Estado da Noção

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Francisco Louçã

Se pensa que todos os dados estão lançados, desengane-se

É o que me dizem: começou a campanha eleitoral. Descontando o incomodatício facto de os mesmos já terem proclamado essa mesma abertura de campanha em variadas oportunidades, agora poderia dizer-se que parecem ter argumentos. O Orçamento traz benefícios visíveis para sectores amplos da população, em particular os que mais sofreram com a austeridade, com medidas de fundo para os transportes urbanos, o custo da educação e as pensões mais desfavorecidas. Ao mesmo tempo, o Orçamento compôs algumas das reivindicações imediatas da esquerda, mesmo que num ou noutro caso em doses homeopáticas (o aumento da função pública que poderá excluir a maior parte dos funcionários públicos). O próprio facto de a direita se limitar a acusar o Orçamento de eleitoralista é uma homenagem do vício à virtude e um reconhecimento das respostas a questões sociais imediatas. Depois, a remodelação ministerial foi um sucesso, zerou alguns dossiês arrastados e dá mais consistência partidária ao Governo. Finalmente, as direitas estão mais divididas do que nos podemos recordar, Santana Lopes cria um partido que divide hoje para prometer aliança amanhã, o CDS vai inventando o seu estilo trumpito, no PSD instalam-se todos os inimigos. Furiosa com Marcelo, a direita vira-se para Cavaco e dá no que dá, uma reprimenda por falta de “sentido de Estado” e assunto arquivado. Entusiasmada com Salvini, apreciando Trump apesar do estilo e achando que é um exagero criticar Bolsonaro apesar da casca-grossa, a direita profunda lança-se no erro do tremendismo, agitando-se hoje no PSD e amanhã no CDS. Tudo está no seu lugar, a coreografia é perfeita, António Costa parece ter a batuta nas mãos.

Mas começou mesmo a campanha eleitoral? O Governo segue em frente com a sua gente? Demasiados parecem querer acreditar nisso, com aquela ingenuidade de quem assiste à telenovela na certeza inocente de que depois de um episódio vem outro episódio e se caminhará cordatamente para o final feliz.

Se alguma coisa se aprendeu nestes anos recentes, é que o Governo tem que falar com outros protagonistas com experiência, vontade e capacidade de formular alternativas. Confiança a mais é erro de veterano que se comporta como principiante

O problema é que até à campanha eleitoral há muita vida. Há muita Europa, em primeiro lugar: a eleição inaugural de 2019 é europeia, o que parece estar esquecido, e mesmo se esta semana se acordar um Brexit arranjadinho, e ainda está para ver, teremos muita instabilidade intestina em Itália, no centro e leste europeu, e mesmo em França, onde Macron é o Presidente mais rapidamente impopular do último meio século. Os fracassos da globalização como promessa redentora e da União como projeto, as razões de fundo para a dilaceração da direita histórica do pós-guerra, de que a queda da CSU bávara é somente a última agravante, vão alimentar um tormento de deslocações políticas e de fúrias eleitorais. A União é uma ameaça permanente e Portugal navega nesse susto. E há a Casa Branca, e a guerra comercial, e a turbulência financeira, e a morte do jornalista da Arábia Saudita, e as embaixadas em Jerusalém, e os trolls da internet. Não se esqueça de nenhum deles.

Depois, há o normal nacional. Passes sociais mais baratos, finalmente. E melhora a oferta dos transportes públicos ou será sardinha em lata? Grandes promessas para as áreas metropolitanas, mas haverá casas para os jovens a menos de uma ou duas horas do trabalho? Reduz-se a taxa de desemprego, mas os jovens licenciados vão ter vida com 600 euros e contrato precário? Os pontos fortes da campanha eleitoral gizada pelo PS podem ser exatamente os seus pontos fracos. Mais ainda, num ano de Governo pode dar os seus tropeções, com pecadilhos e quejandos. Ora, falhando as “reformas estruturais” que importam, no emprego, nos serviços públicos, no investimento, não faltará debate sobre essas questões e, além disso, o Governo não está sozinho no mundo. Se alguma coisa se aprendeu nestes anos recentes, é que o Governo tem que falar com outros protagonistas com experiência, vontade e capacidade de formular alternativas. Confiança a mais é erro de veterano que se comporta como principiante.

Não pense por isso que os dados foram todos lançados. E se há alguma coisa que todos os dirigentes políticos deviam aprender é que ninguém tem a última palavra.