Eles andam por aí
Eles sempre andaram por aí, na verdade, mas as gerações mudam. A extrema-direita tem entre nós uma raiz histórica e uma base social, há alguns anos houve gente suficiente para eleger numa televisão Salazar como a figura portuguesa do século XX. Mas tentativas de fazer renascer uma política fascizante logo após a revolução, nos anos setenta, mesmo quando figuras como Spínola, Champalimaud e tantos outros apareciam a liderar e a financiar os seus grupos armados, tinham sido goradas pela infâmia. Absorvidos pouco depois do 25 de Abril em partidos tradicionais, dadas as circunstâncias do colapso lúgubre do regime ditatorial, essa direita readaptou-se, alguns chegaram a ministros, todos fizeram pela vida. E assim foram passando os anos.
Quatro décadas depois, é uma outra extrema-direita que emerge. Vale a pena discutir essa especificidade, porque esse entendimento é a condição para responder ao risco. O que há de novo é que o espaço político desta nova extrema-direita não é saudade do império, mas a globalização infeliz; não é o desfile das fardas milicianas, mas o esvaziamento democrático; não é o delírio ideológico, mas o efeito profundo da austeridade. Ela vai portanto crescer. E essa novidade faz sistema: repare que nos anos setenta as ditaduras caíam na Europa (Portugal, Espanha, Grécia) enquanto venciam em contra-ciclo na América Latina (Chile, Uruguai, Argentina), ao passo que agora o movimento trumpiano impulsiona mudanças coincidentes em todo o mundo (de Washington a Orban, Le Pen, Salvini, Bolsonaro e o que mais se verá), que tomam ou que condicionam o poder. O seu sucesso pode ser medido, os populistas governam hoje uma parte maior da população mundial do que as democracias tradicionais, ao mesmo tempo que contamina as direitas clássicas, que cedem à tentação da imitação.
Tem sido muito discutida a maravilha tecnológica que abriu as oportunidades da expansão universal ao discurso de ódio, que é essencial para este ascenso da extrema-direita. É facto que as redes sociais constituem uma forma notável para definir uma nova atmosfera em que se respira pavor, ladeando os meios de comunicação social que seriam um ténue filtro do mundo, ao selecionarem as notícias e os comentários com critérios que reclamam uma aura de legitimidade. É também evidente que essa forma de atuação incendiária já era cumprida por alguma imprensa de escândalos (e, há duas gerações, como lembra Karl Kraus, o fascismo e a guerra eram cantados pela imprensa, tempos passados), que naturalmente neste momento se expande no tempo novo do trumpismo. Sem esta tecnologia, a extrema-direita não conseguiria criar o seu universo separado, e precisa dele para se tornar eleitoralmente viável (o risco parece ser uma surpresa para os mais desatentos, quando falei sobre isso há tempos fui atacado em editorial de um jornal respeitável).
Ora, a tecnologia do discurso do ódio é eficaz se tiver quem acredite nele. A questão é que há uma multidão para isso, precisamente as pessoas que sentem o choque entre a promessa deslumbrante de um mundo de néon ou confettis e a realidade do salário baixo, da filha desempregada, da biografia gasta no comboio para os subúrbios, tudo o que a austeridade banalizou e agravou. Se os donos do país se exibem em desfalques, se governantes sorumbáticos explicam que cumprem ordens de uma capital distante, ou se a vida anda para trás, como se diz em bom português, esta tensão torna-se explosiva. Entra então a técnica política, a canalização da frustração com a invisibilidade – Macron chamou-lhes a “gente que não é nada” e Clinton os “deploráveis” - contra algum alvo vulnerável, os migrantes, os mexicanos, os ciganos, os sindicalistas, os homossexuais. Aliás, esse discurso contamina parte da sociedade, durante a campanha brasileira houve esquerdistas lusas capazes de afirmar que o protesto das mulheres contra Bolsonaro o ajudava e que deviam era estar caladas.
O primeiro passo, constituir nutridas listas para a campanha subterrânea por via do WhatsApp, já está avançado. O segundo, por de lado os fascistas folclóricos que andam de saudação romana há anos e anos, também. O terceiro, encontrar o discurso certo para assustar não assustando demasiado, ainda está em ensaios, para já Camilo Lourenço fala com delicadeza de “cheiro a napalm”. O que agora está em causa em Portugal é simplesmente a demonstração de que não haverá recanto do mundo em que este discurso não se instale. Com as sondagens a começarem a descobrir que pode haver uma surpresa no terreno propício das europeias (em que Marinho Pinto teve 7% na última eleição, mesmo que logo depois desbancasse para quase nada), a extrema-direita, que já tentou no passado inúmeros protestos do “milhão” contra “os políticos”, tem pela primeira vez na sua mão a possibilidade de conjugar as espirais de ressentimento nas redes sociais com algum discurso religioso ou apocalíptico que prometa tudo e o seu contrário. Em Espanha, isto só resultou eleitoralmente quando dissidentes do principal partido da direita tomaram conta desse discurso. E, como se vê aqui, o CDS, que esperava que bastasse ficar sentado para captar o descontentamento dentro do PSD, moveu-se logo para imitar envergonhadamente os “coletes amarelos”, pondo Assunção Cristas na estrada a pedir boleia ao descontentamento contra o estado do pavimento e a atacar o “caráter” do primeiro-ministro. Só que, mesmo imitando-o, talvez seja tarde para a velha direita evitar que surja um partido de extrema-direita com expressão eleitoral, o fantasma está mesmo a sair do armário. Eles nunca deixaram de estar aqui e agora vão mostrar-se.
Para o país, o tempo que há é este e a resposta é a mais difícil: a habitação que falta, a punição dos desvarios financeiros, o direito de quem trabalha, o rigor dos representantes e a soberania da nação. Não vale a pena esperar por algum consenso que leve a essa democratização da vida, já se sabe que quem manda se considera ungido de deus, nada se moverá e só ouviremos que o Natal é todos os dias. Resta saber se a esquerda quer ter a ambição de ser tão forte na rua como no voto.