidores (como Peter Thiel, empresário que lançou o serviço PayPal e já investiu no Facebook e no Spotify) para apostar em empresas ligadas ao sector.

Uma delas é, precisamente, a Marley Natural, que conta com a bênção da família do músico. Mas há também a Terra Tech, especializada no cultivo hidropónico de marijuana, cotada no Nasdaq e a primeira empresa a ser autorizada pela comissão de supervisão da Bolsa norte-americana a utilizar o dinheiro que ganha no mercado de capitais para cultivar e vender erva. A Marijuana Drinks já lançou uma limonada de canábis, enquanto um engenheiro informático da Apple saiu da empresa para criar um vaporizador, o FireFly, que expele as substâncias psicoativas da planta, no tratamento de doentes. A Y Combinator, afamada incubadora tecnológica de Palo Alto, Califórnia, fez em fevereiro a primeira incursão no sector, investindo na Meadow, aplicação especializada na encomenda e entrega de canábis. De lubrificantes sexuais feitos à base de marijuana a redes sociais exclusivas para consumidores, há de tudo. E já foram publicados livros de culinária em que o ingrediente central é, naturalmente, erva. A imaginação é o limite.

“Esta é uma indústria massiva”, contou Kennedy ao “Financial Times”, referindo-se a um sector que, segundo a consultora ArcView Group, especializada no negócio da canábis, estará avaliado, no mínimo, em €40 mil milhões. Nas contas mais otimistas, pode valer €46 mil milhões. Por enquanto, vale €2,5 mil milhões — um crescimento de 75% face ao valor de 2013.

Nos últimos anos, 23 estados norte-americanos já legalizaram o consumo de marijuana. A maioria, apenas para fins medicinais, mas em quatro deles (Colorado, Washington, Oregon e Alaska), a que se soma o distrito federal de Columbia onde se localiza a capital Washington, também já é permitido o consumo recreativo de erva aos maiores de 21 anos. Apesar da onda da legalização de canábis estar a varrer os Estados Unidos (espera-se que, em 2016, chegue a mais cinco), a venda e o consumo mantêm-se como crimes segundo a lei federal.

Indústria jovem e rentável

Kennedy trabalhava em Sillicon Valley, como analista, e não tinha do que se queixar. Em 2010, sentou a família e deu-lhes a novidade: deixava o emprego para lançar a própria empresa num sector que, ainda que maioritariamente ilegal, se começava a comportar como o mercado dos ‘social media’. Estava na fase embrionária e, não tardaria, começaria a ser rentável. “É a primeira vez, nas nossas vidas e no tempo em que vivemos, que vemos uma indústria de 40-50 mil milhões de dólares a transitar da ilegalidade para a legalidade”, afirmou ao diário britânico.

Não é o único a transbordar de otimismo. A plataforma online ListAngel, que reúne financiadores, informa que há mais de 1500 investidores que já financiaram 245 startups ligadas à marijuana. Em média, cada uma destas jovens empresas está avaliada em €4 milhões. Segundo o relatório Marijuana Business Factbook 2014, mais de metade das empresas dedicadas à erva têm menos de 3 anos e 30% nasceram no ano passado. Apesar de ainda estarem a tatear terreno, 38% destas startups afirmam que são “modestamente lucrativas”, 16% consideram-se “muito lucrativas” e 18% reportam prejuízos.

Jonathan Caulkins, professor na Universidade de Carnegie Mellon, na Pensilvânia, e autor do livro “Marijuana Legalization”, explica ao Expresso que “esta indústria é muito dinâmica. Mas esse dinamismo dará lugar a um sector maduro, apesar de ainda serem necessários mais do que alguns anos. É esse o padrão sempre que uma nova tecnologia, neste caso a legalização, vem abalar um sector. A marijuana não é especial”.

Impostos chorudos

A entrada da erva no circuito legal é, aliás, uma rica fonte de receitas para os cofres dos Estados Unidos. O preço de um cigarro de 1 grama varia entre 11 e 13 dólares, três vezes mais do que o custo de um cigarro ilegal, devido à carga tributária — em média 35%. A consultora ArcView Group acredita que, com a legalização completa e a revisão da lei federal, os impostos diretos poderão chegar aos €6,5 mil milhões. Nessa altura, espera-se, já não terão de ser pagos em sacos de dinheiro. É que, por se tratar de um crime federal, nenhuma instituição bancária aceita como clientes produtores e vendedores de canábis, por receio de lavagem de dinheiro. O que obriga toda a cadeia de produção a usar apenas dinheiro vivo, além de impedir o acesso dos empresários a mecanismos de crédito. Mas nada que não seja resolvido pela vontade e imaginação empreendedoras: a família Mason (pais e filhos) fundou o banco Fourth Corner Credit Union, que se apresenta como a “única instituição de crédito construída para servir os interesses da indústria da canábis”.

Para Jonathan Caulkins, o futuro é mais problemático do que parece: “Pensar que o que é ilegal se vai simplesmente transformar em legal é ingenuidade pura.” E antevê o que se seguirá: “Os preços vão cair, o consumo vai aumentar, vamos ver uma proliferação de produtos, de todos os géneros e formas. As maiores margens vão passar para as grandes corporações, detentoras de maior sofisticação e de melhores instrumentos de marketing. A marijuana vai transformar-se numa commodity, o que terá impacto no processo de produção, com o poder a passar dos agricultores para os gestores de marcas.”

Grandes grupos tabaqueiros como a Philip Morris e a Bristish America Tobacco têm-se mantido afastados desta “corrida da erva”. Caulkins acredita que permanecerão na “sombra” enquanto a lei não for clarificada (2016 poderá ser o ano da revisão), mas vão querer a sua fatia: “Não tenho dúvidas que, após a legalização total, assistiremos a um aumento do abuso e dependência da marijuana.”, diz. Joana Madeira Pereira

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