Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Criticar o hospital não é defender a doença, criticar a polícia não é defender o crime

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Os três alegados autores de vários assaltos a idosos na região do Porto foram, depois de oito meses de investigações, levados ao Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto, onde foi decretada a sua prisão preventiva. Ainda dentro do tribunal, os três suspeitos, dois irmãos gémeos e um sobrinho, conseguiram apoderar-se das chaves da cela do TIC, fugir por uma janela e apanhar um táxi. Foram apanhados 24 horas depois. Vários órgãos de comunicação divulgaram uma imagem dos três fugitivos, algemados e sentados no chão, quando foram recapturados. A divulgação destas imagens foi criticada pela Ordem dos Advogados, pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas e pela Amnistia Internacional. Uma crítica dirigida a quem tirou as fotos, quem as deu aos órgãos de comunicação social e a quem as publicou. Ou sejam, o Sindicato dos Jornalistas fez aquilo que os sindicatos de polícia não fazem: criticou a sua própria classe. A Inspeção Geral da Administração Interna e a própria PSP abriram inquéritos separados para investigar a fuga e a divulgação das fotografias.

Para valorizar o trabalho da PSP, o Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública decidiu republicar as fotografias com um comentário: “Aqui estão os campeões, obrigaram os polícias, depois de um excelente trabalho, a fazerem horas extra para a recaptura”. Parece-me que o maior crime destes três homens está bem longe de ser o desrespeito pelos horários dos agentes da PSP.

Não é fácil, neste tempo de recuo civilizacional onde todos os valores construídos pelas democracias e em que se baseia o Estado de Direito passaram a receber o carimbo de “politicamente correto”, explicar porque não se devem divulgar fotos de detenções, com pessoas algemadas e sentadas no chão. Porque não cabe à polícia organizar julgamentos internáuticos através da humilhação de suspeitos, por mais abjetos que sejam os seus crimes. Cabe-lhes investigar, capturar, levar à Justiça (que cabe a outras pessoas) e encaminhar, quando é caso disso, para a reclusão. E não é por a PSP ter falhado neste último passo que se justificam formas mais expeditas de julgamento. E publicar estas fotos não contribui em nada para a execução da Justiça. Apenas contribui para o ambiente geral de abandalhamento institucional. Como deveríamos saber, o abandalhamento institucional não facilita a vida à lei, facilita a vida ao crime.

Criticar um hospital não é elogiar a doença, criticar os militares por causa de Tancos não é elogiar quem roubou as armas, criticar políticos eleitos não é elogiar a ditadura, criticar a polícia não é elogiar os criminosos. Para eles temos tribunais e prisões, um pouco mais eficazes do que a crítica, a que suspeito que serão pouco sensíveis

As investigações internas explicarão as razões da fuga e não serei eu a fazer aquilo que critico nos outros: a julgar sem qualquer dado. Apenas sublinho que era à guarda da PSP que aqueles homens estavam. Criticar a PSP por os ter deixado fugir é tão legítimo como elogiar a PSP por os ter descoberto e capturado antes e por os ter voltado a recapturar. Elogiar e criticar um qualquer organismo público é o que pode acontecer em qualquer sociedade livre. Criticar um hospital não é elogiar a doença, criticar os militares por causa de Tancos não é elogiar quem roubou as armas, criticar políticos eleitos não é elogiar a ditadura, criticar a polícia não é elogiar os criminosos. É fazer o que se faz em democracia. Porque não criticamos os criminosos da mesma forma? Porque para eles temos tribunais e prisões, um pouco mais eficazes do que a crítica, a que suspeito que serão pouco sensíveis. Os dois inquéritos que se mandaram abrir são, por isso, absolutamente legítimos e totalmente independentes dos crimes cometidos por estes três suspeitos, de que os tribunais tratarão.

Infelizmente, a história não acaba aqui. O Sindicato Vertical de Carreiras da Polícia (é outro) ficou irritado por o ministro da Administração Interna ter, como a generalidade das instituições relacionadas com o tema, criticado a divulgação das fotografias. E decidiu publicar uma montagem fotográfica do ministro e de três vítimas idosas com as caras desfeitas pela violência. Diz a legenda: “Por favor, Sr. Ministro do MAI, Srs. da Amnistia Internacional, Sr.ª Cancio e todos os demais....indignem-se”. Não bastasse esta forma informal de um sindicato de forças de segurança comunicar com os cidadãos, como se fosse o nosso vizinho indignado a comentar no Facebook, a montagem pretende induzir-nos em erro. Não se trata de vítimas daqueles três suspeitos. Nem sequer vítimas de qualquer criminoso português. As fotografias que aparecem são de pessoas do Reino Unido e do Brasil e são antigas. Num momento em que nos preocupamos com “fake news” é inquietante ver que há agentes da autoridade que as promovem.

Vamos então rever a matéria dada. A PSP consegue, e muito bem, capturar três suspeitos de crimes contra idosos. Cumprida a sua função e a lei, leva-os ao TIC do Porto. Cumprindo a sua função e ao abrigo da lei, o juiz decreta a prisão preventiva. Falhando na sua função, a PSP não consegue garantir que os três suspeitos à sua guarda cheguem à prisão. Voltando a cumprir a sua função, montam uma operação de busca e conseguem voltar a apanhar os fugitivos. Em violação da lei, surgem nos jornais fotos os três suspeitos algemados e sentados no chão, como se a humilhação viral subsistisse o julgamento ou compensasse a falha de segurança. Cumprindo as suas funções, a PSP abre inquéritos às duas falhas e o ministro da Administração Interna deixa clara a posição do Estado português sobre este tipo de conduta, não faz qualquer julgamento sumário sobre as responsabilidades pela fuga, que deixa às autoridades competentes. Perante tudo isto, dois sindicatos mostram-se indignados com todos os que cumpriram o seu dever, repetem a publicação e um deles divulga imagens enganadoras para manipular a opinião pública. Não é preciso muito mais do que os factos para formar uma opinião. E estar do lado dos factos não é estar do lado dos criminosos. Aliás, estar do lado da lei e do cumprimento de regras é estar contra o crime. Seria bom não invertermos as coisas.

Nota importante: a Associação Sindical de Polícia (ASPP/PSP), o primeiro e mais representativo sindicato de polícias, que conquistou com risco e sacrifício o direito destes homens se sindicalizarem, tem-se pautado sempre por um comportamento responsável e com o rigor institucional que se espera por parte de quem, em nome do Estado, veste uma farda. Infelizmente, a luta consequente por direitos laborais dá menos noticias do que a demagogia incendiária. A multiplicação de microssindicatos oportunistas, muitos deles com ligações à extrema-direita e com o objetivo de minar o Estado de Direito por dentro, não fazem justiça ao que é a maioria da PSP.