A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

O advento de Bono

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Quando me dizem que o cristianismo está em crise na cultura ocidental, a minha resposta é quase sempre a mesma: se está em crise, então não o quero ver sem crise, porque ele já está por todo o lado. As pessoas podem espernear e recusar a ideia, mas a presença do cristianismo no nosso ADN é insuperável. Mesmo quando não é visível à cabeça, ele está lá. Não, não usa cabeção, mas está em grande parte das manifestações culturais que nos rodeiam. Olhem para a nova música portuguesa: Fúria, Úria, Tiago Cavaco, Miguel Araújo, entre outros, não são compreensíveis sem a lente da fé cristã. Olhem para o cinema popular (“Senhor dos Anéis” ou “Harry Potter”) e até para a pop rock internacional (os U2 ou Arcade Fire) – as ideias do cristianismo estão no centro do que vemos e ouvimos.

Bono, dos U2, é talvez o maior exemplo deste cristianismo sem cabeção. Julgo que grande parte dos fãs da sua música e do seu ativismo político não sabe ou não quer saber o que seu motor moral é obviamente o catolicismo de um garoto irlandês que nunca deixou de andar à procura de Deus, “I still haven’t found what i’m looking for”. O livro de memórias que fez com Michka Assayas é uma confissão clássica debaixo do chapéu moderno do divã. Percebe-se o mecanismo: trocar o padre pelo divã para agradar à modernidade, como “Os Sopranos”; contudo, a essência é a mesma: a brutal franqueza da confissão perante uma verdade que não te julga, só te ouve.

As confissões católicas de Bono continuam: desde a relação entre a escrita e a Bíblia, passando pela orientação que sente na oração, e acabando na ideia de que a fé é uma ferramenta artística mais honesta do que a “coolness”

De resto, são notáveis as parecenças entre a confissão de Bono e a autobiografia de outro grande músico marcado pelo catolicismo: Bruce Springsteen. Para começar, ambos tiveram um pai que desprezava ou desvalorizava a carreira artística do filho. Esta relação gerou raiva que, com o tempo, foi superada através da fé e da consequente catarse: “Nesta pequena igreja”, diz Bono, “na manhã de Páscoa, ajoelhei-me e deixei soltar-se toda a raiva acumulada que tinha contra o meu pai. E agradeci a Deus por ele ter sido o meu pai e pelos dons que recebi através dele. Deixei tudo isto soltar-se, chorei e senti-me libertado”. As confissões católicas de Bono continuam: desde a relação entre a escrita e a Bíblia, passando pela orientação que sente na oração, e acabando na ideia de que a fé é uma ferramenta artística mais honesta do que a “coolness”. O querer ser “cool” é, diz Bono, o grande inimigo do artista. Esperneiem à vontade, mas Ele está no vosso ADN. Tenham um bom advento.