Maria Filomena Mónica

Maria Filomena Mónica

A mobilidade social descendente

Numa era em que o crescimento económico estagnou na Europa, o aumento da mobilidade social significa não só a subida dos filhos dos pobres a lugares cimeiros da hierarquia como a descida, na escada social, de rebentos das antigas famílias privilegiadas. De facto, algumas das pessoas que pertencem à elite social têm-se-me queixado de que “agora” toda a gente deu em ser engenheiro, em escrever romances e em exercer medicina. Traduzindo: os filhos e netos delas, que tinham um lugar assegurado no topo, têm hoje de competir com meninos nascidos entre as ervas. Como sempre no nosso país, a concorrência é olhada de forma negativa.

Faço parte da geração de sociólogos para quem o termo mobilidade social andava inconscientemente ligado à ideia de subir na vida. Quando, nos anos 60, o curso de Sociologia foi relutantemente aceite pela Universidade de Oxford, a disciplina dedicou-se, em grande parte, a estudar a desigualdade. O supervisor do meu doutoramento, A. H. Halsey, fazia parte do grupo de intelectuais influenciados pelo Socialismo Cristão, tendo sido um dos consultores de Tony Crosland, ministro da Educação do Governo Trabalhista de Harold Wilson. Isto fez com que muitas das aulas a que assisti fossem dedicadas à análise da forma como os filhos dos pobres estavam a ter a oportunidade de aceder a lugares de topo.

Basta-me entrar na casa de algumas das minhas amigas de infância para ver quanto o seu nível de vida piorou. Sim, é isto a mobilidade descendente. Convinha que os sociólogos portugueses analisassem este tema

Ao ler recentemente algumas obras sobre a História de Portugal, notei que, depois da revolução de 1820, o declínio de certos grupos fora notório. Nuno Monteiro, em “O Crepúsculo dos Grandes”, e Rui Ramos, na sua “História de Portugal”, referem a forma como a velha aristocracia nacional decaíra. Ao longo do século XIX, metade dos 36 palácios lisboetas pertencentes aos nobres havia mudado de mãos. No palácio dos viscondes de Asseca, uma das famílias com mais pergaminhos, instalara-se uma fábrica; no dos condes de Murça uma escola; no do marquês de Abrantes a Embaixada de França. A transferência de propriedade prosseguiu a um ritmo lento. Tão lento que chegou até nós. A súbita ascensão de Lisboa como local apetecível para o turismo veio alterar o mercado imobiliário. Está hoje à venda o antigo palácio, à Junqueira, dos condes da Ribeira Grande, bem como o dos duques de Lafões, ao Beato, e o da Anunciada, a Santo Antão, onde durante séculos viveram os condes de Rio Maior.

Dado o melindre da situação, não vou citar nomes, mas conheço famílias com raízes na antiga nobreza que há muito atravessam um declínio surdo, não tanto no que diz respeito ao status, mas à fortuna. Outras sofreram as consequências da revolução de 1974, quando as suas empresas foram nacionalizadas e eles decidiram fugir para Espanha e para o Brasil. Sei que as suas confidências de “não terem cheta” não podem ser tomadas à letra, mas basta-me entrar na casa de algumas das minhas amigas de infância para ver quanto o seu nível de vida piorou. Sim, é isto a mobilidade descendente. Convinha que os sociólogos portugueses deixassem os assuntos abstrusos de que se ocupam para analisar este tema.

Maria Filomena Mónica escreve de acordo com a antiga ortografia

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