Morte de Jamal Khashoggi

“O dinheiro prevalece sempre”. Relação EUA-Arábia Saudita sobreviverá a mais este golpe

Segundo duas fontes citadas pela CNN, as autoridades sauditas estão a elaborar um relatório em que reconhecem a morte do jornalista Jamal Khashoggi e a justificam como o resultado de um interrogatório que correu mal <span class="creditofoto">Foto Middle East Monitor / via REUTERS</span>

Segundo duas fontes citadas pela CNN, as autoridades sauditas estão a elaborar um relatório em que reconhecem a morte do jornalista Jamal Khashoggi e a justificam como o resultado de um interrogatório que correu mal Foto Middle East Monitor / via REUTERS

O jornalista saudita Jamal Khashoggi, crítico do regime e autoexilado nos EUA, foi morto quando o objetivo era retirá-lo de solo turco e devolvê-lo à Arábia Saudita. O que o reino sempre negou deverá agora reconhecer. Não estará a dizer a verdade “mas é a única forma de se safarem”, diz um especialista em relações EUA-Médio Oriente. Esta terça-feira, os turcos terão encontrado “provas” do assassínio de Khashoggi no consulado saudita em Istambul, onde foi visto a entrar há duas semanas para não mais aparecer

Texto Hélder Gomes

É o mais recente desenvolvimento na trágica novela do jornalista saudita, que terá sido morto no consulado da Arábia Saudita em Istambul. A Turquia encontrou esta terça-feira “algumas provas” de que Jamal Khashoggi foi efetivamente assassinado há duas semanas quando se dirigiu ao consulado para pedir os papéis necessários para se casar. A informação foi avançada à agência Associated Press por um alto funcionário turco, sob a condição de anonimato.

Segundo duas fontes citadas pela CNN, as autoridades sauditas estão a elaborar um relatório em que reconhecem a morte do jornalista e a justificam como o resultado de um interrogatório que correu mal. O interrogatório teria como objetivo final raptar Khashoggi de território turco com destino à Arábia Saudita. Esse documento concluirá que a operação foi conduzida sem autorização e sem transparência, garantindo que os culpados serão responsabilizados.

O jornalista e académico do Middle East Institute, em Washington, Thomas Lippman acredita que os atiradores responsáveis pela morte de Khashoggi “foram enviados ao consulado pelo Governo”. No entanto, não espera grandes consequências nem da parte dos EUA, onde o jornalista se autoexilou, nem dos restantes atores globais. Poderá haver “gestos simbólicos” mas somente se não custarem dinheiro, defende. A grande questão é como reagirá a Turquia, “um ator de grande importância no Médio Oriente”.

Como reagiu quando soube que as autoridades sauditas vão admitir que Jamal Khashoggi foi morto durante um interrogatório que correu mal?

Há uma semana que estava a prever que eles iriam fazer isso porque não tinham outro modo de se safarem. Desta forma, podem fingir que o príncipe herdeiro não foi responsável. Ninguém vai acreditar mas podem fingir isso. E podem simplesmente sacrificar o chefe do esquadrão pelo que irão considerar os superiores interesses do reino. É uma análise muito cínica mas não creio que haja outra.

O Presidente dos EUA, Donald Trump, antecipou-se e falou em atiradores não autorizados depois de revelar que conversou com o Rei Salman da Arábia Saudita.

Não acredito que foram atiradores não autorizados. Eles foram enviados ao consulado pelo Governo.

O secretário de Estado Mike Pompeo durante o encontro desta terça-feira em Riade com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita, Adel al-Jubeir <span class="creditofoto">Foto US DEPARTMENT OF STATE / EPA</span>

O secretário de Estado Mike Pompeo durante o encontro desta terça-feira em Riade com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita, Adel al-Jubeir Foto US DEPARTMENT OF STATE / EPA

Mas considera que foi uma jogada orquestrada entre o Presidente Trump e o Rei Salman?

Não sei o que Trump e Salman disseram um ao outro. Ninguém sabe. A questão agora é o que [o secretário de Estado] Mike Pompeo vai dizer em Riade e se o Presidente e o secretário de Estado acreditam na versão saudita da história. E ainda é muito cedo para saber isso. Neste momento, toda a gente nos EUA está a afastar-se da Arábia Saudita com vergonha. Já passámos por isto muitas vezes e, no final, o dinheiro prevalece sempre. Por isso, quando lemos que o Jamie Dimon [presidente e CEO do banco JP Morgan] não vai à conferência económica [da próxima semana na Arábia Saudita], isso não significa que o seu banco não ficará feliz por operar a próxima venda de títulos.

E as vendas de armas à Arábia Saudita, que Trump já veio dizer que não serão interrompidas porque isso custaria muito dinheiro e empregos aos EUA?

Bom, em primeiro lugar, a maior parte dessas vendas de armas são fictícias, consistem em declarações de intenções e não em acordos assinados. Em segundo lugar, o destino das vendas de armas diz respeito ao Congresso e não ao Presidente. E, neste momento, há uma grande corrente de antipatia em relação à Arábia Saudita no Congresso.

E o Congresso fará alguma coisa?

