HÁ HOMEM

HÁ HOMEM

Luís
Pedro
Nunes

Nacho Doce/ REUTERS

Como expulsar um sem-abrigo

As cidades estão a ‘higienizar-se’ com estratégias invisíveis para fazer desaparecer os pedintes

Arquitetura urbana com design de detalhes hostis ou cafés/restaurantes ‘sem dinheiro’. Estes são dois pequenos detalhes que não levantam qualquer suspeita, mas são direcionados (também) para expulsar os sem-abrigo de certas zonas das cidades, descansar os nossos espíritos, valorizar as nossas propriedades, acalmar os nossos turistas e melhorar a experiência dos nossos clientes. É que, por muito humanista que seja o nosso discurso de guerreiro de teclado — vamos lá ser sinceros! —, não queremos um sem-abrigo a dormir na nossa porta. E é aí que entra a atual organização da cidade, tão zelosa em alindar tudo low cost, e não precisamos de ter andado em Belas-Artes ou a ouvir palestras dos Pritzkers do Porto para compreender que a arquitetura emana da ideologia dominante, pelo que hoje o detalhe da coisa está em não criar pequenos nichos de conforto onde um sem-abrigo possa dormir ou sequer sentar-se. Discreto. Nada de pequenos vãos de escada que possam dar ideias ao gajo de se deitar ali. Desvaloriza-me o prédio. E depois tenho de meter uns espigões no chão. Também lhe chamam “arquitetura defensiva”. Soa melhor do que arquitetura hostil.

Calatrava, há mais de 20 anos, não pensou nisso e a Gare do Oriente em Lisboa tornou-se um ‘vespeiro’ de sem-abrigos, dado que o calor das bocas do Metro proporciona conforto sob a teia de vigas. Mas as cidades não querem isto. A estratégia por todo o mundo é colocar mobiliário urbano que não permita deitar àqueles seres que aproveitam o tempo mais ameno da luz do dia para dormir (é colocar uns braços nos bancos de jardim), espigões de design, não agressivos, que impedem que alguém se sente, vedações metálicas à volta das bases das pontes e outros detalhes em que não reparamos porque não nos são destinados. Só nos ocorre quando percebemos que não é possível deitar nuns bancos de um terminal de aeroporto, porque são pensados para não deixar deitar os outros. Em muitas cidades norte-americanas já houve protestos contra estas medidas ‘defensivas’ que encaram a questão dos sem-abrigo como uma questão técnica e não uma questão social. E assim nada nos pesa na consciência.

Veja-se a questão de ter uma loja de conveniência, um pequeno café ou mesmo um restaurante cashless, sem dinheiro. É assim o salto em frente para acabar com as notas e moedas de uma vez por todas, um passo para fazer desaparecer as caixas multibanco — que de facto estão a diminuir — e aumentar a eficiência. Ainda há anos parecia irreal que se acabasse definitivamente com o dinheiro-papel. Mas estamos quase lá. E repare-se no seguinte: acabar com o dinheiro real é um fator de discriminação que talvez não nos tenha ocorrido. Se não é possível comprar um café ou uma sanduíche com moedas ou uma nota, então um sem-abrigo, um pedinte ou — por exemplo, no caso dos EUA — um imigrante ilegal não poderá fazer a compra. Torna-se não só uma questão de afastar determinada clientela como uma afirmação ideológica, dado que há determinadas camadas de população que não têm acesso a uma conta bancária — tais como os ilegais. E, convenhamos, haverá sempre uma faixa da população que não terá um cartão de débito bancário. Como é que essas pessoas irão ter acesso a bens essenciais? As propostas dos rapazes da tecnologias são muito mais idiotas e discriminatórias (um Qr Code para sem-abrigos, bitcoins, etc.) e no fundo esta questão resolve-se com uma solução que já existe: manter o dinheiro em circulação. Não fazer com que uma pretensa modernidade seja usada para discriminarmos pobres. Simples.

Já basta que a nossa pouca familiaridade com o dinheiro nos tenha tirado a capacidade de dar uma moeda que não seja a um arrumador, naquele subtexto de ceder a chantagem (ou risco-te o carro). O dar uns trocos era algo que se fazia “porque sim”, não havia um motivo (estão nos bolsos), era algo que não se justificava a nós, nem a ninguém. Dava-se. Hoje, ao dar-se uma moeda tem de ser em troca de algo — seja um talento que se exibe (tocar violino) ou uma deficiência horrivelmente exposta. Dar a alguém que pede sem questionar — porque sim — é sujeitar-se à avaliação moral dos outros: que parvoíce, sabes lá onde é que ele vai gastar o dinheiro, etc. Ou seja, subverter o ato que é dar esses trocos sem ter de pedir uma fatura moral com IVA de percentagem da minha personalidade, mas apenas por saber que não nos fazem assim tanta falta e certamente lhe fará a ele. Se for para vinho, que seja. Isso não faz de mim um idiota.

Os sem-abrigo já eram invisíveis. Agora as cidades têm-nos empurrado para fora dos centros e nem reparámos que praticamente desapareceram. As estratégias para os expulsar passam por colocar os abrigos e os pontos de distribuição de alimentos longe do centro histórico e fazer com que as equipas de limpeza urbana diariamente acabem com as casas de cartão — impedindo assim que os sem-abrigo tenham um ponto fixo.

A modernidade é cool e mostra o lado tech e tem um ar inofensivo. Os espigões são design. O dinheiro está out e aquilo era uma nojeira cheia de germes, aliás. E os sem-abrigo se desapareceram é porque não existem. A cidade é um espaço de vivência de multiculturas (com cartões de crédito) e o cheiro a mijo que todos os dias sinto não é do sem-abrigo de antigamente mas do turista que bebe uns copitos à noite, abençoado.