Saúde

Processados nos EUA, fabricantes de opioides avançam para os países em desenvolvimento

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Comprimidos de fentanil: o opioide mais letal do momento nos Estados Unidos é fornecido, maioritariamente, pela China Foto D.R.

Até certo ponto, é a repetição do que aconteceu há décadas com as grandes farmacêuticas

Texto Luís M. Faria

A condenação judicial da Johnson and Johnson, a multinacional farmacêutica norte-americana, esta segunda-feira, ao pagamento de 527 milhões de dólares (474 milhões de euros) pelo seu papel no desencadear da crise dos opioides no Oklahoma, poderá ter sido um relativo alívio para a empresa, como se vê no facto de as suas ações terem subido esta terça-feira na Bolsa. Afinal, a empresa temia valores que podiam chegar aos dois mil milhões de dólares (1798 milhões de euros). Mas o significado real do veredicto está nos efeitos que pode ter em dezenas de outros processos semelhantes noutros estados americanos.

Hoje, ninguém põe seriamente em causa que nos Estados Unidos da América se verifica uma sobreutilização de opioides para tratar uma grande variedade de condições médicas que envolvem algum nível de dor. Noutros países, muitas dessas condições não justificam o recurso ao tipo de medicamentos em causa. O abuso tem tido uma influência decisiva a viciar milhões de pessoas nos opioides. Com frequência, quando os médicos tentam restringir o acesso a esse tipo de medicamentos, o doente já não consegue passar sem eles e vai à procura de drogas ilegais.

O foco da atenção pública tem recaído sobretudo sobre o problema nos EUA. Contudo, começa-se a perceber que as empresas agora postas em causa estão a imitar algo que o chamado Big Tobacco fez há décadas. Nos anos 90, quando as grandes empresas de tabaco americanas, ao fim de décadas de tentativas mal-sucedidas para as responsabilizar, começaram finalmente a ser julgadas em tribunal pelos danos catastróficos que haviam provocado à saúde dos consumidores americanos – um mal que negavam mas do qual há muito estavam conscientes, segundo documentos revelados em tribunal –, não tiveram apenas de pagar muito dinheiro em indemnizações. Também enfrentaram uma ameaça séria de redução do seu mercado.

Depois de condenadas em inúmeros processos nos Estados Unidos, muitas empresas de tabaco norte-americanas viraram-se para os países asiáticos <span class="creditofoto">Foto David Butow / Corbis via Getty Images</span>

Depois de condenadas em inúmeros processos nos Estados Unidos, muitas empresas de tabaco norte-americanas viraram-se para os países asiáticos Foto David Butow / Corbis via Getty Images

Felizmente para elas (quer dizer, para os seus balanços financeiros), isso aconteceu numa altura em que a globalização já ia a pleno vapor, com circuitos de distribuição alargados e campanhas de marketing concebidas à partida para serem aplicadas à escala planetária. Dado o desejo de emular o Ocidente que as novas classes médias asiáticas tinham, bem como de outros fatores culturais próprios, vários desses países eram mercados naturais e para lá se expandiram as empresas americanas. Num documento de 1992, um executivo de uma dessas empresas, a Rothmans, dizia que “pensar sobre as estatísticas do tabaco na China era como pensar nos limites do espaço”. Além da China (curiosamente, hoje em dia o principal fornecedor do fentanil, um opioide especialmente letal, que chega ao mercado americano), o Japão era outro mercado bastante desejado, e a Índia não ficava muito atrás.

A abertura de clínicas privadas de tratamento da dor tem crescido a bom ritmo na Índia, um país onde tradicionalmente se usava o ópio para minorar a dor Foto D.R.

“Toda a gente se quer livrar da dor rapidamente”

Agora, as farmacêuticas estão a repetir esse percurso, até certo ponto. Além da Johnson & Johnson, empresas como a Abbott Laboratories, a Purdue Pharma, a GlaxoSmithKline e muitas outras parece não terem razões para temer o futuro. Com o crescimento acelerado das classes médias nos países em desenvolvimento e a consciência cada vez maior dos meios que existem para tratar a dor associada a uma enorme variedade de condições, desde o cancro até à esclerose múltipla, as artrites, as neuropatias, as úlceras e a fibromialgia, um número crescente de pessoas exige tratamento, e as despesas com a saúde aumentam em correspondência.

Diversos relatórios recentes elaborados para a indústria fazem previsões otimistas. Um deles, publicado há uma semana, descreve um cenário de “crescimento espantoso” nesse mercado. Em termos gerais, têm-se antecipado subidas especialmente rápidas na China e na Índia, embora alguns países europeus e na América Latina, designadamente o Brasil, também sejam considerados promissores.

Num artigo publicado esta terça-feira, o diário britânico “The Guardian” conta como a abertura de clínicas privadas de tratamento da dor tem crescido a bom ritmo na Índia, um país onde tradicionalmente se usava o ópio para minorar a dor ou simplesmente se fazia os possíveis por aguentar.

“Para doentes de cancro que antes se torciam em agonia, há pensos de fentanil de uma subsidiária da Johnson & Johnson”, escreve a autora, Sarah Varney. “Para o vasto exército de trabalhadores de escritório de classe média atormentados com dores nas costas e no pescoço, há buprenorfina da Mundipharma (...) E para as centenas de milhões de indianos idosos com articulações e joelhos a doer, há injeções de tramadol da Abbott Laboratories”.

Em Nova Deli, um médico chamado G. G. Dureja, que fundou um centro pioneiro de terapia da dor, explica que enquanto dantes se dizia que não havia tempo para pensar na dor, agora a atitude é outra. Ele resume-a assim: “Não ouçam os vossos mais velhos. Eles dizem que se deve tolerar a dor, não fazer queixas, não tomar analgésicos. Agora, toda a gente se quer livrar da dor rapidamente”.