Ciência

“Uma violação ética histórica”: o caso dos bebés geneticamente manipulados

O cientista chinês da polémica no seu laboratório na Southern University of Science and Technology, em Shenzhen <span class="creditofoto">FOTO GETTY IMAGES</span>

O cientista chinês da polémica no seu laboratório na Southern University of Science and Technology, em Shenzhen FOTO GETTY IMAGES

Choque, ceticismo, inquietação e revolta: Eis as reações em cadeia da comunidade científica depois do anúncio de que um cientista chinês tinha criado os primeiros bebés geneticamente manipulados. Sabia-se que iria eventualmente acontecer no futuro mas não agora, não neste ano nem no próximo. Um dos especialistas ouvidos pelo Expresso diz ter tido acesso a um artigo que detalha todos os procedimentos da experiência

Texto Helena Bento

O anúncio não era de todo esperado, não agora, neste momento, mas todos quantos o ouviram, sobretudo os investigadores e os especialistas na área, sabiam que mais cedo ou mais tarde haveria de acontecer. Um grupo de cientistas chineses, liderado por He Jiankui, investigador na Southern University of Science and Technology, em Shenzhen (província de Cantão, no sul do país), afirmou ter ajudado a criar os primeiros bebés geneticamente manipulados do mundo, duas gémeas cuja ADN foi alterado de modo a prevenir uma possível infeção futura de VIH/Sida. “Sinto uma grande responsabilidade para que não seja apenas a primeira vez e que se torne um exemplo. A sociedade decidirá o que fazer a seguir”, afirmou He Jiankui numa entrevista exclusiva à agência de notícias Associated Press, em vésperas de uma conferência internacional sobre manipulação de genes em que vai participar em Hong Kong.

O anúncio, que veio abanar comunidade científica, ainda não foi confirmado por uma instituição independente, nem tão-pouco foram os resultados publicados ou examinados por outros especialistas. Kiran Musunuru, professor e investigador no Departamento de Células Estaminais e Biologia Regenerativa da Universidade de Harvard, nos EUA, não duvida que He Jiankui esteja, de facto, a levar a cabo o referido projeto, até porque diz ter tido acesso a um artigo escrito pelo cientista chinês e a sua equipa que ainda não foi publicado mas detalha todos os procedimentos da experiência. “Estou familiarizado com o assunto e acredito que tudo isto seja verdade”, afirma ao Expresso numa entrevista por e-mail. E é precisamente por acreditar que é verdade que se sente tão preocupado. “Há ali provas irrefutáveis de que os embriões que deram origem às gémeas tinham vários problemas no que diz respeito à edição genética, que foi incompleta, e à existência de mutações do ADN indesejáveis. Não consigo sequer acreditar que a equipa dele levou a experiência até ao fim e que nasceram duas pessoas fruto daquela gravidez.”

Hugh Whittall, diretor do Nuffield Council on Bioethics, no Reino Unido, tem a mesma opinião. “Tal como muitos outros especialistas e investigadores, fiquei chocado quando ouvi falar sobre isto e o meu primeiro impulso foi questionar a validade das palavras de He Jiankui.” Depois do ceticismo, veio a inquietação e vieram as críticas, expostas assim ao Expresso: “É demasiado prematuro fazer isto agora, já para não dizer que se trata de um uso da tecnologia extremamente imprudente que pode vir a ameaçar o desenvolvimento responsável de futuras aplicações da edição genética”.

He Jiankui é proprietário de vários laboratórios na área, incluindo o Direct Genomics, em Shenzhen<span class="creditofoto"> FOTO VCG/GETTY IMAGES</span>

He Jiankui é proprietário de vários laboratórios na área, incluindo o Direct Genomics, em Shenzhen FOTO VCG/GETTY IMAGES

Sublinhando que a maioria dos cientistas sabia que “isto acabaria por acontecer um dia mas não exatamente neste momento”, Hugh Whittall põe em causa o propósito do projeto: “É surpreendente e eticamente controverso. É uma técnica que não está a ser usada para evitar uma condição genética hereditária que põe em risco a vida de alguém, que seria provavelmente o propósito que a maioria das pessoas teria em mente assim que se tornasse possível fazer isto”. A Southern University of Science and Technology, onde He Jiankui trabalha, também criticou o seu docente, acusando-o de “violar de uma forma muito grave a ética” e os padrões vigentes no referido estabelecimento de ensino”. Anunciou ainda a abertura de uma investigação interna.

VIH na China é um grande problema, justificou o cientista chinês

O cientista chinês vinha já praticando há vários anos a manipulação genética de ratos, macacos e embriões humanos em laboratórios, mas desta vez escolheu aplicar o seu método - que passou por bloquear um gene chamado “CCR5”, que serve de porta de entrada do VIH nas células - a casais que aceitaram submeter-se ao projeto designado “AIDS vaccine development” e que foram recrutados através de um grupo, o Baihualin, que defende e promove os direitos das pessoas que vivem com o VIH/Sida, sediado em Pequim.

O processo deu-se assim: depois de submeter os casais à conhecida técnica de fertilização “in vitro”, em que se introduz um espermatozoide num ovócito e depois o embrião já fecundado é transferido para o útero da mulher, a equipa de cientistas liderada por He Jiankui recorreu a uma ferramenta genética, chamada “CRISPR-cas9”, que torna possível alterar o ADN para fornecer um gene necessário ou bloquear um que esteja a causar problemas, como foi o caso. Sete casais foram submetidos à experiência, tendo havido uma gravidez até agora. A ideia não era evitar o risco de transmissão do vírus a descendentes, porque para isso há já medicamentos e tratamentos, mas sim permitir aos casais afetados pelo vírus ter um filho que jamais será infetado. Todos os homens que participam no projeto tinham VIH mas as mulheres não.