Não sei. Terá de lhes perguntar. Mas penso que é inteiramente possível que os congressistas tenham pelo menos gestos simbólicos, atrasando ou anulando propostas de vendas de armas. Se o Congresso irá acabar com o apoio americano na guerra do Iémen, isso já é outra questão.

Deixar uma deixar uma cadeira vazia não custa nada

O que fará o Congresso agir nesse sentido?

Isso vai depender da capacidade de senadores como Marco Rubio e Chris Murphy mobilizarem outros senadores de ambos os partidos a agir. Mas ainda é muito cedo para dizer isso, porque não sabemos o que Pompeo descobriu exatamente, não sabemos o que os turcos descobriram ao inspecionarem o consulado [apesar da fonte citada pela AP, ainda não há conclusões oficiais da investigação]. Não sabemos de que formas as eleições para o Congresso entram aqui em jogo. Ainda há muitas peças em movimento.

Foto ERDEM SAHIN / EPA

Acha que este caso terá influência no voto de 6 de novembro?

Não. Exceto em tempos de verdadeira guerra, os americanos geralmente não votam com base em política externa ou assuntos internacionais. Os americanos votam sobretudo com base em assuntos sociais e económicos.

Na semana passada, as autoridades francesas acabaram com as aspirações sauditas de terem o estatuto de observadores na Organização Internacional da Francofonia. Julga que este gesto será seguido por outros atores internacionais?

Muita gente irá adotar medidas se essas medidas não tiverem um custo. Apenas nesse caso. É muito fácil cancelar a presença numa conferência, retirar os observadores, deixar uma cadeira vazia porque isso não custa nada. Mas se, por exemplo, a venda de um dado sistema de armamento dos EUA à Arábia Saudita for bloqueado pelo Congresso, os franceses avançarão no minuto seguinte para tentarem garantir essa venda.

E o Reino Unido, por exemplo, fará o mesmo?

Bom, o Reino Unido é diferente. Parece haver uma verdadeira onda de indignação moral sobre assuntos como este, não apenas este. O Reino Unido tem de lidar com questões muito mais complexas neste momento – por exemplo, o Brexit, a questão da fronteira com a Irlanda do Norte e o estado periclitante da primeira-ministra Theresa May. O Reino Unido tem muito com que se preocupar. Por outro lado, Khashoggi vivia nos EUA e escrevia para um jornal americano. Os europeus não têm muito a dizer sobre este assunto. Mas é importante não esquecer o seguinte: ao longo dos últimos anos, das últimas décadas mesmo, a Arábia Saudita repetidamente adotou políticas e tomou medidas que enfureceram a Casa Branca e o Congresso. Há uma longa lista, desde o embargo de petróleo nos anos 1970 à compra secreta de mísseis chineses com capacidade nuclear em 1988... Isto para não falar do 11 de setembro! E de cada vez que algo deste género aconteceu, a relação bilateral entre os EUA e a Arábia Saudita sobreviveu porque ambos os países a consideram útil. E acho que o mesmo vai acontecer desta vez, quando a poeira assentar.

O que podem organizações como a ONU fazer em relação a este assunto?

Não acredito que possam fazer alguma coisa. A Arábia Saudita não recebe ajuda externa. Não recebe ajuda do Programa Alimentar Mundial. A agência de desenvolvimento da ONU não faz grande coisa na Arábia Saudita. A Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos é uma piada internacional: países como Cuba são membros dessa comissão! Não me parece que haja algum papel para a ONU, a não ser emitir declarações tendenciosas. Para mim, a grande questão é o que os turcos vão fazer em relação a isto. Não sei o suficiente sobre a Turquia para dar uma resposta a isso. Mas a Turquia, ao contrário, por exemplo, do Reino Unido, é um ator de grande importância no Médio Oriente. Não sei o que emergirá entre a Turquia e a Arábia Saudita, o que os turcos farão. Teremos de esperar para ver.

CRONOLOGIA DE UMA MORTE NEGADA

2 de outubro

Jamal Khashoggi entra no consulado saudita em Istambul para obter os documentos necessários para se casar com a sua noiva, a turca Hatice Cengiz, que o espera no exterior.

3 de outubro

O Governo saudita emite um comunicado em que confirma que Khashoggi está desaparecido mas garante que o jornalista abandonou o consulado. A sua noiva desmente.

6 de outubro

Dois funcionários turcos dizem acreditar que Khashoggi foi morto no interior do consulado.

9 de outubro

O embaixador saudita nos EUA e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita negam que o jornalista tenha sido morto ou esteja detido.

10 de outubro

A estação de televisão turca News 24 mostra imagens de Khashoggi a dirigir-se ao consulado e posteriormente uma carrinha a abandonar o edifício em direção à residência do cônsul. As imagens parecem sugerir que o jornalista se encontrava no interior do veículo, uma carrinha Mercedes de cor preta. Segundo o relato da televisão, a carrinha fez o percurso de dois quilómetros entre o consulado da Arábia Saudita e a residência do cônsul, tendo entrado numa garagem.

14 de outubro

Os CEO da JP Morgan, BlackRock, Blackstone e Mastercard cancelam a presença na conferência económica, marcada para a próxima semana na Arábia Saudita.

15 de outubro

O Ministério turco dos Negócios Estrangeiros anuncia que uma “inspeção” do consulado será conduzida por funcionários turcos e sauditas.