ALTIFALANTE NAS ENTRELINHAS

Acidente

“Penso que não (era previsível), nunca na vida. É uma tragédia, é um acidente”

Embora ‘acidente’ tenha uma conotação de acaso, não será por acaso que tantos acidentes envolvem coisas que caem. A própria origem da palavra (de ad-cadere, a cair, para accidentis, algo que sucede por acaso) revela essa propensão. Ficamos cientes dela logo na infância e em casa, quando começamos a partir coisas. Na verdade, esse tipo de acidentes só são acidentes por serem involuntários — se o forem — não por terem a ver com o acaso. Quando se deixa uma criança pequena mexer em certos objetos, é quase fatal que os parta. Já tratando-se de um desastre que envolve ações de adultos, apenas devíamos considerá-lo um acidente quando ele resultasse de uma combinação imprevisível de fatores.

Muitos acidentes de trânsito só residualmente são acidentais. Basta ver a quantidade de manobras perigosas e a pura fossanguice de muitos condutores em qualquer dia normal para perceber que é inevitável a criação de condições propícias ao desastre. Os condutores sabem que a conduzirem daquela forma é provável qualquer dia terem um, ainda que se convençam de que não. Em termos jurídicos, estará em causa não apenas negligência como o chamado dolo eventual.

Do mesmo modo, o que nos faz pensar que retirar continuamente areia em torno dos pilares de uma ponte, ou abrir enormes buracos ao lado de um terreno com características geológicas precárias e por cima do qual passa uma estrada, jamais levará a uma catástrofe? Deve ser aquela mentalidade do se-não-caiu-até-agora-também-já-não-cai. Ou então a velha ideia, especialmente comum num país miserável, de que a sobrevivência económica está acima de tudo. ‘Aquilo’ dá de comer a muitas famílias. Se cair, azar. Também há acidentes nas obras e nem por isso se deixam de construir prédios.

Fosse ao menos claro quem responde por um eventual desastre. A diluição de responsabilidade é um fator maior de insegurança. Às vezes usamos estruturas que nos parecem precárias e a única coisa que nos tranquiliza é pensar que alguém é responsável por elas — responsável, portanto responsabilizável. Não sendo assim, devia estar lá um aviso em letras bem grandes: “Aqui ninguém é responsável”. Em vez disso, temos a ocasional (não casual) tragédia, seguida pela tradicional lavagem de mãos, pelo “devido inquérito” e pelos famosos “tempos da justiça”... / Luís M. Faria