Mas porquê esta iniciativa? A isso respondeu o próprio He Jiankui na entrevista à Associated Press (AP): na China, o vírus do VIH é um grande, grande problema, justificou. O líder do grupo que ‘cedeu’ os casais afirmou à AP que não é assim tão incomum na China que pessoas portadoras do VIH percam empregos ou tenham problemas para obter assistência médica caso seja conhecido o seu historial clínico. George Church, especialista da Universidade de Harvard, foi o único cientista com uma opinião favorável à aplicação daquela técnica para os referidos fins a aparecer citado na imprensa internacional e usou precisamente o mesmo argumento - o VIH/Sida é uma “grande e crescente ameaça à saúde pública” e portanto o que foi feito é “justificável”.

<span class="creditofoto">FOTO STRINGER/REUTERS</span>

FOTO STRINGER/REUTERS

“Bloquear um gene específico pode levar à morte”

Só recentemente esta ferramenta de edição de genes começou a ser testada em adultos com doenças mortais, sendo a pessoa submetida ao teste a única a ser afetada por eventuais alterações. Com espermatozoides, óvulos ou embriões o caso muda de figura, podendo as alterações ser herdadas pelas gerações futuras, daí que a edição genética em seres humanos seja proibida nos EUA e na maioria dos países. Já a China proíbe a clonagem humana mas não especificamente a edição de genes.

É precisamente para isso, para os riscos, que chama a atenção Kiran Musunuru. Destruindo desde logo o argumento de He Jiankui de que não havia até agora outra forma mais eficaz de evitar a infeção por VIH - “já há muitos medicamentos que a previnem, assim como evitam a progressão da Sida” -, o investigador diz que “bloquear um gene específico pode resultar em várias doenças graves, que em alguns casos podem mesmo levar à morte do doente, e ao aparecimento de outros vírus, nomeadamente o comum vírus da gripe ou da febre do Nilo”, que se propaga através de picadas de mosquitos infetados.

Mas há ainda outros riscos associados à edição genética, como a “introdução de mutações perigosas que podem causar cancro e outras doenças” e de outras “mutações prejudiciais que podem acabar por ser transmitidas às gerações futuras”, no caso aos descendentes das gémeas chinesas cujo ADN foi alterado. “Simplesmente nós não sabemos o suficiente sobre estes procedimentos e sobre a edição genética para ter a certeza de que isto é seguro”, resume Kiran Musunuru, acrescentando ter a certeza de que pelo menos numa das gémeas a edição genética não se deu de forma completa, o que significa que ela “não será resistente à infeção por VIH”.

Mais do que uma “conquista científica histórica”, trata-se de uma “violação ética histórica”

Confrontado com a sugestão de que, apesar das dúvidas e dos riscos, podemos estar perante um avanço significativo na ciência, Kiran Musunuru responde como quem torce o sobrolho em desaprovação: “Discordo. Se houve algum marco importante isso aconteceu em 2013, quando ficou provado que a edição genética poderia ser muito eficiente em células estaminais humanas e depois em embriões de camundongos [espécie de roedor]”. Aí, continua o investigador, “tornou-se óbvio que a edição genética também seria eficaz em embriões humanos mas por alguma razão nunca ninguém o testara até agora - é que isso significaria um atropelo total dos princípios éticos”.

Kiran Musunuru é assertivo: “O que a equipa do cientista chinês fez não é uma conquista científica histórica mas sim uma violação ética histórica”. A comunidade científica, continua, “sempre esteve unida em torno do pressuposto de que, antes de experimentar esta técnica, era preciso provar que era segura, procurar a aprovação junto da população e só depois fazer ensaios clínicos”. Mas He Jiankui e a sua equipa decidiram inverter totalmente esta lógica e começaram pelo fim e “em segredo” - e isso é “desonesto”. Assim, considera o investigador, talvez sejam “necessárias leis e regulamentos mais eficazes por parte dos vários governos para reforçar aquele pressuposto”.

Hugh Whittall tem a mesma opinião no que diz respeito a chamar os políticos a intervir. “Isto é algo que já está nas bocas do mundo, que já saiu do âmbito do laboratório, por isso é importante que a comunidade científica, assim como os líderes políticos, respondam isto. Mais do que voltar atrás e fingir que isto não aconteceu, é importante decidir qual o caminho a seguir daqui para a frente”. É “necessário”, acrescenta, “promover um amplo debate público” sobre o assunto, “realizar mais estudos sobre implicações sociais e de segurança”.

E no futuro tornar-se-á a edição genética de embriões humanos uma prática comum? Descrevendo o cenário como “realista”, Hugh Whittall nota que há doenças causadas por um único gene, como a fibrose cística ou a doença de Huntington, que podem ser evitadas se se recorrer à “edição dos genes”. Quanto às doenças mais complexas, “é demasiado cedo para conhecer todas as possibilidades”. Kiran Musunuru concorda - crê que “daqui a 40 anos a edição genética se torne uma prática comum, tal como a fertilização ‘in vitro’, introduzida há 40 anos, o é agora”, e que não há mal nisso: “Em casos de grande necessidade, em que a vida de alguém está dependente disso, pode ser benéfico”.